Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, Concelho de Mafra, Portugal.
Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, Concelho de Mafra, Portugal.

Reginaldo Miranda[1]

 

  1. São Domingos da Fanga da Fé

À medida que aparecem novos documentos vão sendo esclarecidas as origens de nossos primeiros colonizadores e os liames esquecidos entre as famílias pioneiras no assentamento da base colonial portuguesa em terras do Novo Mundo. É o caso da família Afonso, de que foram pioneiros Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra, dois dos maiores sesmeiros do Brasil colonial. Sob influência deles vieram muitos de seus sobrinhos estabelecer-se na Bahia e no Piauí, também eles pioneiros nesse processo histórico. Eram naturais da freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, arredores de Lisboa, então termo de Torres Vedras, depois passando ao concelho de Mafra. Os primeiros eram filhos de Julião Afonso, o velho, senhor de uma vinha na ribeira do Barril e de sua esposa Jerônima Francisca, residentes no lugar Casal da Serra, daquela freguesia.

Essa freguesia tem origem numa propriedade rural da coroa, a Quinta da Rainha, também conhecida por Quinta de Fanga da Fé, que foi doada pelo rei D. Dinis, à rainha D. Isabel de Aragão[2], em 1298. Com o tempo sobressai uma movimentação religiosa na capela erigida em louvor ao orago São Domingos, transformada em freguesia no ano de 1622, sob a invocação de São Domingos da Fanga da Fé. Certamente, recebeu essa denominação porque além da devoção ao taumaturgo também existia local onde se media e/ou vendia cereais. Segundo os dicionários, fanga significa medida de cereais equivalente a quatro alqueires; lugar onde se vendiam cereais por estiva; arrendamento por medidas; enfim, porção de terra arável que leva quatro alqueires de semente. No entanto, sendo arruinada a capela no terramoto de 1755, mudou-se a sede da freguesia para a vizinha capela de Nossa Senhora da Encarnação, no lugar da Labagueira.

Por sua vez, Encarnação tem sua origem em outra propriedade rural denominada Giral Picanço, morgado instituído no século XIV por D. Miguel Lobato, de que se originou a Quinta da Lobagueira (1309), depois denominada Lobagueira dos Lobato e, por fim, Encarnação.

Com a reforma administrativa de 24 de outubro de 1855, a freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, passou definitivamente a pertencer ao concelho de Mafra, desanexada que fora de Torres Vedras. A área da freguesia é de 2.848 hectares, possuindo uma população[3] eminentemente rural, por isso mesmo dispersa em pequenos sítios, laborando na agricultura e na pecuária. A base econômica sempre foi a produção de vinho, embora além dos vinhedos também cultivasse trigo, milho e cevada. Pois em meio a essa lida rural, existem famílias radicadas desde tempos imemoriais, cultivando o solo fértil, a cujo barro está ligada desde muitas gerações, sem mobilidade geográfica, sempre naqueles arredores. “Gente que sofreu a sua vida simples, numa época particularmente difícil entre tremores de terra, invasões estrangeiras, guerras civis, desgovernos sucessivos, de todo o mal, infelizmente, um pouco. Gente que nasceu sem a luz elétrica, que amassava o seu pão e o cozia, semanalmente, com a lenha arrancada dos matos, que de enxada, cavou a vinha do seu sustento, que construiu as suas moradas e a ermida de Santa Catarina e, depois por milagre, Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, enfim, gente que, com muito pouco, fez quase tudo!”[4].

