Desde Gutenberg não muda nada. Houve mudanças mecânicas, mas o processo e o negócio não mudavam.

ENTREVISTADO:

Riccardo Cavallero

Juan Cruz - El País - 16/03/2011
 

A primeira coisa que Riccardo Cavallero disse ao se sentar à mesa de sua casa, onde viveu o fundador da Mondadori, Arnoldo Mondadori, em Milão, é que esta mudança é séria; aquilo que sempre se disse, que um dia este universo mudaria, é por fim verdade. E numa frase muito simples ("O poder passa do editor ao leitor"), este manager de editoras que cruzou da Europa à América e depois fez a viagem de volta, passando pela Espanha, propõe atuações diante da nova situação. Gutenberg ainda está por aí, e continuará, mas a internet, "o digital", como ele disse, já marca o futuro.

Cavallero é diretor-geral de livros da Mondadori para a Itália, a Espanha e a América Latina; a Mondadori engloba os selos Einaudi, Piemme, Sperling & Kupfer, Mondadori e Random House Mondadori. Ele nasceu perto de Turim e tem 48 anos; está casado com Teresa, toscana, e tem um filho, Giulio, de 13 anos, nascido em Barcelona. Além do amor a Cadaqués, deixou na Espanha (onde ocupou diversos cargos editoriais, primeiro na Grijalbo e depois na Random House Mondadori) muitos afetos (entre outros, o de seu saudoso mestre Toni López) e experiências que agora fazem parte de sua memória de editor... Exerceu uma tarefa executiva, como conselheiro delegado da Random House Mondadori, primeiro em Nova York e depois em Barcelona...

É economista e nadador. Por acaso, essas duas características lhe servem agora para saber como se nada nas águas do futuro no qual ainda flutua o universo Gutenberg. Eis a entrevista.

El País - É a primeira vez que algo muda de verdade, parece.
Riccardo Cavallero
– Sim, pela primeira vez o mundo editorial está mudando. O digital supõe um grande impacto porque o poder passa do editor ao leitor. Desde Gutenberg não muda nada. Houve mudanças mecânicas, mas o processo e o negócio não mudavam. Os editores tinham o poder de decidir o que se lia em um país. Isto fez com que os editores entendessem mal a sua atividade, que a tenham confundido com a de impressor ou distribuidor, esquecendo-se da de editor.

E com o livro digital, isto muda.

R.C. – O poder passa ao leitor, que é quem decide o que quer, quando quer, como quer e a que preço. Poderíamos compará-lo com a revolução de Copérnico. Não é o mundo que dá voltas ao redor da Terra, mas a Terra é um planeta que gira ao redor de um sol, o consumidor, o leitor. Esta é a grande mudança.

E é recebida com naturalidade?
R.C. – O mundo editorial não está pronto para isto. O que marcará a diferença – como com os dinossauros – é que para sobreviver é preciso mudar de habitat. E há muitos que neste momento não têm a força mental para mudar sua forma de trabalhar...

Ao menos já existe o e-book ocupando seu terreno..., e as editoras o estão adotando...
R.C. – O e-book como tal não vale nada. Já nasce velho. O importante é a revolução digital, mudar a nossa forma de trabalhar contando com o leitor que está do outro lado. Temos que entender pela primeira vez o que o leitor quer. Até agora temos vivido numa bolha de luxo onde quase se podia prescindir do que o leitor queria.

O editor tem que ser diferente?
R.C. – O será, sem dúvida. Houve um momento em que não se sabia se o editor era impressor ou distribuidor... Muda a forma de veicular e entregar um conteúdo. Creio que em cinco ou dez anos o editor será um bibliotecário. Manusearemos um conteúdo que teremos que locar. Já não seremos proprietários de algo, mas possuiremos o que nos servirem no momento.

