Depoimento sobre Alcenor Candeira Filho

Elmar Carvalho

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Quando fui deixar vários exemplares da obra Novas Páginas Parnaibanas, enviados pelo seu autor, para serem distribuídos aos acadêmicos e visitantes da Academia Piauiense de Letras, o seu presidente, o jurista e escritor Nelson Nery Costa, consultou-me sobre a conveniência de lançá-los em evento de nosso sodalício, o que teve a minha pronta concordância e aplauso.

Assim, neste sábado, véspera do segundo turno da eleição presidencial, o livro foi lançado em nosso auditório, juntamente com os seguintes: O cantinho do poeta, de Jonas Piauí, por mim apresentado e prefaciado, Ermelinda, de Lili Castelo Branco, que teve a excelente apresentação do seu filho (e sucessor na APL) Heitor Castelo Branco Filho, e Teoria e realidade da desobediência civil, apresentado de forma elucidativa por seu autor, Nelson Nery Costa. Ao apresentar Novas páginas parnaibanas, disse que iria fazer uma espécie de depoimento e crônica memorialística sobre Alcenor Candeira Filho, porquanto nossa amizade perfaz quatro décadas. Tentarei, a seguir, recompor o meu discurso, baseado no roteiro mnemônico, a que me ative.

Tendo meu pai assumido a chefia da Empresa de Correios e Telégrafos em Parnaíba, fomos residir nessa cidade em junho de 1975, quando eu tinha 19 anos de idade. Em setembro desse ano fui morar em Teresina, para ingressar na ECT, mas no começo de 1977 retornei, em virtude de aprovação em vestibular, para fazer Administração de Empresas na Universidade Federal do Piauí, cujo curso era ministrado exclusivamente no Campus Ministro Reis Velloso, em Parnaíba.

Nessa época, quando o poeta Alcenor Candeira Filho foi aos Correios, para postar ou receber correspondência, um carteiro, sabedor de minha condição de literato, me chamou para conhecê-lo. Mas eu, um tanto retraído, algo tímido nos contatos iniciais, preferi vê-lo à distância, sem me dar a conhecer. Muitos anos depois, soube que ele lia os poemas de feição modernista que eu publicava nos jornais Folha do Litoral e Norte do Piauí, e um pouco mais tarde no alternativo Inovação.

O postalista, cujo nome não consigo recordar, disse-me, com postura algo confidencial, como se revelasse um segredo ou mistério, que Alcenor se formara em Direito para tentar reabrir o processo criminal sobre a morte trágica de seu pai, para dessa forma conseguir a condenação dos responsáveis pelo fato delituoso. Contudo, em livro que posteriormente escreveu sobre o assunto, o poeta afirmou jamais ter alimentado esse objetivo.

Ainda cheguei a ver um opúsculo, que alguém dera a meu pai, o qual continha a tese de defesa do brilhante causídico, jurista e escritor Celso Barros Coelho, que apesar disso se tornou amigo do poeta, tendo ambos sido colegas como procuradores federais (lotados no INSS), no magistério superior (UFPI) e como membros da Academia Piauiense de Letras (APL). O pequeno livro, em virtude de mudanças residenciais, terminou sendo extraviado, o que muito lamento, pois hoje poderia ser uma relíquia de minha biblioteca, pela raridade, e por ser um documento referente a um fato rumoroso do Piauí, e que abalou Parnaíba, no último trimestre do ano de 1959.

No começo de 1977 fiz amizade com Paulo de Athayde Couto, meu colega do curso de Administração de Empresas, filho do professor Lima Couto, poeta e erudito, que, para gáudio meu, admirava meus poemas, e com quem conversei tantas vezes, sobre poesia e outros assuntos culturais, debaixo do caramanchão do jardim de seu sobrado. Lima Couto admirava os poetas Abgar Renault, Longfellow e Tagore, dos quais recitava de memória alguns versos.