 

  1. Julião Afonso e sua descendência

 

Entre essa gente estavam os irmãos Julião Afonso e Jorge Afonso, residentes no Casal da Serra, onde cultivavam suas vinhas. Conforme se disse, JULIÃO AFONSO, o velho, falecido em 15.4.1652, foi casado com JERÔNIMA FRANCISCA, falecida em 13.2.1656, sendo eles laboriosos no cultivo de suas terras e na produção do vinho, para abastecer o comércio da vizinha corte de Lisboa. Sobre eles lemos o registro de que cultivavam suas próprias terras e fabricavam seus próprios tonéis de vinhos. Esses laboriosos lavradores da ribeira do Barril, entraram para a história como pais e avós de grandes vultos que se destacaram na colonização da colônia portuguesa da América, mais especialmente do Sertão de Dentro. Seus filhos Domingos e Julião foram dois dos maiores sesmeiros do Brasil. E outros descendentes também se destacaram nesse processo colonizador, conforme se verá. Foram seus filhos:

F.1. Andreza Jerônima[5], batizada em 8.9.1624, falecida 27.12.1650; foi c.c. Francisco Gomes, moradores na Lobagueira; filhos: F.1.1. Maria Francisca, casou-se em 23.11.1653, com Francisco Dias, filho de Lucas Dias e de sua mulher Maria Jorge, moradores na Estrada; F.1.2. Joana Francisca, casada em 6.10.1686, com Simão Domingues, filho de Bernardo Lopes e Isabel Domingues[6]; F.1.3. Suzana, batizada em 19.8.1657; F.1.4. Domingos, batizado em 19.10.1659.

F.2. Martha Francisca, batizada em 8 de agosto de 1632; 1ª vez, em 16.11.1653, casou-se com Agostinho Francisco, filho de João Gomes e de sua mulher Domingas Rodrigues, já defuntos, moradores nas Matas; filhos: F.2.1. Agostinho, batizado em 6.9.1654; F.2.2. Maria Francisca, batizada em 12.4.1656; em 14.11.1677, casou-se com Simão Álvares[7], filho de Domingos Álvares e Maria Dias, moradores que foram na Quinta da Fanga da Fé; filha: F.2.2.1. Maria Francisca, da Casal da Gentia, batizada em 30.10.1678; casada com Pedro Álvares; filhas: F.2.2.1.1. Faustina Maria; F.2.2.1.2. Josefa Maria, batizada em 25.3.1713; F.2.2.1.3. Joana Maria; F.2.2.1.4. Catharina Maria. Martha Francisca, depois de viúva, 2ª vez, em 15.10.1656, casou-se com Domingos Rol, filho de Francisco Rol e de sua mulher Domingas Dias, moradores no Casal do Pinheiro, freguesia de São Pedro da Cadeira, do termo de Torres Vedras; filhos: F.2.3. Domingos, batizado em 22.12.1658; F.2.4. Manoel Francisco, por alcunha o Matoso, por nascer no Casal do Mato, foi batizado em 28.7.1675; morador no lugar da Picanceira, do termo de Mafra; em 20.11.1695, c.c. Ana João, filha de João Vaz e de sua esposa Maria João, moradores na Picanceira, freguesia de Santo Isidro, do termo de Mafra; filhos: F.2.4.1. Josefa Maria, batizada em 19.3.1702, na igreja de Santo Isidro, casada em 15.7.1720, com Domingos Francisco, filho de outro Domingos Francisco e de sua mulher Francisca Rodrigues, moradores no lugar Ribamar de Baixo, da mesma freguesia; filha: F.2.4.1.1. Jerônima Teresa, nascida nu lugar Ribamar de Baixo, da freguesia de Santo Isidro, em 19 de junho de 1744 e batizada nove dias depois; casada em 6.11.1775, com José Rodrigues Ferreira, filho de Manoel Rodrigues e Thamazia Maria, moradores que foram no lugar Ribamar de Cima; F.2.5. Domingas Francisca, em 22.9.1682, casou-se com Francisco Domingues, filho de Domingos Gomes e Domingas Francisca; F.2.6. Francisca, batizada em 17.4.1677; F.2.7. Joana, batizada em 24.9.1669; F.2.8. Francisco, batizado em 20.3.1672; F.2.9. Manoel, batizado em 8.7.1675; F.2.10. Antônio, batizado em 16.10.1678.

F.3. Gabriel Afonso, morador na Lobagueira, batizado em 15.7.1635; em 9.2.1659, casou-se com Maria João, filha de Luís Álvares e Francisca João, moradores na freguesia de Pedro da Cadeira; filhos: F.3.1. Maria, batizada em 22.7.1660; F.3.2. Maria, batizada em 25.4.1662; F.3.3. Domingos, batizado em 20.4.1665; F.3.4. João, batizado em 23.10.1668; F.3.5. Maria, batizada em 27.11.1672.