Então, o papel do editor será menos importante.
R.C. – Continuará sendo muito importante, mas não será o mesmo, será um pouco diferente. A revolução digital é uma mudança impressionante, mas o que não mudará durante um longo tempo deste caminho é a forma de criação, de escrever. O digital não irá influir nisto no curto prazo. O escritor fará experimentos. Já foram feitos livros de SMS, livros para telefones celulares... Nesta primeira fase há um grande porre: o autor está convencido de que o editor já não lhe serve, que é o agente que tem que fazer seu trabalho. O que acontece é que atualmente se encontra um monte de informações disponíveis, um monte de livros que se podem auto-editar sem nenhum problema, mas não se sabe como manejá-lo... O editor encontrará e manterá seu papel, que é o de ensinar a fazer uma seleção e, por outro lado, terá que estar muito atento ao que os leitores querem... Caso contrário, será excluído. As posições de privilégio destes últimos séculos, reduzidas basicamente à distribuição física, se acabam... Dentro de dez anos, isto não existirá mais. Os editores de grandes grupos, que basearam seu sucesso na distribuição, terão que buscar novas vantagens competitivas porque tudo será liberado...

O que vai acontecer com os direitos autorais? Escorrerão como água na cesta, como cantava Harry Belafonte?
R.C. – Mais ou menos. É verdade que o papel do editor muda. Será um editor que não venderá algo, mas que o apresentará. Creio que no mundo digital o editor terá o que atualmente é uma televisão paga, com canais que venderão por assinatura. Estamos acostumados a fazê-lo de maneira simples: liquidamos os direitos por cada exemplar vendido. Isto já não pode ser assim, como nos filmes de cinema. A entrada gerava direitos para o filme. Creio que isso terá que mudar também em relação aos livros. É mais complicado porque a mudança se produzirá dentro de 20 anos, possivelmente. E atualmente o digital já está produzindo muitos problemas para os advogados porque é difícil quantificar o dinheiro necessário para pagar os direitos. Esse é o problema.

Você acredita que se entenderá que não compramos o livro, mas que o emprestamos?
R.C. – Cuidado. Como editores, o jogo será vencido por quem conseguir trabalhar sobre o conteúdo. Meu objetivo é vender e por isso não creio que o livro impresso irá desaparecer. Como nos jornais, creio que estamos no amanhecer do digital. Se eu compro o Financial Times como assinatura digital, tenho também o direito de receber a versão impressa. Assim como um livro. Se quero te vender o último livro de Murakami e você compra o livro físico, com o preço que me está pagando por esse livro tem direito a outras opções: há a versão impressa e digital. E esta é uma forma de comprar que continuará existindo, mas ambas as formas conectadas, porque a versão impressa sem o digital não poderá ser feito no curto prazo...

E depois há a locação...
R.C. – Sim, a forma pela qual opta outro tipo de leitor, que não quer comprar esse livro mas quer pegá-lo emprestado, como em uma biblioteca. Quem diz: "Eu quero uma assinatura de dez euros ao mês com a que tenha acesso a uma oferta de livros." E esses livros podem ser todas as novidades, ou todo o romance rosa, ou o que for... São dois clientes diferentes, mas cuidado, são duas formas de usufruir de um livro... Pode ser que muita gente queira comprar livros de Murakami, García Márquez ou Vargas Llosa para conservá-los na biblioteca e prefira outros livros de entretenimento, como o romance histórico, de que goste, mas que não queira guardar em casa...

O editor parece o capitão de um barco e o mar provoca duas sensações: solidão e medo. Você tem agora alguma dessas duas sensações?
R.C. – Se me permite brincar, sou muito bom em natação e por isso o mar não me dá muito medo. O mar produz uma sensação de profundo respeito porque você sabes que tem na sua frente uma onda muito forte que pode te arrastar. No mundo literário acontece mais ou menos a mesma coisa... Produzir livros é a coisa mais simples. O trabalho de um editor é entregar os livros ao leitor de uma forma clara e inteligível e isso só se pode fazer através de coleções e selos. E do ponto de vista da gestão, da que também me encarrego como publisher [o responsável global de uma editora], é disso que me encarrego. A empresa se constrói em torno da figura dos editores; eles são o coração do negócio. Minha receita é muito simples, é a única que conheço e é a que aplico na América, na Europa, e até agora tem funcionado. Nada de solidão ou de medo. O medo começa quando se começa a esquecer disto e se aumenta a produção para chegar a um faturamento que é efêmero, a recolher devoluções...; é então quando o mar te engole e acabas como no filme Tempestade Perfeita.

