Deixa as águas rolar

 Tenho a incômoda consciência de que há pelo menos uma dúzia de professores de Português que lêem regularmente esta coluna.  Talvez sejam mais, mas estou pensando apenas naqueles que conheço em pessoa.  De vez em quando puxam-me as orelhas por causa dos meus erros de ortografia e concordância, barbarismos, cruezas de estilo.  Isto me lembra uma notinha que o pessoal do “Pasquim” publicou no auge do jornal: “Alguns leitores reclamam dos erros de gramática do Pasquim.  Queremos informar que todos os nossos redatores se exprimem num Português impecável, mas, depois do jornal pronto, pagamos um funcionário para inserir aleatoriamente os erros de gramática que contribuem para o perfil descontraído deste hebdomadário”.


Eu poderia alegar o mesmo, mas, pior que mentira, seria piada de segunda mão.  Prefiro lançar aqui uma teoria herética que talvez incomode a muita gente, porque a mim me incomoda há décadas.  É a noção de que a língua é mais forjada pelos ignorantes do que pelos estudiosos.  A convivência social das massas lhe dá formas novas, e estas costumam passar o rodo por cima das convenções e das regras.  Como dizia um poeta marginal: “Nossos vícios de linguagem são vícios porque somos minoria.  No dia em que nossa bandeira tremular no Petit Trianon, serão virtudes”.  (“Petit Trianon” é o palacete que abriga a Academia Brasileira de Letras, que já conta entre seus quadros com alguns notórios traficantes de linguagem coloquial, como João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna.)


Escrevo estas linhas enquanto lá embaixo passa um carro-de-som carnavalesco bradando: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar...”  É uma das mais queridas e ingênuas marchinhas de nosso carnaval (mesmo sendo uma apologia à droga).  E quando ela toca, todo mundo ergue os braços e brada, na hora do refrão: “Deixa as águas rolar!”  Isto é certo, é errado?  Deveríamos organizar (com verbas federais) uma força-tarefa de gramáticos para percorrerem os bailes de carnaval Brasil afora, Bechara em punho, mandando parar a orquestra no momento exato da transgressão? 


O gramaticalmente errado se infiltra na nossa fala por mais de uma razão.  A primeira é que as pessoas desconhecem as regras da gramática, porque não foram à escola, ou então foram mas foram mal (como eu).  A segunda é que as pessoas dão à linguagem uma função pragmática (“se entenderem o que eu quero dizer, isto me basta”) ou estética (“fica mais bonito falar assim”), e pouco estão ligando para a função que podemos chamar de científica – a coerência interna da Língua, a sua evolução ao longo do que consideramos seus caminhos naturais.  A terceira é que (ao contrário do que muita gente pensa) a gramática é um apêndice da língua viva, e não o contrário.  Os grandes gramáticos sabem disso.  O povo planta o que lhe dá na telha e os gramáticos colhem o que lhes apraz – mas o plantio é desmesuradamente, inconcebivelmente mais veloz do que a colheita.