Diante da página branca (Republicado por incorreções)
Por Cunha e Silva Filho Em: 13/07/2021, às 19H21
DIANTE DA PÁGINA BRANCA
O princípio da palavra é um ato difícil; é a saída do silêncio
Roland Barthes
Cunha e Silva Filho
O que posso dizer, leitor, diante da página branca? Que ela é simplesmente branca. Que não foi escurecida pelo impiedoso texto novo: que ela simbolize o silêncio dos que sofrem, enfim, o que posso afirmar de especial diante da página branca ? A dor de Ernest Hemingway (1899-1961)? O silêncio de um poeta piauiense que escreveu o mais belo soneto sobre a Saudade em língua portuguesa daqui e de além-mar?
Por que um escritor tem medo da página branca se ela não é aquela baleia branca de Moby Dick? O que diria da página branca com referência aos poucos romances de O.G. Rego de Carvalho (1930-2013) um dos quais, se não me engano, Ulisses entre o amor e a morte ( Teresina: Meridiano 7 ed .rev., 1989), reformulava ou modificava até à exaustão? Ou o caso de Raduan Nassar que publicou seu primeiro livro, Lavoura arcaica (romance, 1975) e mais duas obras apenas, deixando, depois, de produzir literatura?
Ou mesmo a história um tanto melancólica de um bom escritor piauiense que deixou de escrever bons e ótimos poemas nas décadas de 1970 a 1990, aproximadamente, e, depois, pouco ou nada produziu nesse gênero quando, pela idade, ainda bem produtiva e sendo ele relativamente moço, poderia ter dado sequência a mais obras?
E a dor da página branca se torna ainda mais lancinante quando vemos, alguns bons, escritores desistirem de escrever outros livros, ou mesmo desistirem de seus interesses literários, preferindo viver a vida natural das pessoas comuns. Eis uma questão de natureza do fenômeno literário que bem poderia ser explorada em pesquisas sobre dados estatísticos de autores que deixaram, por uma outra razão pessoal ou de outra ordem, de produzir num determinado gênero ainda em pleno vigor intelectual.
Aliás, uma escritora norte-americana do passado, após publicar seus livros bem sucedidos, chegou a confessar que teria sido muito mais útil e feliz para ela caso não tivesse se dedicado tanto à literatura e, ao contrário, fosse viver plenamente a vida em si. E, assim, os exemplos da página branca se multiplicariam e, quem sabe, andam se multiplicando pelo mundo afora.
Basta que se faça um exaustivo trabalho de pesquisa para se ter um quadro estatístico de quantos escritores, em todos os gêneros, desistiram de escrever, perderam o fôlego inicial ou simplesmente largaram, por motivos de foro íntimo, a arte de criar vidas.
Não seriam igualmente a página banca os poemas, os contos, os romances, os dramas, dos que foram para a eternidade e seguramente tanto tinham o que ainda produzir? Cite-se um exemplo, o do poeta, tradutor, ensaísta crítico e historiador Mário Faustino (1930-1962). Por outro lado, não seria a página branca que sopitou alguns desejos não atendidos de críticos, ensaístas historiadores e pensadores que morreram tão precocemente?
A página branca seria por ventura o silêncio de um escritor diante das iniquidades cometidas por gente nova (não necessariamente na idade) ligada visceralmente à política brasileira, os chamados malvadezas que estreiam e logo começam a fulminar o que, no Estado Brasileiro, estava dando certo e não se configurava como um retrocesso nefasto em áreas cruciais ao desenvolvimento do país, um tsunami feroz raivoso e grosseiro em nome de alegado estado de calamidade financeira de um país que ainda mantém as mesmas mordomias nos altos escalões palacianos e nos três poderes formulados por Montesquieu (1689-1755) posto que, em muitos casos, malogrados ou deformados na práxis.
A página branca seria sinônimo de silêncio e este, conforme, ouvi de uma eminente professora de filosofia da educação, chega a um ponto de se poder afirmar ser impossível não se comunicar, ou seja, o silêncio possui algo também de eloquente contra atos errados e precipitados na tentativa de resgatar o buraco negro da gastança dos donos dos palácios instalados em Brasília e pôr a culpa nos barnabés da Previdência Social.
Ora, o sistema político não perdeu as regalias nem quer jamais perdê-las dividindo o sacrifício com os que logo são escolhidos cinicamente para serem os bodes expiatórios das mazelas perpetradas pelos velhos e novos grupos dos poderes instalados através de eleições conquistadas, mais uma vez, tanto com o dinheiro do Estado determinado por lei aos gastos das eleições quanto pelos sempre renascidos caixas dois advindos de fortes grupos econômicos (lobbies) através das ignominiosas práticas seculares “do toma lá dá cá,” - ainda vigorantes.
