[Flávio Bittencourt]

Daniela não tem aula de meditação, lamenta Frei Betto

Frei Betto é colunista, também, do jornal cabo-verdiano Liberal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

"Segunda, 7 de abril de 2008, 07h57

Sérgio de Souza - idealista da

'Caros Amigos' [REVISTA

EDITADA NA CIDADE DE

SÃO PAULO-SP, BRASIL]

Amancio Chiodi/ Caros Amigos/Especial
Sérgio de Souza, fundador da Caros Amigos, jornalista emblemático da imprensa alternativa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
"Sérgio de Souza, fundador da Caros Amigos, jornalista emblemático da imprensa alternativa

 

Juca Kfouri 

Quando Bertolt Brecht escreveu que havia homens imprescindíveis porque lutavam a vida inteira, certamente pensou em alguém como o jornalista Sérgio de Souza. Quando Miguel de Cervantes imaginou seu cavaleiro magro, alto e inconformado com as injustiças, talvez conhecesse alguém como Souza viria a ser numa carreira que fez do jornalismo, verdadeiramente, um sacerdócio."

(http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2728433-EI6584,00.html)

 

 

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FREI BETTO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
"O Brasil se tornou o paraíso do capital especulativo"
 
(FREI BETTO O. P. [FREI DOMINICANO],
pensamento reproduzido na abertura da 
importante entrevista concedida à revista Caros Amigos,
adiante reproduzida na íntegra)
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O PENSADOR LEONARDO BOFF TAMBÉM É COLUNISTA DO
 
LIBERAL, DE CABO VERDE, E ESTEVE EM CANCÚN,
 
ONDE SE REALIZOU A COP 16, QUE ELE,
 
COM EXCELÊNCIA LITERÁRIO-JORNALÍSTICO-TEOLÓGICA,
 
MAGNIFICAMENTE COMENTA:
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
II Coríntios 8: 9

Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FELIZ NATAL!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                  Quando se homenageia Frei Betto
                                                  (Carlos Alberto Libânio Christo), que                                             
                                                  resistiu - e ainda continua resistindo -,
                                                  a ele desejando saúde e vida longa,
                                                  a memória de Sérgio de Souza
                                                  (1934 - 2008), co-fundador e editor da
                                                  revista brasileira CAROS AMIGOS e
                                                  o POVO DE CABO VERDE
         
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
17.12.2010 - Ele é um colunista transcontinental - Transcontinental e TRANSATLÂNTICO, não no sentido de 'grande navio de passageiros', mas de COLUNISTA QUE É LIDO DA COSTA DO BRASIL À COSTA AFRICANA DO OCEANO ATLÂNTICO. Obrigado por seus maravilhosos textos, Frei Betto!  F. A. L. Bittencourt ([email protected])
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FREI BETTO CRITICA O CONSUMISMO DESVAIRADO QUE
 
INFELICITA A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA, 
 
EM ARTIGO PUBLICADO POR DEZENAS DE VEÍCULOS BRASILEIROS 
 
DE COMUNICAÇÃO DE MASSA, SENDO QUE ESSE TEXTO
 
FOI TAMBÉM DIVULGADO, NA COSTA ATLÂNTICA DA
 
ÁFRICA, POR LIBERAL, DE CABO VERDE, ÓRGÃO NOTICIOSO
 
(PRIVADO, COM SEDE EM PRAIA, CAPITAL DAQUELE PAÍS) QUE
 
CONTA COM FREI BETTO COMO UM DE SEUS MAIS NOTÁVEIS
 
COLUNISTAS [O NÚMERO DE ACESSOS DIÁRIOS A LIBERAL ONLINE
 
CHEGA A UM MILHÃO E OITOCENTOS MIL, DE ACORDO COM SEUS
 
EDITORES]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ARTIGO DE FREI BETTO O. P.,
 
EM LIBERAL, DE PRAIA, CABO VERDE 
 
 
 
 
 

SECÇÃO: Colunistas


6 Out, 16:27h

"Frei Betto - O MUNDO VIRTUAL AO ESPIRITUAL

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã... ' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'

Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seriam importantes os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi¬nho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais...

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções - é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis,¬ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba¬ precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma su¬gestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's.

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: 'Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz”. '

 

Frei Betto".

 

(http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=20718&idSeccao=527&Action=noticia)

 


 

 

  

 

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REVISTA CAROS AMIGOS ONLINE -

ENTREVISTA CONCEDIDA POR FREI BETTO O. P.

(JULHO / 2010)  

 

 
 
 
"26/07/2010 
 
 
Entrevista Frei Betto:
'O Brasil se tornou o paraíso do capital especulativo'
 
   
 
 
Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues e Tatiana Merlino.
 