F.4. Domingos Afonso Sertão, batizado em 18 de julho de 1638;

F.5. Julião Afonso Serra

F.6. Domingas Francisca[8], foi casada com Domingos Jorge, moradores na Lobagueira; filhos: F.6.1. Domingos, batizado em 16.3.1665; F.6.2. Catharina, batizada em 2.4.1669; F.6.3. Domingas, batizada em 24.10.1673; F.6.4. Domingos, batizado em 20.10.1675 (2º do mesmo nome); F.6.5. Maria, batizada em 3.10.1678; e, F.6.6. João, batizado em 14.9.1682.

F.7. Maria Francisca, moradora no Barril, falecida em 17.9.1651, no estado de viúva, em casa de seus genitores, no Casal da Serra, para onde foi convalescente; em 22.11.1631, casou-se com Antônio Pires, filho de João Pires e Isabel Dias; em 2.11.1643, casou-se com João Álvares, filho de Fernão Álvares e de sua mulher Margarida João, moradores no lugar do Barril. 

F.8. Sebastiana Francisca, em 24.11.1641, casou-se com João Miguel, filho de Miguel Fernandes e Ignês Dias; em 24.11.1647, casou-se com Francisco Gomes, filho de Domingos Gomes e de sua mulher Catarina Dias, moradores nas Covas.

F.9. João Afonso, morador no Casal da Serra, casou-se em primeiras núpcias, em 21.11.1655, com Antônia Álvares, filha de Domingos Dias e Domingas Fernandes, moradores no Casal do Fogeira; assistiu à morte dos genitores e fez as devidas declarações no eclesiástico. (João Afonso e sua segunda esposa Maria Álvares, moradores no Casal da Serra, são os pais de Maria João, que casou-se em 9.3.1675 com João Jorge, morador na Casal da Serra, filho de João Jorge e Maria Simão, “os quais foram dispensados no quarto grau por duas partes de consanguinado e por outra parte no terceiro também de consanguinidade”).

  1. Jorge Afonso, irmão de Julião Afonso, o velho.

Dentre os irmãos de Julião Afonso, o velho, também morador no lugar Casal da Serra, da freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, figura Jorge Afonso, agricultor, que ali faleceu em 27 de abril de 1640; foi casado com Maria Álvares, também natural daquela freguesia, tendo deixado de seu matrimônio os seguintes filhos:

F1. Maria Jorge, casada com Joao Duarte; filho: F.1.1. Domingos Duarte, morador no lugar Casalinho, casado com Ana Miranda; filha: F.1.1.1. Maria Duarte; filha: F.1.1.1.1. Maria Duarte, a moça, moradora no lugar da Fugeira, freguesia de S. Silvestre do lugar do Gradil da vila de Torres Vedras, casada com Manoel Francisco.

F.2. João Jorge, morador no Casal da Serra, em 22.11.1648 casou-se com Domingas Francisca, filha de Agostinho Francisco e de sua mulher Guiomar Álvares, moradores na dita freguesia; filhos: F.2.1. Maria, batizada em 27.3.1650; F.2.2. Domingas, batizada em 21.1.1652; F.2.3. João Jorge, batizado em 18.3.1655, casado com Maria Álvares, moradores no Casal da Serra; filhos: 2.3.1. Maria, batizada em 29.5.1679; F.2.3.2. Domingos, batizado em 20.5.1683; F.2.4. Domingos, batizado em 10.3.1658; F.2.5. Bartolomeu, batizado em 14.9.1661. João Jorge, 2ª vez, em 27.10.1664, casou-se com Domingas Simoa, filha de Simão Rodrigues e Domingas Fernandes, moradores no Casal; filhos: F.2.6. Magdalena, batizada em 7.2.1666; e, F.2.7. Joana, batizada em 25.8.1669.

