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                Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras

Dezembro de Dasinha e de Nossa Senhora. O ano se encerrava ali, em dezembro, nas comemorações de Nossa Senhora da Conceição das Barras do Marataoã. Dizia papai. Era a confirmação de que se tinham esticados os dias; a oportunidade para rezar, a fim de os anos se repetirem em forma de novos amanheceres. De luz, sabedoria, saúde e prosperidade. Também de entusiasmo e coragem para vencer todo tipo de desafio que o acaso gerasse.

Dezembro representa a lembrança sempre viva de meu pai. Em 2005, papai pressentiu que não voltaria mais à praça na próxima versão da festa. Nem sequer seguiu a procissão pelas ruas principais da cidade. Preferiu vê-la desfazer-se no adro da Igreja. Disse-me em relação à vida, com uma clarividência estranha, embora fosse um otimista sob quaisquer circunstâncias, que não sabia se ali estaria no ano seguinte. Eu respondi que era tolice. Que até os 100 anos ainda haveria umas trinta procissões. Ele, porém, não esteve mais. Fisicamente não esteve. Ele não viu mais, a partir do ano seguinte, a multidão desfazer-se para saudar o fim das novenas e dos leilões. Para suplicar pelas graças celestiais.

Dezembro é mês de rituais. Mês em que o ano dá vários sinais de que o tempo se desfaz, sinais de nossa efemeridade. Mais rugas, mais alguns cabelos brancos. A juventude dobrando esquinas para nascer em faces sóbrias, em seus óculos de graus a cada ano ampliados. Felizmente, também, mais vivência e ânimo para enfrentar o desconhecido. No fundo, oportunidade para enriquecedoras descobertas, porque dezembro, talvez mais do que tudo, seja alegria; seja em todos os sentidos renascimento. O do Menino-Deus, o de nossos sonhos; nesta época, do tamanho de uma palavra alegre chamada euforia. Do tamanho de uma palavra reflexiva de nome autoconhecimento.

O ritual maior do mês está na lembrança. Dasinha (Adalgisa de Carvalho e Silva), a bisavó, viveu todos os alvoreceres em favor do sobrenatural. Praticamente sozinha no lar, em se concebendo solidão de modo convencional, ocupava-se de rezar, de fazer rosas e principalmente das causas da Santa Igreja. Dezembro, mais do que qualquer recordação, significa o presépio de Dasinha.

A antessala da casa se transformava numa imensa sala de brinquedos. Nela, minha imaginação circula até hoje; circula à procura dos carneirinhos e anjinhos que eu imaginava ter em minha posse. Luzes que piscavam; berimbelos de toda espécie; e olhos fascinados pela fusão entre religião e fantasia.

Dezembro é, ainda, dúvida e curiosidade. Quando literalmente começou a festa da padroeira de Barras e seu processo de formação consiste em tema que demanda, concretamente, pesquisa detalhada, sobretudo pela relevância sociocultural do acontecimento. Ao evento, já fazia referência em poema de tom elegíaco, escrito em 1872, o celebrado Teodoro Castello Branco (1829-1891): “Vila que nos festejos grandiosos,/Viste-me sempre com alegre rosto;/Vila, vila chorosa/Meus olhos vês agora,/ que acerbo sentimento me devora”.

Entre os muitos relatos sobre essa emoção renovada da fé em Nossa Senhora das Barras do Marataoã, diz, em crônica, Eurípedes de Castro Melo (1941-1972), conforme se lê em Chão de Estrelas da História de Barras, de Wílson Carvalho Gonçalves: “Sempre que se celebram de 28 de novembro a 8 de dezembro, os festejos da Imaculada Conceição, Padroeira excelsa de Barras, duas coisas impressionam, de gente simples e boa, acolhedora e amiga, de minha terra: o espírito da tradição e o fervor da crença religiosa. E nada há que faça, sequer, arrefecer o entusiasmo com que se espera, ali, a temporada alegre do concorrido novenário da Virgem Santíssima. Nem a mutabilidade dos tempos. Nem o fluir dos anos. Nem a inclemência das adversidades. Nem o tormento das maiores provações. Nem as decepções, as tristezas e as cores comuns, que compõem o tecido da existência humana”.

O escritor Herculano Moraes, também, entre os que relataram a ambiência das festas da padroeira de Barras. Envolvido pela nostalgia e pela percepção de costumes e detalhes, em poema dedicado à cidade campeã em governadores na República Velha, escreveu: “Saudosa festa irreal da padroeira/ -- caixeiros-viajantes, camelôs em massa/ espalhavam bugigangas nos botequins da praça:/ -- relógios, cordões de ouro, medalhas,/ figas, braceletes, sapatos de verniz,/ um tesouro de artigos feminis/ O leilão, com frango assado, pipoca, bolo frito,/cana de açúcar, cocadas, doces de limão, a petizada saboreando pirulitos (...)”.

Dezembro de Nossa Senhora está correndo. Antigamente eu esperava o ano todo voar, para ir às missas, rodear as praças e botequins onde se vende até a sorte. Hoje, o significado da festa se transformou: continuo disposto a cantar o hino da padroeira, a percorrer as ruas nos dias de procissão, a acreditar no poder santo de Nossa Senhora, mas os sentidos são quase que exclusivamente voltados para a admiração da esperança do povo de Deus e da sensação de comunidade que a religião cria. Nada mais que isto: a busca do sentido da fé.

Por isso, dezembro é, sobretudo, uma imagem: “Dezembro em tijolos/na cabeça do povo/os dedos derretendo em velas/ e a luz do fogo em filas/e os férteis pés e firmes/na comum-união de todas as classes:/dezembro e a promessa/de que o tempo vira ar”.