 
Frade dominicano, jornalista, escritor, autor de 52 livros, Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, foi militante contra a ditadura civil-militar, ajudou na fundação da CUT e do PT. Foi assessor da Presidência da República para assuntos sociais, onde coordenou o programa Fome Zero. Nesta entrevista, Betto fala sobre o período em que trabalhou como jornalista, a chegada do PT ao poder, os rumos da esquerda do país e sobre o governo Lula. Para ele, embora o governo atual seja “o melhor da história republicana do Brasil”, o PT e um grupo hegemônico que o comanda “trocaram um projeto de Brasil por um projeto de poder”. Entre as lições que aprendeu no período em que esteve no Planalto, uma delas é que “o governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão”.
 
Caros Amigos - Hamilton Octavio de Souza - Fale sobre você, onde nasceu, onde estudou, como  começou a ter militância?
Frei Betto - Sou mineiro, e como diz o Drummond, a gente sai de Minas, mas Minas não sai da gente. Meu pai era advogado e terminou a sua vida profissional como juiz. Era homem de extrema direita e terminou de extrema esquerda. A única vez que saiu do Brasil foi para ir a Cuba. A minha mãe é uma especialista em culinária, tem oito livros de culinária, entre eles o “Fogão de Lenha, trezentos anos de cozinha mineira”. É considerada a maior especialista nesse tema no Brasil. Éramos oito irmãos; um já faleceu, o mais novo.
 
Hamilton Octavio de Souza - De que cidade de Minas?
Todos de Belo Horizonte. É um caso raro em uma cidade que tem pouco mais de 100 anos. Meus pais também nasceram em Belo Horizonte. Mais raro ainda: os dois e os oito filhos estudaram no mesmo grupo escolar Barão do Rio Branco, que há pouco fez 90 anos. Tive uma infância extremamente feliz, de moleque de rua, não havia a psicose televisiva. Brincava-se muito na rua, havia muita leitura, porque meu pai tinha duas manias: padaria e livraria. E ele comprava muito mais livros do que tinha tempo para ler, e não havia cômodo na casa para servir exclusivamente de biblioteca. Todos os cômodos, menos o banheiro e a cozinha por razões óbvias, tinham livros. Creio que minha vocação literária tenha a ver com isso. Meus pais escreviam, minha mãe na culinária e ele cronista dos principais jornais de Belo Horizonte durante mais de quarenta anos. Bem, depois, com treze anos, entrei na militância estudantil através da Juventude Estudantil Católica, a JEC.
 
Tatiana Merlino - Em que ano foi isso?
Em 1959. Na mesma época entrou o Henriquinho, que o Brasil conhece como Henfil. Nós dois éramos considerados muito crianças para pertencer à JEC. E esse desafio nos levou a nos firmar como militantes. Claro que o Henfil entrou por influência do Betinho, um dos fundadores da JEC de Belo Horizonte e depois foi para a Juventude Universitária Católica (JUC). E através da JEC é que eu  comecei precocemente a ler muito filosofia, teologia e literatura. A primeira vez que eu enfrentei a repressão foi no dia 25 de agosto de 61, quando o Jânio Quadros renunciou à presidência. Depois, com 17 anos, fui indicado para a presidência da JEC. Então, me mudei para o Rio, onde fiquei de 62 a 64 numa república de estudantes, onde moravam doze rapazes e recebíamos mais uns 20 por mês que vinham de outros Estados para a UNE, ntre eles o Betinho e o Zé Serra. Nesses três anos eu percorri o Brasil todo duas vezes, articulando o movimento. Em 64 entrei na faculdade de jornalismo. Vocês vão morrer de inveja: meus professores eram o Tristão de Ataíde, Hermes Lima, Barbosa Lima Sobrinho, Danton Jobim.
 
Hamilton Octavio de Souza - Qual a faculdade?
Chamava Universidade do Brasil, depois acabou. Tinha grandes figuras da história do jornalismo brasileiro. Para contrabalançar, tinha o Hélio Viana, de extrema direita e cunhado do general Castelo Branco. Em junho de 64 eu estava na faculdade lá no Rio e fui preso pela primeira vez quando houve o arrastão da Ação Popular. Fiquei 15 dias preso, confundido com o Betinho, por conta dessa coisa de Beto, de JEC e JUC de Belo Horizonte. Eles estavam atrás do Betinho, que foi o grande fundador, a grande figura da Ação Popular, que depois conseguiu sair do país. Daí surgiu aquela dúvida: será que Deus quer que eu seja religioso? Crise vocacional forte. E convencido de que eu não tinha vocação, decidi entrar nos dominicanos em 65, porque não queria chegar aos 40 anos, olhar para trás e falar: “Ih! Acho que eu errei de caminho”... Mas eu queria tirar a limpo, ver no que vai dar. Entrei e isso já são quarenta e cinco anos.
 
