DIANTE DA PÁGINA  BRANCA

                     

          O princípio da palavra é um ato difícil; é a saída do  silêncio

                                      Roland  Barthes

                                                    

                                                                  Cunha e Silva Filho

               

      

           O que posso  dizer, leitor, diante da página  branca? Que ela é simplesmente branca.  Que  não foi  escurecida pelo  impiedoso texto novo: que ela simbolize o silêncio dos que  sofrem, enfim,  o que posso  afirmar de especial  diante da  página branca ? A dor de  Ernest Hemingway (1899-1961)? O silêncio de um  poeta  piauiense  que  escreveu  o mais belo  soneto sobre a Saudade em língua portuguesa daqui e de além-mar?

         Por que um escritor tem medo da página branca se ela não é aquela baleia branca de Moby Dick? O que  diria  da página branca  com referência aos poucos  romances  de O.G. Rego de Carvalho (1930-2013)    um dos quais,  se não me engano,  Ulisses entre o amor e a morte ( Teresina: Meridiano 7 ed .rev., 1989),   reformulava ou  modificava até à exaustão?  Ou o caso de Raduan Nassar que  publicou  seu  primeiro livro, Lavoura arcaica (romance, 1975) e mais duas obras apenas,  deixando, depois,  de produzir literatura?

          Ou mesmo a história um tanto melancólica de um  bom escritor  piauiense  que deixou de escrever bons e ótimos poemas nas décadas de 1970 a  1990, aproximadamente, e, depois,  pouco ou nada produziu nesse gênero quando, pela idade, ainda bem produtiva e  sendo ele relativamente moço, poderia ter dado sequência a mais  obras?

           E a dor da página branca se torna ainda mais lancinante  quando  vemos, alguns bons,  escritores desistirem  de escrever outros livros, ou mesmo desistirem  de seus  interesses  literários, preferindo  viver a vida  natural das pessoas comuns. Eis uma  questão   de natureza   do fenômeno literário que  bem poderia ser  explorada em pesquisas sobre  dados estatísticos   de autores  que  deixaram, por uma outra razão pessoal ou de outra  ordem,  de produzir  num determinado    gênero ainda em  pleno vigor  intelectual.

           Aliás, uma  escritora  norte-americana do passado,    após publicar  seus livros bem sucedidos, chegou a   confessar  que teria sido  muito  mais útil  e feliz  para ela  caso  não tivesse se dedicado tanto à literatura e, ao contrário,  fosse viver  plenamente  a vida em si.  E, assim,  os exemplos da página branca se multiplicariam  e,  quem sabe,  andam  se multiplicando  pelo  mundo afora.

           Basta que se faça um exaustivo   trabalho de pesquisa  para se ter um quadro estatístico de quantos  escritores, em todos os gêneros,  desistiram  de escrever,  perderam  o fôlego inicial  ou simplesmente  largaram,  por motivos de foro  íntimo,  a arte  de  criar  vidas.

           Não seriam  igualmente a página banca   os poemas,  os contos, os romances, os  dramas, dos que  foram  para a eternidade e seguramente tanto tinham o que  ainda  produzir? Cite-se  um exemplo, o do  poeta, tradutor, ensaísta  crítico e historiador  Mário Faustino (1930-1962).  Por outro lado,  não seria a página branca   que sopitou  alguns desejos  não  atendidos  de críticos, ensaístas historiadores e pensadores que morreram tão  precocemente?

           A página branca seria  por  ventura o silêncio de um escritor  diante das  iniquidades  cometidas  por gente nova (não necessariamente  na idade)  ligada visceralmente à  política brasileira, os chamados malvadezas que  estreiam e logo  começam  a fulminar   o que, no Estado Brasileiro,    estava dando certo  e não se configurava  como um retrocesso nefasto  em áreas  cruciais   ao desenvolvimento do país, um tsunami  feroz  raivoso e grosseiro em nome  de alegado  estado de calamidade financeira de um  país que ainda  mantém as mesmas mordomias   nos  altos escalões  palacianos e nos três poderes   formulados  por Montesquieu (1689-1755)  posto que, em muitos  casos,   malogrados ou deformados    na práxis.        

        A página branca seria sinônimo  de silêncio e este,   conforme, ouvi de uma eminente  professora de  filosofia da educação,    chega a um  ponto  de se poder  afirmar ser  impossível não se comunicar, ou seja, o silêncio possui algo também de eloquente  contra atos  errados  e precipitados  na tentativa de resgatar  o buraco negro  da gastança  dos  donos  dos palácios  instalados  em Brasília e pôr a culpa  nos barnabés da Previdência Social.  

        Ora,   o  sistema político  não perdeu  as regalias nem quer jamais perdê-las  dividindo o sacrifício com  os que logo são escolhidos cinicamente  para serem  os bodes expiatórios  das mazelas  perpetradas  pelos   velhos e novos grupos  dos poderes   instalados  através de  eleições conquistadas, mais  uma vez, tanto com o dinheiro  do Estado  determinado por lei aos gastos das eleições quanto   pelos  sempre renascidos caixas dois  advindos  de fortes  grupos econômicos (lobbies)    através  das ignominiosas práticas seculares   “do toma lá dá cá,”   - ainda vigorantes.

