Diego Mendes Sousa: Entrevista de Antônio Torres
Em: 21/06/2020, às 17H13
[Por Diego Mendes Sousa]
“Quando olho para trás, o que vejo é o melhor lugar para um escritor ter nascido. Pois do meio agrário e ágrafo de onde vim o que não faltava era contador de histórias ao pé de um fogão de lenha, para espantar o medo em noites cheias de fantasmagorias. Era como se as carências do nosso cotidiano nos levassem ao reino da fabulação.”.
A 13 de setembro de 1940, nascia o romancista Antônio Torres na cidade de Sátiro Dias, na Bahia. Neste ano de 2020, comemoram-se os seus 80 anos de vida, coroados pela apresentação de um novo enredo ficcional, intitulado Querida Cidade, que sairá nos próximos meses pela Record, casa editorial desse gabaritado Escritor.
Com exclusividade para o saite Domingo com Poesia, o poeta piauiense Diego Mendes Sousa dialoga com o universo literário de Antônio Torres, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), onde é o sétimo ocupante da emblemática Cadeira 23. Autor seminal, detentor do Prêmio Machado de Assis da ABL (2000), pelo conjunto da obra, além de um dos galardoados com o Prêmio Jabuti de ficção (2007), por melhor romance.
Antônio Torres publicou Um cão uivando para a lua (1972); Os homens dos pés redondos (1973); Essa terra (1976); Carta ao bispo (1979); Adeus, velho (1981); Balada da infância perdida (1986); Um táxi para Viena d’ Áustria (1991); O Centro das nossas desatenções (1996); O cachorro e o lobo (1997); O circo no Brasil (1998); Meninos, eu conto (1999); Meu querido canibal (2000); O nobre sequestrador (2003); Pelo fundo da agulha (2006); Sobre Pessoas (2007); Minu, o gato azul (2007) e Do palácio do Catete à venda de Josias Cardoso (2007).
Seus livros estão traduzidos em diversos idiomas e espalhados por mais de vinte países do mundo, como Argentina, Alemanha, Bulgária, Croácia, Cuba, França, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Portugal, Espanha, Holanda, Paquistão, Vietnã, Israel e Romênia.
Testemunha Antônio Torres, que sua imaginação criativa flui do onírico. É através do sonho, que o enredo dos seus escritos e o fio condutor dos seus temas afloram em simbologias ficcionais.
Em uma conversa franca, aberta e direta, Antônio Torres abre o seu baú de imagens, memórias, caminhos e esquecimentos, sem jamais se afastar do compromisso com a realidade brasileira. Histórico e humano, Antônio Torres reconta a sua infância, faz retratos com os seus pares, fala dos seus projetos, revela os seus sentimentos, mas antes dispara: “Quer dizer, ia, até entrar nesse tempo em suspenso, no qual tudo ficou imprevisível.”.
Diego Mendes Sousa - Em setembro de 2020, será comemorado os 80 anos do seu nascimento. Como é saber-se reconhecido em um país de poucos leitores?
Antônio Torres - Pertenço a uma geração bem lida, bem criticada, bem estudada, bem traduzida, muito viajada. E que vai da Porto Alegre de Moacyr Scliar, à Manaus de Márcio Souza, passando pelo Paraná de Domingos Pellegrini Júnior, São Paulo - com Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio -, o Rio de Nélida Piñon, Ana Maria Machado e Sérgio Sant’Anna, as Minas de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Roberto Drummond, Wander Piroli e Luiz Vilela, a Bahia de João Ubaldo Ribeiro, só para citar alguns casos exemplares - e de ficcionistas –, e nesses não pode faltar outro gaúcho, nascido em Santana do Livramento, o meu saudoso amigo Flávio Moreira da Costa.
Não me cabe dizer se estou ou não entre os que tiveram o seu quinhão de reconhecimento. Ou melhor: entre os que ainda o têm. Aqui e ali cruzo com alguém que me acena simpaticamente, e vou em frente. Quer dizer, ia, até entrar nesse tempo em suspenso, no qual tudo ficou imprevisível. Como a comemoração dos meus oitentões com o lançamento de um novo romance chamado Querida Cidade, que a Editora Record havia programado para agosto. Agora, “é a espera debaixo deste céu descampado”, como está escrito em um romance de 1976, chamado Essa Terra.
DMS - Em 2013, você foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Qual o significado de estar na linhagem sucessória de Machado de Assis?