Paulo Couto, também poeta, começou por essa época a publicar crônicas no jornal Folha do Litoral. Em sua companhia, fui algumas vezes à casa do Alcenor, datando daí a nossa amizade, que se mantém inalterável e sólida, através do respeito e da admiração recíprocos, regada a muita conversa e eventuais goles de cerveja. O Paulo e eu participamos dos seguintes livros: Salada Seleta (prefaciado por Alcenor), Galopando, Em três tempos e Poesia do Campus (editado em minha gestão no Diretório Acadêmico 3 de Março).

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Nas vezes em que estive na casa de Alcenor, via na parede o retrato em preto e branco de seu pai, cuja essência biográfica e morte trágica já conhecia, mas nunca lhe indaguei a respeito, como se isso fosse um tabu ou assunto interdito, ao menos para mim. Porém, como no poema drummondiano, sabia que não se tratava apenas de uma fotografia na parede, mas de um símbolo do amor e da saudade, que certamente lhe pungiam a alma de poeta e de filho, como bem se pode constatar na leitura do poema elegíaco Passando em revista, cuja estrofe inicial transcrevo:

Passando em revista

o tempo da noite

vejo que meu pai

Alcenor Rodrigues Candeira

(trucidado em 59

pela família Cavalcante)

continua na parede

sem cabelos brancos

como eu não queria.

Tampouco tratei desse assunto com Canindé Correia, meu compadre e amigo há quarenta anos, casado com Tânia, sua irmã caçula, cuja mão o velho Alcenor segurava, na hora fatídica, no momento em que os sinos dobravam, não a finados, mas assinalando o instante final para a saída da procissão de Nossa Senhora das Graças, a padroeira da cidade; dobrava ele, no dia 11 de outubro de 1959, às cinco horas da tarde, a última esquina em direção à catedral e a curva fatal de seu destino. Muitos anos depois, o meu parente Geraldinho (Geraldo Majella Nunes de Carvalho) contou-me que seu pai, o magistrado Geraldo Majella de Carvalho, meu professor no curso de Direito, de forma algo enigmática o levou a ver a lápide do túmulo de Alcenor, em que ele leu o epitáfio: “Exemplo de honestidade, coragem e lealdade. ‘... E porque vivo ninguém o venceria covardemente o mataram.’”

Nunca seu pai lhe explicou a razão dessa visita inesperada e um tanto misteriosa em seu objetivo ao Cemitério da Igualdade. Nesse velho campo santo, no qual talvez tenha se inspirado H. Dobal, para fazer um poema homônimo, integrante de A Serra das Confusões, foi sepultada a minha prima Verônica Melo, falecida no auge de sua beleza e juventude, em virtude de um acidente com um fogareiro a álcool, cujo túmulo descobri por acaso, se é que existe o que chamamos acaso; a poetisa Luíza Amélia de Queiroz, de cujo mausoléu rebentou magnífica e copada gameleira, que partiu e retorceu a lápide, como para lhe atender o pedido expresso em versos, de que desejava repousar à sombra dessa árvore; o professor Amstein, engenheiro suíço, alto, de barba e cabelos ruivos, de muita verve e imaginação, quase um mitômano, que, no dizer de Renato Castelo Branco, era “barulhento, inconsequente e brincalhão”, e que já chegara a Parnaíba “montado em uma meia-verdade”; minha irmã Josélia, morta quando mal completara 15 anos, no apogeu de sua beleza e contagiante simpatia, em cujo jazigo meu pai fez afixar uma placa com os versos imortais de Da Costa e Silva: “Saudade – asa de dor do pensamento!”

Mas a Igualdade do nome é um tanto desmentida porque ao lado de sepulcros singelos estão os suntuosos mausoléus de (outrora) poderosos industriais, políticos e empresários.

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Transposta a digressão do parágrafo acima, reponho a locomotiva e o leitmotiv desta crônica memorialística e depoimento nos trilhos. Ao longo desses quarenta anos de amizade, eu e o Alcenor Candeira Filho participamos de muitos projetos literários em comum. À guisa de exemplo, sem consulta a livros e documentos, fomos partícipes de várias coletâneas e antologias, entre as quais cito: Poemágico – a nova alquimia, Poemarít(i)mos, A Poesia Piauiense no Século XX (org. Assis Brasil), Baião de Todos (org. Cineas Santos) e Antologia dos Poetas Piauienses (org. Wilson Carvalho Gonçalves). Fomos coautores de A Poesia Parnaibana e Parnárias – poemas sobre Parnaíba, dos quais também foram coautores Adrião José Neto (do primeiro) e Inácio Marinheiro (do segundo). Fomos ambos colaboradores dos jornais alternativos Inovação, Querela e Abertura, que circularam a partir da segunda metade da década de 1970.