F.3. Domingas Jorge, moradora nos casais de S. Suzana, casou-se em 22.11.1648, com Francisco Dias, filha de Agostinho Francisco e de sua mulher Guiomar Álvares, moradores na dita freguesia; filhos (entre outros): F.3.1. João, batizado em 6.4.1665.

F.4. Domingos Jorge, morador no Casal da Serra.

Conforme se observa, seus descendentes vão adotar o nome do genitor como apelido familiar. Comprovadamente é irmão de Julião Afonso, tendo algumas de suas descendentes pleiteado dotes do patrimônio deixado pelo parente Domingos Afonso Sertão, com fundamento nas cláusulas de seu testamento.

  1. Álvaro Afonso, também irmão de Julião Afonso, o velho.

Ao contrário do que afirmamos com relação a Jorge Afonso, não temos a mesma certeza de ser-lhes irmão o também agricultor Álvaro Afonso, por falta de documentação comprobatória. No entanto, a coincidência de nome e contemporaneidade numa freguesia em que residiam menos de trezentos casais, nos capacita a indicar-lhe o parentesco, sobretudo depois de nos deter em minucioso estudo dos livros eclesiásticos da paróquia. Somente fazemos essas considerações por motivo de honestidade intelectual, acreditando que ainda possa aparecer o documento comprobatório. Álvaro Afonso, era morador no lugar da Lobagueira, da freguesia de S. Domingos da Fanga da Fé, onde faleceu em data de 10 de julho de 1652; fora casado com Maria Francisca, falecida em 20 de março de 1648, deixando os seguintes filhos:

F.1. Francisco Domingues, em 2.3.1642 casou-se com Cristina Francisca, filha de Jerônimo Francisco e Margarida Domingues, moradores no lugar da Lobagueira, desta freguesia.

F.2. Domingos Jorge, morador no lugar do Barril, filho de Álvaro Jorge e de sua mulher Maria João, já defuntos, moradores que foram no lugar da Lobageira, em 25.11.1652 casou-se com Maria Francisca, filha de Domingos Jorge e de sua mulher Maria Francisca, já defuntos, moradores que foram no Barril (imagem 88); filhos: Catherina Jorge, em 17.12.1664, casou-se com Vicente Francisco, filho de João Francisco e Domingas João.

 

c) Domingos Afonso Sertão, rico sesmeiro do Piauí

Domingos Afonso Sertão, foi um dos mais bem sucedidos conquistadores de terras e colonizadores do período colonial, sendo um dos quatro grandes sesmeiros do Piauí; residente na cidade da Bahia; cavaleiro professo da Ordem de Cristo, capitão de infantaria da ordenança da Bahia, nomeado em 9 de julho de 1674; tesoureiro geral do Estado do Brasil, nomeado em 4 de outubro de 1691; vereador do senado da câmara de Salvador (1697); irmão e provedor da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, de que recusou ser conselheiro em 1690, depois de eleito por seus pares; conquistador dos vales dos rios Piauí, Canindé e regiões adjacentes; rico sesmeiro, juntamente com o irmão Julião Afonso Serra, eram donos de metade das terras descobertas e povoadas no Piauí; nascido no lugar Casal da Serra, da freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, então pertencente ao Concelho de Mafra, depois passando ao de Torres Vedras, mais tarde retornando ao de Mafra, ambos no arcebispado de Lisboa, onde foi batizado em 18 de julho de 1638, com poucos dias de nascido; filho de Julião Afonso, o velho e de sua mulher Jerônima Francisca, senhores de uma vinha na ribeira do Barril; por volta de 1670, mudou-se para a Bahia, em companhia do irmão Julião Afonso, o moço, depois por alcunha Julião Afonso Serra, pouco tempo depois fundando fazenda denominada Sobrado[9], na margem esquerda do rio São Francisco, banda de Pernambuco; faleceu em 18 de junho de 1711, na cidade da Bahia, sendo sepultado na igreja do colégio dos jesuítas, dentro do cruzeiro, vestido na roupa de Santo Inácio, sob o hábito de Cristo; deixou testamento celebrado em 12 de maio daquele  ano, de que extraímos algumas informações interessantes.

