0

 

A Luiz Vilela
Lentamente seus olhos se abriram para a claridade do quarto. Um pânico estranho, espécie de blackout, instalou-se em sua mente e, por um breve instante, ela esqueceu até mesmo quem era. No entanto, junto com a luz vinda da janela, Virgínia lembrou.
Lembrou da escuridão quebrada apenas pelo brilho das estrelas. Dos ruídos e cheiros da noite. Do som de seus sapatos esmagando as pedras. Da umidade pegajosa sobre o seu rosto. E com essas lembranças, veio outra, a da mão forte e áspera que apertava a sua. E, sem desejar, lembrou do abismo, negro e profundo, que havia tido diante de si.
O abismo era tão belo que lhe faltaram palavras. Um abismo tão assustador que viu nele a reprodução de uma boca negra e faminta pronta para mastigá-la e depois cuspi-la. Contudo, esse momento de terror foi rapidamente esquecido, pois ela tinha a mão dele na sua, fazendo-a sentir-se segura e protegida. “Ah, Deus!”, pensou, “Como pude me enganar tanto?”.
Imóvel na cama, quase sem respirar, Virginia também se lembrou do silêncio pesado e desconfortável que de forma abrupta se interpôs entre eles. Sem nada entender, ela permaneceu sozinha, contemplando o abismo. O silêncio, no entanto, a perturbava e, inocente, insistiu em quebrá-lo. Ela precisava ouvi-lo, precisava saber que ele não a havia abandonado ou esquecido.
Com um aperto no coração, Virgínia voltou a ouvir as palavras que tanto a feriram, “Estou querendo dizer que eu ia te matar”, ele disse com um sorriso esquisito. Idiota, ela não entendeu, quis que ele repetisse, pior, explicasse. E ele, sério, repetiu e explicou. E pela primeira vez, Virginia sentiu o real sabor do medo. Um medo pegajoso e inesperado. E a visão daquele abismo tornou-se insuportável e ela quis apenas sair dali, deixar tudo para trás, esquecer o que ouvira.
Com cuidado, Virgínia acomodou melhor o corpo na cama e seguiu acompanhando o avanço lento da luz pelo quarto. Sobre uma cadeira, roupas encontravam-se espalhadas, servindo de testemunhas mudas de algo que ela mesma havia provocado. Levantando o lençol, ela encarou a sua nudez. Sentiu vergonha. O que tinha feito? Por que tinha feito? Raiva? Mágoa? Algum tipo sórdido de vingança? Ela não sabia. Puxou o lençol para perto do rosto e tentou em vão se esconder.
Na volta, dentro do carro, nada melhorou. Ao contrário. Ela recordava, com uma desagradável nitidez, as tentativas de explicação. “O ser humano é muito complexo”, ele disse. “Uma coisa que houve e que passou”, repetia. “Você nunca sentiu vontade de me matar?”, quis saber. Não. Não. Não. Rígida, ela só sabia olhar para frente, tinha medo de perder o controle, permitindo que as lágrimas novamente viessem e a humilhassem ainda mais. Contudo, o pior veio depois.
Enquanto deixavam a sombra negra do abismo para trás e as luzes da cidade se tornavam cada vez mais fortes, pensou em várias formas de magoá-lo, de feri-lo. Viu-o caindo no mesmo abismo no qual ele desejou empurrá-la. Ouvi-o gritando, pedindo, suplicando sua ajuda, seu socorro. E de forma surpreendente, naquele instante, um desejo estranho começou a crescer dentro dela. Algo inexplicável e até mesmo doentio.
Somente quando o carro parou diante da casa é que ela compreendeu o que desejava. Devagar se aproximou dele e em silêncio segurou as suas mãos trazendo-as para junto do seu corpo. Agora foi a vez de ele ficar confuso. Virginia não se importou, precisava apenas transpor aquele abismo que havia se formado entre eles. Um abismo escuro, apavorante e estranhamente excitante. Queria cair, mas queria também levá-lo junto com ela. E, fechando os olhos, Virginia saltou, sem ter a certeza de que sairia inteira daquele mergulho.
No silêncio do quarto, todo iluminado pela luz do sol, Virginia contemplava o resultado da sua queda. Enquanto ele ressonava inocente ao seu lado, algo dentro dela havia irremediavelmente se partido. A morte no abismo não era a única maneira de desaparecer. Existiam outras, igualmente tristes e definitivas, Virginia agora compreendia.