Vejamos um conto fantástico que escrevi há muitos anos (1981) e que se passa numa cidadezinha do interior, onde funcionários corruptos da prefeitura cobram taxas extras e ilegais para a devolução de animais apreendidos na rua.

 

 

CARROCINHA NOTURNA

Miguel Carqueija


    Gonçalino Hermenegildo Travassos chutou o vira-latas que, de rabo entre as pernas e muito assustado, não pensou em reagir. Isso aborreceu Gonçalino, que queria um pretexto para maltratá-lo mais um pouco. O bicho foi se juntar com outros que lá se encontravam, latindo e chorando de angústia.
    — Que porcaria! — resmungou Edvaldo. — Eles estão rareando! Vamos pegar uns carneiros e bodes antes que o nosso dinheiro acabe!
    — E perus e gansos também. Há uns dando sopa lá pela favela do Angu...
    — É, vamos fazer isso. Gente safada que não vem buscar os desgraçados dos cachorros...
    — São uns miseráveis. Não querem gastar um centavo e nós aqui sem dinheiro para nada. Estou com minha tv enguiçada e a patroa vive reclamando. Estou quase dando uns tapas nela...
    Era um pátio decangular e fora isso, sem nada interessante. Olívio, o motorista, apontou os cães que brigavam e mordiam e falou:
    — Vocês podem pegar os perus e patos, mas eles não chegam vivos aqui. A não ser que não peguem cachorros na mesma viagem.
    Gonçalino e Edvaldo responderam com palavrões diversos.
    Por alguma razão desconhecida passou pela cabeça de Hermenegildo uma cifra: duzentos cães sacrificados na corrente elétrica, desde que ele entrara na profissão... só uns oitenta tinham sido resgatados. Gatos em menor número, por serem mais difíceis de apanhar... alguns foram estraçalhados no camburão.

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    Tarde da noite ele foi despertado com sobressalto. Tinha sonhado coisas muito estranhas. À distância, por entre nuvens imensas, um coro de duzentos cães uivava e parecia dirigir a ele olhares acusadores. Banhado em suor frio Gonçalino escutou as buzinadas familiares, por desafinadas, do velho carro da carrocinha. Agripina continuava dormindo pesadamente, até ruidosamente. Gonçalino levantou-se tropeçando nos chinelos e chegou à janela, continuando a escutar nítida a buzina. Abriu a janela.
    A carrocinha passou na rua à sua frente. Parecia a mesma carrocinha comprada pela Prefeitura há dezoito anos, velha e gasta, com a única diferença de ser toda branca e algo resplandecente. Eram duas da madrugada.
    Havia cães uivando dentro daquele veículo, mas não se viam, como não se avistava o motorista, nem ninguém mais. Paralisado de horror Gonçalino viu o carro dar a volta lá adiante e passar agora em sentido contrário, diante dele — como para não deixar dúvidas.
    Gonçalino correu para acordar sua consorte. Chamou-a aos gritos, puxou-a para a janela e mostrou-lhe...
    — Que é, homem, está maluco? Não há nada na rua.
    — Hein? Não ouviu a buzina? Olhe, lá vai ela!
    Vieram os filhos e também não viram nada.

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    Noite após noite a carrocinha-fantasma vinha acordá-lo. Agora cães brancos como a neve podiam ser vistos no seu interior, e Gonçalino tinha por vezes a impressão de reconhecê-los. Já não podia mais trabalhar, pois seu medo agora é que novos cães se juntassem àqueles que o acusavam.
    Foi obrigado a se licenciar e tornou-se cada vez mais histérico. Para Agripina ele estava doido varrido e o jeito foi tomar providências. Um belo dia ele foi levado de casa em camisa-de-força.
    Ainda está no sanatório e talvez um dia se recupere. Coincidência ou não, vários laçadores se demitiram algum tempo depois. Talvez não vissem a carrocinha noturna, mas impressionara-os o caso do colega...