Hamilton Octavio de Souza - Era um seminário?
Não, porque eu já tinha vinte anos. Os dominicanos no Brasil não têm seminário. Só aceitam quem terminou o ensino médio completo ou está na universidade. Que é melhor porque a pessoa é mais lúcida, essa ideia de seminário eu acho muito antipedagógico, é até desumano você colocar uma criança de 13, 14 anos no seminário. Eu acho que é por isso que tem tanto problema de pedofilia, de violência sexual. O cara vive naquela redoma patriarcal, machista e onde a sexualidade  é sempre considerada pecado, enfim... Mas aí entrei nos dominicanos em Belo Horizonte. Em 66, eu vim para São Paulo para fazer filosofia, fiquei aqui de 66 a 69, aí aconteceram muitas coisas.
 
Hamilton Octavio de Souza - Você trabalhou na Folha, não é?
Trabalhei primeiro na revista Realidade. De lá, fui para a Folha da Tarde, que foi refundada com Jorge de Miranda Jordão. E lá fiz de tudo, desde geral até editoria de polícia. Cobri muito movimento estudantil e depois fui chefe de reportagem, e fui assistente do Zé Celso na montagem do Rei da Vela. Fui colega do Merlino, na Folha da Tarde. Além disso, eu estudava Filosofia de manhã e à noite fazia o curso de antropologia na Maria Antonia. Em 69 houve o AI-5, eu já estava bastante pressionado pela repressão. No início de 69, eu decido ir para o Rio Grande do Sul, porque o cerco estava se fechando, meu projeto era passar um tempo fora do Brasil, iria para a Alemanha estudar teologia. Fui para São Leopoldo, onde tinha um seminário de jesuítas, muito bom, e aí o Marighella me pediu para montar um esquema de fazer sair gente pela fronteira Sul com a Argentina e Uruguai. Um mês antes de eu ir para a Alemanha, os dominicanos, aqui em São Paulo são presos. Afinal, sou cercado no Rio Grande do Sul, consigo fugir uma semana, fui preso, caí numa cilada. Fiquei quatro anos preso, em São Paulo, só fiquei um mês preso em Porto Alegre, depois vim para cá. Foram dois anos como preso político e dois anos como preso comum, caso raro.
 
Hamilton Octavio de Souza - Foi na Tiradentes?
Foram oito prisões diferentes, a Tiradentes foi uma. Descrevo em detalhes num livro lançado no ano passado, que ficou quarenta anos guardado, chama Diário de Fernando, da Rocco. É um diário que foi do Fernando, um amigo meu, e a gente levou quarenta anos para publicar. 
 
Lúcia Rodrigues - Por que levou todo esse tempo?
Primeiro, o Fernando não é jornalista nem historiador, mas teve o cuidado de anotar em papel celofane que saía dentro de canetas na visita. O frade levava uma caneta exatamente igual à que ele tinha e no meio da conversa trocava a caneta. Dentro vinha um celofane, depois se desmontava. Então, nos papéis, tinha coisas assim: “Paulinho foi para o Doi-Codi”. Ora, que Paulinho? Que data? Que aconteceu? O Fernando queria fazer o diário, mas não era do ramo, nem historiador e nem jornalista; depois de muitos nos ele falou: “Não Betto, você faz”. Aí teve toda uma pesquisa para decifrar cada papelzinho daquele, foi tudo computadorizado, teve até que ler com lente, porque ele mesmo às vezes não entendia, não lembrava a anotação. Nos últimos anos, de 2006 a 2009 me dediquei quase que exclusivamente a esse livro. Ele descreve os que a gente ficou como, primeiro, preso político, depois comum. Fomos condenados a quatro anos, e o recurso osso no Supremo Tribunal Federal foi julgado,  e reduziram a nossa pena de quatro para dois anos quando nós completávamos os quatro anos. Eu brinco que a gente tem um crédito com a liberdade de dois anos. 
 
Tatiana Merlino - O senhor pediu indenização para o Estado brasileiro?
Respeito muito quem pediu, mas nunca pedi. Primeiro porque não quero transformar uma questão política em uma questão financeira. Acho que não há dinheiro que pague o que sofri. Depois, porque embora tenha muita gente que eu respeite e por quem até lutei para que merecessem a indenização, acho que tem muita gente que foi com sede no pote de ouro, gente que recebeu indenizações milionárias e foi interrogado, esteve uma semana preso, enfim. Acho que virou uma certa farra esse negócio, então preferi não pedir. Em terceiro, porque eu não preciso do dinheiro do governo, eu consigo sobreviver do meu trabalho. Isso é dinheiro público, se fosse do bolso dos generais eu até aceitaria, iria reivindicar, mas não, e não quero usar em benefício pessoal.
 