Estamos em uma tempestade?
R.C. – Não, não é nenhuma tempestade. Estamos no momento da grande mudança pelo que acontece com o digital. Um momento em que devemos ter a coragem de renunciar aos privilégios que conseguimos, e que nos mantiveram como líderes até agora; é um momento para reinventar o nosso trabalho; como todos os momentos de mudança, este pode ser doloroso, incômodo, porque no mínimo até agora você controlava tudo, sabia tudo sobre o seu mundo. Agora é preciso assumir riscos, ter muita curiosidade, experimentar e, sobretudo, estar treinado para se equivocar. Quem nos próximos cinco anos não se equivocar, e não se equivocar de maneira importante, creio que não chegará aos dez anos.

Já há riscos. O pirata está aí esperando que seja rentável roubar livros.
R.C. – Sim. A pirataria é um fato muito sério, muito doloroso, em alguns países mais que em outros. Mas, se me permite, os piratas são os únicos que conhecem verdadeiramente os best sellers. Para um autor, ser pirateado é quase uma satisfação porque significa que está vendendo muito. O pirata nunca erra!... Agora, falando seriamente, é certo combater a questão da pirataria até onde se pode, mas lhe digo a verdade: a responsabilidade da pirataria (falo da digital, sobretudo) é dos editores... A música não tinha barreiras de idioma, era vendida muito cara, te obrigavam a comprar um CD para ouvir, às vezes, apenas uma música. Em nível comercial, isto era sem dúvida um estímulo para piratear. Todos pirateamos música; aos doze ou aos quinze anos já gravamos uma canção de um disco para presentear uma fita cassete a uma noiva. Creio que não há ninguém no mundo que não o tenha feito. Portanto, não é preciso assustar-se com isso.

Mas é um problema para o editor...
R.C. – Quando a pirataria se converte em um fenômeno econômico tão relevante, não é a polícia que tem que resolver isso. Deve-se buscar uma solução econômica a nível editorial. Para o livro, sem dúvida, foi a edição de bolso, que não tinha até agora um desenvolvimento completo nem no mundo de fala hispânica nem no italiano. O mesmo acontecerá com o livro digital. Piratear o digital é muito mais fácil. E, além disso, se o consumidor digital quer alguma coisa, o quer para já, não está disposto a aceitar os planos da editora. O quer já, e se o encontra em outro lugar, o pirateia.

Fácil assim?
R.C. – Eu não sou pirata, mas baixo os Beatles no meu iPod caso não puder comprá-los. No digital, o que os editores têm que entender quando digo que perdemos o poder é isto: nós já não mandamos, já não dizemos: "Isto te dou, isto não." Alguém diz: "Se você não me der, eu o encontrarei, pois existe em algum lugar do mundo..." Temos que mudar a nossa atitude, perder o poder significa que nós não mandamos e que temos que respeitar verdadeiramente o consumidor. Respeitá-lo significa dar-lhe o que quer e ao preço que quer. Temos que mudar a nossa mentalidade, saber construir uma estrutura econômica que possa suportar esta mudança. Se não somos capazes, não merecemos continuar como editores. Isso se chama seleção natural. Creio que Darwin continua sendo a minha luz!

Todo o poder é do consumidor?
R.C. – Não. O poder está com o escritor e o consumidor. O editor é um intermediário, um contato. O que fará é colocar o escritor em contato com seu público, que também mudará porque é um público que tem uma comunidade de interesses; já não é o público de antes que todos conhecíamos. Não. Sabia-se quem eram aqueles que gostavam de romance rosa, em que há sexo... Com o romance digital, estamos vendendo muito mais o selo do romance rosa porque há muita gente que se envergonha de andar pela rua com um livro rosa. E o lê no formato digital. Como acontecia com a pornografia, que você escondia dentro do Financial Times... Para voltar ao começo, o editor perde poder? Sim, evidentemente, tem que perdê-lo. O poder está com o autor que escreve e meu trabalho como publisher é colocá-lo em contato com o seu público. Caso contrário, o autor me deixará por outro que sabe como chegar ao seu público. Antes, o problema principal era saber distribuir e chegar com a distribuição, e isso era verdade tanto para o editor grande como para o pequeno. Agora não há distinção entre o editor grande e o pequeno. A ferramenta baixou tanto o custo que já não existe essa diferença. Agora não há desculpas para dizer que não se consegue ter sucesso porque se é pequeno e os grandes grupos o estão matando. Agora vai se ver de verdade quem vale alguma coisa.

Reproduzido do site do IHU – Instituto Humanitas Unisinos; publicado originalmente no El País (13/03/2011), com tradução do Cepat.