Sim. Não há como ser absenteísta na política como erroneamente, por algum tempo, supuseram ser Machado de Assis (1839-1908). Só depois, que um ensaísta como Brito Broca (1890-1965) em livro de titulo Machado de Assis e a política e outros estudos (1957) demonstrou que, na obra machadiana, o que mais se poderia inferir são temas de cunho político e social - elementos-chave da sua ficção. E sem citarmos também as suas crônicas, na quais podemos verificar situações visíveis nos relacionamentos socioeconômicos do Segundo Império.
Não foi gratuito o que empreendeu, no campo da alta crítica de viés marxista críticos antigos, como Sílvio Romero, com o seu Machado de Assis (1897), José Veríssimo, Astrogildo Pereira (1890-1965), com o seu livro Interpretações (1944) e contemporâneos, como Roberto Schwarz com as obras sobre Machado de Assis, Ao vencedor as batatas (1977), Um mestre na periferia do capitalismo (1990).
Outros grandes ensaístas e críticos poder-se-iam citar, para ficarmos só em autores brasileiros como, entre outros, Augusto Meyer, Agripino Grieco, Alfredo Bosi, Afrânio Coutinho, Fausto Cunha, Brito Broca (autor citado atrás), Eugênio Gomes, Alfredo Pujol, Gondin da Fonseca, Miécio Tati, Lúcia Miguel Pereira, Nelson Werneck Sodré, Antonio Candido, Massaud Moisés, Fábio Lucas, Ronaldes de Melo e Sousa e até um ilustre cientistas piauiense de renome, Dr. Hermínio de Morais Brito Conde, autor de livro provavelmente pouco conhecido, de título A tragédia ocular de Machado de Assis. 2 ed. Prefácio do Dr. João Alfredo Lopes Braga Ver.CONDE , Hermínio de Morais Brito. Teresina, PI. (APL; FUNDAC; DETRAN, 2009, 104 p.).
Last but not least, só a seção "Machado de Assis e a prosa impressionista" (capítulo IV, p. 204-252 do livro De Anchieta a Euclides da Cunha, escrito por um dos mais notáveis críticos e ensaístas brasileiros, Jose Guilherme Merquior, na obra já vale por um livro inteiro sobre Machado de Assis, tão profundas e originais são as páginas daqule capítulo destinado ao Bruxo do Cosme Velho, sem mencionar o portentoso estudo, no mesmo capítulo, que fez do conto machadiano.(Ver Ver. MERQUIOR, José Guilherme.De Anchieta a Euclides da Cunha: breve história da literatura brasieira; Orelhas de Ferreira Gullar e contracapa de Pedro Lyra. 3 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996,313 p.).
A página em branco - retomo -, se é silêncio, pode ser um silêncio temporário. Ou pode ser definitivo, dependendo das circunstâncias da vida de cada autor, jornalista, articulista, tradutor, cronista etc. Não a interpretemos apenas como um poço que se esvaziou por ter-se exaurido o filete d’água que o tornava fértil e útil à vida de tanta gente. Não há explicações possíveis porque, na alma do artista, existem mil explicações para que a página ficasse em branco esperando por alguma coisa que a torne um texto benfazejo e semeador de esperanças tanto quanto audacioso em suas invectivas diante dos desmandos dos homes na Terra.
A página branca é um momento de expectativa, de retaguarda, de observações atentas ante a realidade que se mostre hostil à dor dos injustiçados, dos chamados "humilhados e ofendidos," dos desterrados do bolo sempre adiado aos famintos e àqueles que se encontram contraditoriamente abaixo da linha da pobreza, até bem próximo de suntuosas mansões - um soco na cara desferido na dignidade dos despossuídos das grandes megalópoles, nas quais o brilho dos borbulhantes cegam os que pedem pão e teto.
Na página branca existe espaço para as grandes lutas contra a força incontida dos bem postos e dos supostos viventes sempiternos da vida regada às benesses dionisíacas e moralmente mal cheirosas e desumanas. A página branca, assim, seria igual a um combate em silêncio, subterrâneo, imune aos inimigos das inverdades, hoje pragas disseminadas, na babel ruidosa da incomunicação dos povos como as fake news - patologia social degenerativa dos pilares das verdades genuínas e auspiciosas que tomaram conta de parte da humanidade servil aos interesses subalternos do financeiramento globalizado a todo custo sem humanidade, como se fosse possível confundir positivamente globalização maléfica com humanidade sadia.
A página em branco não é a derrota da germinação das ideias e do afastamento pusilânime diante dos desafios do não progresso, do retrocesso cultural, artístico, educacional, social, jurídico, econômico, financeiro, científico e tecnológico, das conquistas sociais e das lutas contra os preconceitos de todo tipo e máxime contra as injustiças de todo espécie e natureza. A página branca é uma pausa diante da que não é possível aceitar como condição imutável de vida injusta de um país diante do espírito de capadócios individuais ou grupais travestidos de bom mocismo praticante de um nova forma de fazer o bem pelo mal sob o estandarte da esperança verde-amarela.