AT - Significa um legado histórico extraordinário. A cadeira 23 da ABL, fundada pelo Bruxo do Cosme Velho – que a ocupou de 1897 a 1908 -, tem a seguinte linhagem sucessória: 1 - Lafayette Rodrigues Pereira, o conselheiro de D. Pedro II e autor de trabalhos jurídicos notáveis, e que veio a dar nome à cidade em que nasceu, em Minas Gerais, e a uma rua de Copacabana, na qual morou o poeta Carlos Drummond de Andrade. 2 - Alfredo Pujol, que foi um brilhante jornalista e advogado, o primeiro a fornecer uma visão abrangente da obra de Machado de Assis em 7 conferências publicadas em livro, hoje uma referência necessária. 3 - Otávio Mangabeira, um homem de letras que foi ministro do Exterior e governador da Bahia, tendo se destacado por sua eloquência, habilidade política, dignidade e honestidade. 4 - Jorge Amado, que dispensa apresentação. 5 - Zélia Gattai, que foi a companheira perfeita de Jorge, consagrada na literatura a partir da publicação de Anarquistas, graças a Deus. 6 – Luiz Paulo Horta, o jornalista e escritor que viveu na música até morrer, encontrando nela as portas da transcendência.
Pronto. Está dado o peso da responsabilidade que me coube.
DMS - O seu patrono é José de Alencar! Que importância tem essa confluência do destino para sua formação intelectual?
AT- Agora você me leva de volta a um lugar esquecido nos confins do sertão baiano, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas. Sem livros. Ali, em uma manhã ensolarada, uma professora chamada Teresa pôs os seus alunos em fila, para que cada um lesse em voz alta um trecho de uma Seleta Escolar - que vinha a ser uma antologia de contos, crônicas, poemas e pequenos capítulos de romance. Um desses trechos inundou a sala, fez o sertão virar os verdes mares bravios da terra natal de José de Alencar, onde canta a jandaia, na fronde da carnaúba. O efeito dessa leitura foi simplesmente fabuloso. À noite, viajei em águas, faunas e floras de sonho. Além de não fazer a menor ideia de como era o mar, não conhecia a jandaia e a carnaúba, nem de pluma, nem de folhagem, pois pertenciam a outras paisagens, e distantes, como a do Ceará. Foi esse o primeiro impacto que as linhas iniciais de um romance me provocaram, instalando-se como o lugar da imaginação, e aqui se reinstalando como o da memória. Quem sabe aquela leitura em voz gaguejante do começo de Iracema tenha sido o marco zero do meu destino de romancista?
DMS - Como nascem as histórias das suas narrativas?
AT - Às vezes, de alguma coisa no presente que me remete a uma situação vivida no passado. Como em uma noite de sexta-feira, em São Paulo, para onde eu havia me transferido do Rio de Janeiro, já casado com a Sonia, que me pediu para lhe contar uma história da minha infância. Enquanto puxava pelas minhas memórias, via sinais de enternecimento em seu rosto. No sábado, logo ao acordar, comecei a escrever um conto, intitulado Segundo Nego de Roseno – hoje incluído no livro Meninos, eu conto -, e que viria a dar origem ao romance Essa Terra. Em outras vezes, meu inconsciente trabalhou por mim enquanto eu dormia. Foi assim em Um táxi para Viena d’Áustria, e no ainda inédito Querida Cidade, que nasceram de um sonho.
DMS - Aos 32 anos de idade, você estreou com o livro “Um cão uivando para a lua” (1972). O que esse livro representa para a sua trajetória enquanto escritor?
AT - Lançado em uma quinta-feira em uma livraria de Copacabana, na segunda-feira seguinte Um cão uivando para a lua viria a ser saudado por Aguinaldo Silva, no jornal Opinião – um semanário de circulação nacional pra lá de bom – como “uma feliz estreia”. O entusiasmo do Aguinaldo acabou levando praticamente toda a crítica a tomar conhecimento desse livro, o que por sua vez puxou os leitores. Registre-se que eu não o conhecia. E de lá para cá só o vi uma única vez, e de raspão, sem tempo para demonstrar a minha gratidão pela porta gigantesca que ele abriu a um ilustre desconhecido que adentrava a literatura sem qualquer apadrinhamento. A minha sensação é a de que Um cão uivando para a lua foi lançado no dia, mês e ano certos. Ou seja, deu sorte. O que, como dizia Jorge Amado, todos precisamos. Portanto, muita sorte para os livros e seus autores.
DMS - Podemos considerar o romance “Essa Terra” (1976) como a sua obra-prima?
AT - Há controvérsias. Ana Maria Machado, por exemplo, lhe diria, como já fez de público, que esse pódio é de O cachorro e o lobo. Que dá sequência ao Essa Terra, abrindo caminho para uma trilogia, fechada com Pelo fundo da agulha.
DMS - Conte-me sobre a sua vivência no Junco, o seu torrão natal no interior da Bahia, e a relação com as imagens oriundas da sua infância.