 

  1. Disposições testamentárias de Domingos Afonso Sertão

Do testamento de Domingos Afonso Sertão, extraímos algumas disposições que interessam ao nosso trabalho, sobre sua luta e família. Desconfiamos de que Maria Natália seja sua filha consanguinea, cuja moral cristã da época não permitiu que ele a reconhecesse oficialmente, embora tenha declarado que nascera em sua casa e a criou como filha. Também, refere-se ao sobrinho Domingos Afonso do Carmo e a outros que esperava virem “na frota e esquadra deste presente ano”, conforme se ler:

“Declaro que tenho em minha companhia uma menina chamada Maria Natália, que me nasceu em casa, e criei como filha, e como tal a respeito e trato, e é filha de uma mulher por nome Eugênia Francisca. A esta tal Maria Natália deixo trinta e dois mil cruzados para seu dote, casando com meu sobrinho Domingos Afonso do Carmo, e não querendo este, com algum dos ditos meus sobrinhos, que se esperam na frota e esquadra deste presente ano, se algum deles quiser, e não querendo nenhum casar, o meu testamenteiro escolherá com pessoa de limpo sangue, o que fará dentro de seis meses depois do meu falecimento, e não casando desta forma com algum dos sobreditos, ou pela eleição do meu testamento, ordeno que a mande recolher em algum convento de freiras da Ilha Terceira, para ser religiosa professa, e então se não lhe dará o dito dote, mas somente o que for necessário para ser freira, assim o dote costumado, como o enxoval, tença, e tudo o mais até professar, e caso não queira casar, nem ser freira, se lhe não dará mais que tão somente uma pataca cada dia, enquanto viver honrada e honestamente.

‘Se a dita Eugênia Francisca, mãe da dita Maria Natália, a quiser acompanhar, indo a filha ser freira, mando que se lhe dê também o que for necessário para seu aviamento e passagem, e na Ilha se lhe dará 200 réis cada dia para seus alimentos.

‘Se não tiver efeito o casamento entre a dita Maria Natália e meu dito sobrinho Domingos Afonso do Carmo, em tal caso mando que se dê ao dito meu sobrinho oito mil cruzados para com eles seguir os seus estudos e se despachar, o que se entende por uma vez somente”.

Declara possuir outros criados em sua casa, porém, nota-se diferença nas disposições de alguns que indicam mais do que criadagem, podendo-se subtender relação de filiação. Além da branca Maria Natália[10], que declara textualmente tê-la como filha e desejar casá-la com um sobrinho, também diferencia Natálio Afonso, dentre os cinco filhos da mulata Antônia de Moura:

“Declaro que sou senhor de uma mulata chamada Antônia de Moura, a qual tem cinco filhos, três machos e duas fêmeas, a saber: Natálio Afonso, Frutuoso Lopes, José Lopes, Francisca e Inácia; e a todos estes, assim a mãe, filhos e filhas deixo forros e livres de toda a escravidão; e meu testamenteiro lhes passará logo suas cartas de alforria, e ao dito seu filho Natálio Afonso, pelos bons serviços, que dele tenho dito, lhe deixo quatro mil cruzados, e enquanto se lhe não entregarem, lhe darão o juro deles, para seu sustento e de sua mãe e irmãos, com a obrigação, porém, que será obrigado o dito Natálio a assistir ao meu testamenteiro para os negócios que respeitam a esta testamentaria, dando as notícias necessárias, e solicitando os negócios; e fazendo-o assim como dele espero, lhe dará meu testamenteiro mais Rs. 100$000 réis cada ano, enquanto correr com a dita testamentaria; e faltando a esta, lhe deixo somente os quatro mil cruzados dos juros, enquanto se lhe não pagarem”.

“Declaro que em minha vida dei a esta menina Maria Natália e a sua mãe e às outras algum ouro de que se servem, o qual não entrará no inventário, por lhe haver já dado, como também a negra Mariana, que é da dita Antônia de Moura.

