Naquele dia, um sábado, em sua residência, como a esposa ainda dormia, para não a acordar, resolveu não acender as lâmpadas enquanto tentava pegar um par de tênis no sapateiro. Cidadão organizado que era, entendeu que eles, certamente, estariam no local onde os colocara na última vez em que os utilizara. Tateando, pegou um e o calçou. Foi até o closet e o iluminou, a fim de concluir sua arrumação; em seguida, saiu dali. Nesse vai e vem, não se examinou da cintura para baixo.
     Porque todos dormiam, ele fez o desjejum, sozinho, na cozinha; depois foi ao banheiro escovar os dentes.
     Sentiu certo desconforto nos pés ao caminhar, mas isso, a princípio, não o preocupou. Entrou no carro, ligou o motor, abriu o portão e partiu. Porém, o incômodo continuava. Parou o veículo e examinou os pés. Os cadarços dos tênis pareciam bem folgados, não deveria ser com eles o problema. Estaria com os pés inchados? Não sentia nada de anormal, a não ser aquela desagradável sensação de aperto. Dormira muito bem e nada mais lhe doía.
     Saiu do automóvel e resolveu fazer um teste mais acurado. Nem precisou dar qualquer passo. Ao olhar para os pés, percebeu que estava com tênis de marcas e modelos diferentes. Riu-se. Já pensou se tivesse ido mais longe, daquele jeito? Seria, obviamente, motivo de muita gozação.
     Voltou à sua casa e, lá chegando, após deixar o carro na rua, pé ante pé, entrou no quarto e viu que a esposa continuava dormindo. Foi ao sapateiro e descobriu que haviam mexido nele, pois vários pares de sapato encontravam-se embaralhados. Trocou o tênis do pé que mais o incomodava pelo companheiro de mesma marca e modelo, e se mandou.
     No caminho foi pensando no que fazer ao retornar para casa: deveria dar um pito na turma, por conta daquela confusão, ou seria melhor calar a respeito do incidente? Decidiu-se pela segunda opção: esquecer tudo e evitar a molecagem que, provavelmente, viria por parte da família.
     Outra coisa o encafifou: será que, antes, já saíra de casa com sapatos trocados e ninguém lhe dissera nada? Hum...
     Segunda-feira seguinte. Dia claro. Como precisava efetuar alguns pagamentos e fazer saques, decidiu entrar no estabelecimento bancário, apesar de estar sem o bendito par de óculos de leitura, esquecidos em sua residência.
     Triste decisão! Sensação horrorosa! Descobriu da pior forma possível sua dependência dos “pincenês”.
     O visor do caixa eletrônico escolhido era meio escuro e embaçado; como as filas nos demais estavam enormes, partiu para o sacrifício naquele mesmo.
     Em alguns documentos o código de barras não funcionava, ou melhor, em todos, como ficou sabendo à medida que não iam sendo lidos nem decodificados pelas lentes da máquina. Tentou digitá-los, manualmente. Sem êxito: tantos eram os números que não teve como não se atarantar. Resolveu, então, partir para os saques; todavia, as senhas, digitadas erroneamente, não coincidiam com as cadastradas junto ao banco. Feitas as tentativas permitidas e seguras, mas sem qualquer sucesso, desistiu. Colocou boletos e faturas debaixo do braço e saiu de fininho, cabisbaixo, frustrado, envergonhado.
     Como muitas contas venciam naquele dia, não houve outro jeito senão voltar em sua residência, pegar as lunetas e procurar outra agência bancária, de preferência, bem longe daquela, para fazer os pagamentos.
     Depois daqueles e de seguidos outros vexames, chegou a uma conclusão: tornara-se um deficiente visual. Não mais poderia sair de casa sem seus óculos. Velhice precoce ou não, fato é que estava dependente deles. Fazer o quê?
                                            Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal ([email protected])