Na seara da poesia e da prosa, arrolo os seguintes livros de sua autoria: Sombras entre ruínas, Rosas e pedras, A insônia da cidade, Antologia poética, Teoria do texto e outros poemas, Parnaíba: meu universo, Das formas de influência na criação poética, Aspectos da Literatura Piauiense, Literatura Piauiense no Vestibular, Memorial da cidade amiga e O crime da Praça da Graça. Nestes livros estão estampados belos poemas da literatura piauienses e fulgurantes textos da melhor prosa. Muitos analisam e elucidam aspectos da mais alta relevância de nossa arte literária.

O certo é que, em resumo, sua prosa límpida, objetiva, concisa, de bem delineada temática e redação, foi sempre admirável. E sempre lhe aplaudi os poemas, de diferentes matizes, assuntos e época, seja o mais singelo ou o mais criativo, o mais discursivo ou o de maior plasticidade, seja o repassado de telurismo, a cantar a beleza arquitetônica ou natural de Parnaíba, seja o que retrata figuras populares, dramáticas ou jocosas, ou ainda os que denunciam as mazelas sociais e da política. Para não falar de suas intertextualidades inventivas e de seus instigantes metapoemas.

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Não tive a honra de ser seu aluno. Contudo, ouvi vários depoimentos sobre sua performance como professor, sobretudo de literatura, no ensino médio. Fátima, minha mulher, foi sua aluna, e sempre teceu entusiasmados elogios às suas aulas, ao modo como ele sabia prender a atenção do discípulo. Sem dúvida pode ele ser considerado um dos melhores mestres dessa disciplina, tanto por ser um cultor das letras, como por ser um leitor voraz de obras literárias e de teoria do texto e da literatura. Posso, assim, afirmar que muitas de suas aulas eram verdadeiras conferências, ele que é um esmerado conferencista e tribuno, tanto pelo conteúdo, quanto pelo timbre, dicção e cadência vocal. Sem medo de errar, posso dizer que ele foi magistral no magistério, que sempre desempenhou com zelo, vocação e entusiasmo.

Já tive ocasião de reconhecer que ele foi pioneiro na imprensa alternativa piauiense, sobretudo na que utilizava o mimeógrafo, na qualidade de colaborador e de um dos idealizadores do jornal O Linguinha, cujo número inaugural foi lançado na noite que marcou a passagem de 1971 para 1972. Também afirmei o seu pioneirismo na publicação de livros mimeografados, no formato “apostila”, ao publicar os livros Sombras entre ruínas (1975) e Rosas e pedras (1976), com belos poemas elegíacos, em que se percebia certo pessimismo e algum timbre ou ressonância do simbolismo, sem embargo de sua modernidade e de denúncias socais e políticas, que atacavam as mazelas de então e de sempre. Publiquei essas afirmativas em sítios internéticos e nunca recebi contestação, razão pela qual as reitero agora.

Por oportuno e para não ficar me repetindo ou chovendo no molhado, acho melhor trazer à colação o que já disse alhures:

Durante quase todo o século XX, até meados da década de 70, a poesia feita no Piauí era um amálgama do simbolismo, do parnasianismo e, principalmente, do romantismo, com a predominância de temáticas elegíacas e, sobretudo, líricas, povoadas de amadas intocáveis, inatingíveis, com os poetas chorando essas paixões interditas. Posso afirmar, sem medo de erro, que o modernismo chegou muito tardiamente ao nosso Estado, mais precisamente na segunda metade da década de setenta (ao menos enquanto sistema literário), com a chamada geração mimeógrafo, geração 70 ou ainda geração pós-69, não importa que nome se lhe queira dar. Chegou para ficar, revisitando todos os ismos e todos os modernismos de 1922 até a contemporaneidade. Tanto isso é verdade, que já tive oportunidade de afirmar no meu opúsculo Aspectos da Literatura Parnaibana:

“É preciso que se diga e agora vou dizer, sem vaidade, mas também sem falsa modéstia: antes de Alcenor Candeira Filho, com seus dois livros (“Sombra entre Ruínas” e “Rosas e Pedras”), impressos em mimeógrafo, pioneiros, inclusive em termos de Piauí, da utilização desse equipamento na confecção de livros, que passou a designar uma geração literária, deste escriba e do poeta V. de Araújo, ambos com poemas publicados, ainda nos idos de 1977/1978, nas páginas de “Folha do Litoral”, o que se via em Parnaíba eram poemas obsoletos e formalmente ultrapassados, sobretudo sonetos de cunho parnasiano, escola já destroçada em 1922, pelo movimento dos modernistas, mas cujos influxos ainda não haviam chegado a Parnaíba, ao menos publicamente, através de livros e jornais.”

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Na qualidade de homem e de crítico literário sempre procurou ser franco e veraz, e nunca gostou de fazer concessões espúrias e nem elogios imerecidos. Por isso mesmo não faz promessas que não queira ou possa cumprir. Tanto isso é verdade (e conto isso apenas para ilustrar o seu caráter), que o confrade Homero Castelo Branco, com seu jeito bonachão, relata, com muita verve e graça, uma anedota verídica a seu respeito. Numa disputa eleitoral da Academia Piauiense, ele pediu, por telefone, o voto do poeta Alcenor. Este, com bons modos, mas com a sua reconhecida franqueza, respondeu-lhe que já estava comprometido comigo. Homero, de plano, lhe retrucou, com seu notável senso de humor e presença de espírito: “Pois faz muito bem! Se eu também fosse acadêmico, votaria era no Elmar”. Na eleição seguinte, o Alcenor e eu tivemos a satisfação e honra de lhe sufragar o nome vitorioso.

Como servidor público foi exemplar, ao cumprir os seus deveres com competência e responsabilidade, tanto nos cargos efetivos, como nos de confiança. Procurador federal, foi agente do INSS em Parnaíba por vários anos, sem que se ouvisse o menor ruído que pudesse desabonar sua conduta; antes, pelo contrário. Foi secretário da Educação e de Gestão do município de Parnaíba por doze anos, tendo exercido esses dois cargos com probidade e correção administrativa.

Fora da literatura, consolidamos nossa amizade e admiração recíprocas, que já remontam a quatro décadas, através de uma boa conversa e de uns bons goles de cerveja, em saudáveis libações etílicas, como diria o saudoso “confrade” Pereira, ou melhor, o imortal Pacamão, do livro de Assis Brasil e de meus PoeMitos da Parnaíba. E ainda por cima, pertencemos à nação rubro-negra, tendo os amigos Gervásio Castro e Fernando di Castro, irmãos e flamenguistas, nos feito belas charges, em que envergamos a camisa e o glorioso escudo do Flamengo.

Fomos motociclistas por muitos anos, de forma que não posso esquecer os meus verdes anos parnaibanos, em que os meus vastos e bastos cabelos ondulados farfalhavam ao vento, a percorrer em minha moto uivante as ruas noturnas de Parnaíba, como um jovem lobisomem que então eu era. Ó tempos! Ó saudades imortais de um tempo extinto, mas sempre ressuscitado na cornucópia incessante da memória.

Ao fazer esta espécie de crônica memorialística e depoimento sobre Alcenor Candeira Filho, tive o desiderato de prestar uma homenagem e um reconhecimento a um notável intelectual, professor, poeta e escritor que, com honestidade, sem ciúmes e sem inveja, sempre reconheceu, louvou e exaltou os verdadeiros valores da literatura parnaibana e piauiense, tanto na tribuna de uma sala de aula e dos auditórios, como através de seus livros e escritos avulsos, publicados em periódicos e na internet.