‘Deixo o meu escravo Garcia, preto, forro e mando que se lhe passe logo sua carta de alforria e se lhe dê Rs. 50$000 réis; e assim a este, como aos mais escravos de minha casa, assim os que ficam livres, como os que ficam cativos, se lhes dará o luto costumado e a dita menina Maria Natália, e à sua mãe, mais avantajado”.

Também, manda liquidar seus bens e “depois de vendidos, e cobradas as dívidas” “se reparta em quatro partes iguais, uma das quais” se “remeterá ao procurador do dito colégio, assistente em Lisboa, para que reparta entre as filhas de minhas sobrinhas e sobrinhos com os mais que lhes mando dar”. Aos mesmos sobrinhos-netos, ainda manda entregar recursos financeiros que possuía com pessoas nas cidades de Lisboa, Porto e Viena, “entre os filhos de minhas sobrinhas e de meus sobrinhos, assim casados, como solteiras, remetendo de tudo clareza em forma a meu testamenteiro’.

Na época, foram habilitadas em processo de justificação judicial 29 sobrinhas beneficiadas com dote previsto nas disposições testamentárias. Infelizmente, os autos foram queimados acidentalmente no terramoto de 1755. Posteriormente, até quando os bens dos jesuítas foram sequestrados, em 1757, as descendentes de seus irmãos justificaram parentesco e foram beneficiadas com dote proveniente da quarta parte do rico patrimônio por ele deixado com esta finalidade. Essas justificações ajudam o pesquisador interessado a reconstituir a descendência de seus irmãos.

Sobre sua naturalidade, filiação e descendência, declara em seu testamento:

“Declaro que sou natural de São Domingos da Fanga da Fé, termo de Torres-Vedras do arcebispado de Lisboa, filho legítimo de Julião Afonso e de sua mulher Jerônima Francisca, já defuntos; e nunca fui casado, nem tenho que haja de ser meus herdeiros; portanto instituo a minha alma única herdeira do remanescente de meus bens, satisfeitos os meus legados e mais disposições conteúdas e declaradas neste meu testamento e assim antes desta verba como depois dela”.

Sobre a ação colonizadora esclarece no mesmo documento:

“Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras que pedi no Piauí com o Coronel Francisco Dias de Ávila e seu irmão, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha pessoa e considerável despesa com adjutório dos sócios e sem eles defendi também.

‘Muitos pleitos que se moveram sobre as ditas terras ou parte delas; e havendo dúvidas entre mim e Leonor Pereira Marinho, viúva do dito Coronel, sobre a divisão das ditas terras, fizemos uma escritura de transação do cartório de Henrique Valleusuella da Silva, no qual declaramos os sítios com que cada uma havíamos de ficar, assim do que tínhamos ocupado com os gados, com arrendados a várias pessoas , acordando e assentando juntamente a forma com que havíamos de ir ocupando as mais terras por nós, ou pelos outros rendeiros que metéssemos como mais largamente se verá da dita escritura. Declaro que nas ditas terras, conteúdas nas ditas sesmarias, tenho ocupado muitos sítios com gados meus, assim vacum como cavalar, e todos fornecidos com escravos, cavalos, e o mais necessário; o que tudo constará dos meus papéis acima, fábricas, com a quantidade dos gados pelas entregas de cada uma das fazendas, e assim mais muitos sítios dados de arrendamento a várias pessoas, que constarão de seus escritos, que tenho em meu poder, e outros muitos estão ainda por povoar, e desocupados, que também se poderão ir dando de arrendamento, ou ocupando com gados meus, como melhor parecer a meu sucessor”.

Sobre os empreendimentos urbanos na cidade da Bahia, declarou:

“Declaro que nesta cidade tenho e possuo uma morada de casa, que comprei a Luís Gomes de Bulhões, e depois reedifiquei, e são as em que moro, assim mais, tenho outras moradas, que fabriquei no fundo do quintal das sobreditas, por parte do mar, todas de dois sobrados, que reparti em quatro moradas, e todas tenho alugadas, e assim mais, tenho outra morada térrea contígua cada uma à em que moro”.