         Sim. Não há como ser absenteísta  na política como  erroneamente,   por algum tempo, supuseram ser   Machado de Assis (1839-1908).  Só depois, que um  ensaísta  como Brito  Broca (1890-1965) em livro de titulo Machado de Assis e a política e outros estudos (1957) demonstrou  que,  na obra machadiana,   o que mais se poderia   inferir  são temas de cunho    político e social  -  elementos-chave da sua  ficção. E sem citarmos  também  as suas crônicas, na quais  podemos  verificar  situações visíveis  nos relacionamentos  socioeconômicos  do Segundo Império.

         Não foi gratuito  o que empreendeu, no campo da alta  crítica  de viés marxista  críticos  antigos, como Sílvio Romero, com o seu Machado de Assis (1897), José Veríssimo, Astrogildo Pereira (1890-1965), com o seu livro Interpretações (1944)  e  contemporâneos, como  Roberto Schwarz  com as obras sobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas (1977), Um mestre na periferia do capitalismo (1990).

          Outros grandes ensaístas e críticos   poder-se-iam   citar, para ficarmos só   em autores  brasileiros  como, entre outros,  Augusto Meyer, Agripino Grieco,  Alfredo Bosi,   Afrânio Coutinho,  Fausto Cunha,    Brito Broca (autor  citado  atrás),  Eugênio Gomes,  Alfredo Pujol,  Gondin da Fonseca, Miécio Tati,  Lúcia Miguel Pereira, Nelson Werneck Sodré,   Antonio Candido, Massaud Moisés,   Fábio Lucas,  Ronaldes de Melo e Sousa e até  um ilustre  cientistas  piauiense de renome,   Dr.   Hermínio de Morais Brito Conde, autor de   livro provavelmente pouco conhecido,   de título  A tragédia ocular de Machado de Assis. 2 ed. Prefácio do Dr. João Alfredo Lopes Braga Ver.CONDE ,  Hermínio de Morais Brito. Teresina, PI.  (APL; FUNDAC; DETRAN, 2009,  104 p.).

       Last but not least,   só  a seção  "Machado de Assis e a prosa  impressionista" (capítulo IV,  p. 204-252 do livro De Anchieta a Euclides da Cunha,    escrito  por um dos  mais  notáveis  críticos e ensaístas  brasileiros,   Jose Guilherme Merquior, na obra   já vale por um livro  inteiro sobre Machado de Assis,    tão  profundas   e originais são as páginas   daqule  capítulo  destinado ao Bruxo do Cosme Velho,   sem mencionar  o portentoso  estudo, no  mesmo  capítulo,  que  fez  do conto  machadiano.(Ver   Ver. MERQUIOR,  José Guilherme.De Anchieta a Euclides da Cunha: breve história da literatura brasieira; Orelhas de Ferreira Gullar e contracapa de Pedro Lyra. 3 ed.  Rio de Janeiro: Topbooks, 1996,313 p.).

        A página em branco  -  retomo -,   se é silêncio,  pode ser um silêncio  temporário. Ou pode ser definitivo, dependendo das circunstâncias da vida de cada autor,  jornalista,   articulista,  tradutor,   cronista  etc. Não a  interpretemos apenas como  um  poço que se esvaziou por ter-se exaurido   o filete d’água que o tornava  fértil  e útil à vida de tanta gente. Não há  explicações  possíveis  porque,  na alma do artista,  existem  mil explicações  para que a página ficasse  em branco esperando  por alguma coisa   que a torne  um texto benfazejo  e   semeador   de esperanças   tanto quanto    audacioso  em suas invectivas diante dos  desmandos dos homes na Terra.  

         A página branca é um momento  de expectativa, de  retaguarda,   de  observações atentas  ante a realidade  que se mostre hostil à dor  dos  injustiçados, dos chamados  "humilhados e ofendidos,"  dos desterrados  do bolo sempre  adiado  aos famintos e àqueles que se  encontram contraditoriamente  abaixo da linha da pobreza, até bem próximo de  suntuosas  mansões   - um soco na  cara  desferido   na dignidade dos despossuídos   das grandes megalópoles, nas   quais   o brilho   dos borbulhantes  cegam  os que pedem  pão  e teto.

          Na página branca  existe  espaço  para as grandes lutas  contra  a força  incontida   dos bem  postos  e dos supostos viventes  sempiternos  da vida  regada às benesses dionisíacas  e moralmente  mal cheirosas   e desumanas. A página branca,  assim,  seria igual a um  combate   em silêncio, subterrâneo,  imune  aos inimigos  das inverdades, hoje pragas  disseminadas, na babel   ruidosa da incomunicação  dos povos  como as   fake news -   patologia   social   degenerativa dos pilares das verdades genuínas  e auspiciosas   que tomaram   conta de parte da humanidade  servil  aos interesses  subalternos  do financeiramento  globalizado a todo custo    sem humanidade, como se fosse possível confundir positivamente globalização  maléfica     com humanidade sadia.

          A página em branco  não é a derrota  da germinação  das ideias e do afastamento  pusilânime diante dos desafios  do não progresso,   do retrocesso  cultural,   artístico, educacional,   social, jurídico, econômico, financeiro,   científico  e tecnológico, das conquistas   sociais   e  das lutas contra os preconceitos  de todo tipo e máxime contra as injustiças de todo espécie   e natureza. A página branca  é uma pausa  diante  da que não é possível   aceitar como condição  imutável de vida  injusta de um país   diante do espírito de capadócios  individuais  ou  grupais  travestidos  de bom  mocismo  praticante de um nova forma de fazer o bem  pelo mal sob o estandarte da esperança verde-amarela.