Tatiana Merlino - Essa não foi uma maneira do Estado brasileiro reconhecer que essas pessoas foram realmente presas e torturadas?
Haveria outras maneiras. Por exemplo, o Estado até hoje não pediu perdão à nação pelo erro que ele cometeu. Essa é uma das dívidas, inclusive o governo Lula, que devia pedir perdão, em nome do Estado, assim como o papa pediu perdão à humanidade pela condenação de Galileu e agora de Copérnico.
 
Lúcia Rodrigues - Mas no governo Lula, nesse caso recente do STF e da OAB, mais uma vez manteve a impunidade aos torturadores.
Eu gostaria inclusive que abrissem os arquivos das Forças Armadas, continuo lutando por isso. Fiquei perplexo e horrorizado com a decisão do STF, porque não só é uma forma de absolvição legal de crimes hediondos, de lesa-humanidade, imprescritíveis, inclusive pela legislação dos tratados internacionais firmados pelo Brasil. Também é uma forma de abonar a tortura que continua nas delegacias praticada pelos policiais civis e militares Brasil afora. Enquanto eu viver lutarei para reverter essa situação. Tenho dedicado minha obra literária à memória desses anos de chumbo. São vários livros, o Cartas da Prisão, Batismo de Sangue, Dia de Anjo, Canto na Fogueira, que fiz com Frei Fernando e Frei Ivo, e agora o Diário de Fernando. Esqueci algum? Acho que não. As Catapuntas, que é o Cartas na Prisão, enfim. Assim como 60 anos depois a memória do sofrimento dos judeus por causa do nazismo continua viva, daqui a duzentos anos a memória do sofrimento das vítimas da ditadura militar também estará. Quer dizer, é um equívoco do STF, do governo, dos militares pensar que essa memória se apaga.
 
Hamilton Octavio de Souza - Quando você saiu da prisão, o que fez?
Saí no fim de 73.
 
Tatiana Merlino - Poderia falar sobre o período que ficou em São Paulo militando e trabalhando como jornalista?
Congresso da UNE é um bom exemplo. Quem conseguiu o local do Congresso foi o Frei Tito, lá em Ibiúna, um sítio, por isso que ele foi tão barbarizado na tortura a ponto de ser levado à morte. Eu conhecia o local e armei um esquema com o pessoal da ALN e com o Frei Tito de que qualquer sinal que a repressão tivesse notícia do local do Congresso, esse sinal viria através dos setoristas do jornal. Naquela época nós já tínhamos os setoristas no Dops, no exército e etc. Eu daria um aviso para que eles pudessem se safar. E, de fato, o setorista do Dops chegou na redação e disse: “tão falando lá no Dops que tem um pessoal que estaria reunido lá pelo lado de Ibiúna e tão querendo investigar e tal.” Aí eu chamei o repórter Rogério e disse: “Você vai agora avisar a direção que a polícia está indo para lá”. O Rogério foi, mas cometi um grande equívoco. Não me passou pela cabeça que o carro da Folha, com a sua logomarca na lataria, iria ser hostilizado pela segurança do Congresso. Resultado: o Zé Dirceu me disse depois que a notícia chegou à direção do Congresso, que eles podiam ter se safado, mas surgiu um problema de consciência: “e esses mil companheiros e companheiras que estão aqui?” Aí decidiram esperar, e deu no que deu, foram todos presos. Muitas vezes eu sabia de ações revolucionárias antecipadamente e armava o jornal para isso, por isso que a Folha da Tarde era quem melhor cobria a esquerda na época. Bem, voltando ao período da saída da prisão, no fim de 73, e com muita pressão da família, da Igreja e da repressão para ir para fora do Brasil, me veio uma questão de consciência: “quando vou voltar? Quero lutar no Brasil, não se muda um país estando fora dele”. Por outro lado, “esses caras já me fizeram ficar preso o dobro do que eu merecia segundo eles. Não vou embora não, vou ficar aqui”. Então decidi ir para Vitória, que naquela época era uma cidade politicamente mais calma. Fui morar na favela de Santa Maria. Comprei um barraco lá, que está tombado, física e emocionalmente  tombado. Lá mora uma amiga, a quem eu “vendi” por 50 reais com o acerto de que o dia que ela sair de lá eu tenho que ser a primeira pessoa a quem ela vai oferecer o barraco".
 

(http://carosamigos.terra.com.br/index_site.php?pag=revista&id=145&iditens=675)

 

 

 

 

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(*) - "JORNALISMO INTERNACIONAL: (...) (A) revista Cadernos do Terceiro Mundo (1975-2005) (FOI) uma referência no jornalismo internacional brasileiro, por ter sido, durante décadas, a ÚNICA publicação especializada em noticiário internacional na nossa imprensa, e pela linha editorial crítica que adotava. (...)".
 
sendo que o grifo na palavra 'única' já estava no original.)