AT - Quando nasci o Junco já se chamava Sátiro Dias. Era um distrito de Inhambupe, no semiárido da Bahia, a apenas 210 quilômetros de Salvador, distância que parecia enorme devido à precariedade da estrada para a sede do município, dali a sete léguas, e a ausência de qualquer meio de comunicação, a não ser o correio, que chegava de oito em oito dias, no lombo de um burro. Hoje, é uma pequena cidade tão interligada ao mundo quanto qualquer outra de maior porte. Quando olho para trás, o que vejo é o melhor lugar para um escritor ter nascido. Pois do meio agrário e ágrafo de onde vim o que não faltava era contador de histórias ao pé de um fogão de lenha, para espantar o medo em noites cheias de fantasmagorias. Era como se as carências do nosso cotidiano nos levassem ao reino da fabulação.
DMS - É sabida a sua admiração pelo poeta baiano Castro Alves e a sua ambição, desde jovem, de ser poeta! O que lhe desvirtuou do caminho poético?
AT- Foi um professor do Ginásio de Alagoinhas, cidade a meio do caminho da capital, quem me fez mudar de rumo. – Você se expressa melhor em prosa do que em verso – ele me disse, baseando-se em uns exercícios de escrita que eu vinha publicando em um jornalzinho feito pelos alunos que faziam parte do Grêmio Lítero-Recreativo Castro Alves. Levei a sério aquela observação. Mas sem jamais perder o meu fascínio pela poesia. A falta de talento para ela acabou me empurrando para a ficção.
DMS - O jornalismo teve influência no seu processo criativo? Os romances históricos nasceram desse olhar investigativo?
AT - Além de jornalista, fui redator publicitário, com passagens por grandes agências de São Paulo, do Rio e de Portugal, onde vivi três anos. E se o jornalismo me ensinou a ver o mundo, a publicidade me ensinou a contar isso rapidinho.
DMS - Gosto muito do cronista Antônio Torres. “Sobre Pessoas” (2007) foi um livro que me marcou sobremaneira. Quem são essas pessoas?
AT - São figuras célebres das letras, da música, do cinema, do esporte e da História: Fernando Sabino, Glauber Rocha, Garrincha, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Faulkner, Jorge Luís Borges, Dalton Trevisan, Tônia Carrero, João Saldanha, Tom Jobim, Miles Davis (todos os trompetes havidos e a haver), Vinícius de Moraes, e muita gente mais, lendária ou não.
DMS - “Meninos, eu conto” (1999) é o seu único livro de contos. Por que os romances predominaram no seu fazer literário?
AT - Comecei escrevendo contos. O primeiro foi publicado em uma revista, em São Paulo, e o segundo em um jornal do Porto, onde vivi um ano e meio. Perdi os dois. A ideia inicial de Um cão uivando para a lua era a de um conto centrado num louco a bater papo consigo mesmo. Mas a história avançou e deu no que você sabe: uma dúzia de romances, com apenas quatro contos pelo caminho. Três estão no livro Meninos, eu conto e o outro, que se intitula Atrás da cerca, foi publicado na antologia Malditos Escritores!, organizada por João Antônio, e também em Cuba, na revista da Casa de las Américas, e, mais recentemente, em Portugal, numa edição da Editora Teodolito com a Fnac, para o Dia Mundial do Autor. Sem dúvida, minha produção de contos é pequena. Mas é possível que no futuro eu venha a ser lembrado apenas pelo conto Por um pé de feijão, incluído por Ítalo Moriconi entre os Cem melhores do século, e que não para de sair em livro didático, além de ter sido escolhido pelo Ministério de Educação da França, em 2015, como prova do “Agrégation”, concurso para professores de língua portuguesa nas escolas francesas. Quelle surprise!
DMS - Seus livros estão traduzidos em diversos idiomas. A que você atribui esse sucesso editorial no exterior?
AT - Tenho romances e contos publicados em mais de vinte países, o que não significa sucesso editorial no exterior. Meu finado amigo Carlos Heitor Cony definia à perfeição o espaço conquistado pelos escritores brasileiros lá fora: um sucesso de estima. O que já é bom, diga-se. Pior seria se nem isso tivéssemos. Só Jorge Amado, ao seu tempo, e Paulo Coelho, no presente, foram além disso. Muito além, reconheça-se.
DMS - Se lhe fosse dada uma oportunidade de um reinício literário, o caminhar seria o mesmo?
AT - Não dá para me ver reiniciando pela mesma trilha. Até porque ao longo da caminhada venho pegando atalhos variados, ao passear por cenários urbanos, rurais e da História. O que virá daqui pra frente? Aguardemos o próximo capítulo.
“Quando olho para trás, o que vejo é o melhor lugar para um escritor ter nascido. Pois do meio agrário e ágrafo de onde vim o que não faltava era contador de histórias ao pé de um fogão de lenha, para espantar o medo em noites cheias de fantasmagorias. Era como se as carências do nosso cotidiano nos levassem ao reino da fabulação.”.