Por fim, institui todos os seus bens em capela ou morgado para ser administrado pelo reverendo padre reitor do Colégio da Bahia, a quem impôs algumas obrigações:

“Em todos estes bens acima declarados, assim as casas, umas e outras, como as terras, na mesma forma que as possuo, e me pertencem, conforme os títulos, e todos os gados, escravos e cavalos, todas as mais fábricas pertencentes as ditas fazendas, situadas nas mesmas terras, e as que servem para condução dos gados e boiadas – instituo, e de todas formo uma capela ou morgado com expressa proibição de alheação por qualquer título que seja, e nem unidos em uma só pessoa, que os administre, como adiante declararei, e essa tal não os poderá alhear os ditos, como seja – vendendo, doando, ou trocando, mas nem os poderá obrigar, e hipotecar, ainda que seja por causa pia, posto que para isso haja licença de El-Rei, e fazendo o contrário, ficará tudo nulo, e por este mesmo feito perderá logo a administração, e o que lhe suceder haja dele toda a perda e dano que causar, e tiver dado.

‘Para administrar essa capela ou morgado, nomeio em primeiro lugar o reverendo Padre Reitor do colégio desta cidade, que for ao tempo do meu falecimento, e os que forem sucedendo no mesmo cargo até o fim do mundo; e não querendo aceitar, ou faltando às obrigações e encargos desta instituição, declarados neste testamento, passará à Ordem Terceira de N. S. do Monte do Carmo; e faltando também e não aceitando sucederá na dita administração a confraria do SS. Sacramento da Santa Sé com as mesmas obrigações”.

Continuando a mencionar sobrinhos e outros colonizadores do Piauí, declara:

“Declaro que tive contas com meu sobrinho João Domingues de deve há de haver, as quais constam do meu livro de razão: - mando ajustada a conta, com quem direito for, se lhe pague, se eu for devedor, e sendo credor, se cobre. Declaro que Maria Reimoa me tomou de arrendamento três sítios de terras, onde chamam – as Cajazeiras – no sertão do Piauí, e por seu falecimento, passaram a seu filho Francisco da Costa de Figueiredo, o qual, dando partilhas a seus irmãos, tocou um destes sítios, chamado Sambito, a seu cunhado Manoel da Silva Vieira; este me passou escrito de arrendamento do tempo de sua partilha em diante; porém, assim deste, como dos outros dois, me ficou devendo as rendas atrasadas o dito Francisco da Costa, e está devendo os que se venceram dos ditos dois sítios até o presente – mando que todas estas rendas, de que ele é devedor, se lhe não peçam, nem cobrem dele; porque lhe faço mercê delas, e que, daqui em diante não pague pelos dois sítios, que lhe ficaram, mais que um frango cada ano tão somente, o que será por sua vida; e depois de sua morte correrá a renda de 10$000 réis por cada sítio, em cada ano, como dantes corria”.

Sobre bens herdados e parentes em Torres-Vedras:

“Declaro que por falecimento de meu pai me ficou uma vinha e uma sorte de terras na ribeira chamada Barril, e o mais, que consta do meu formal de partilhas, que tenho em meu poder, as quais terras e vinhas dei a uma irmã por seu falecimento se apossou delas um seu filho Manoel Francisco: ou este, ou outro a está logrando, sem meu consentimento. Mando que o meu testamento faça aviso com as clarezas necessárias ao tal possuidor, para que largue a dita terra e vinha, e a deixo a minha sobrinha Maria Francisca, filha de uma filha de minha irmã, a dita Maria Francisca, moradora do Cocal do Moreira em companhia de seu pai, a assim mais tudo o que me pertencer por minha folha de partilhas, com declaração que não poderá pedir os frutos e rendimentos desta terra e vinha aos que as têm possuído o desfrutado; porque achei por bem que tenham logrado até o dia que lhe chegar o aviso desta minha disposição”.

Portanto, essas disposições testamentárias muito esclarecem sobre sua naturalidade, filiação, herança, trabalho e aquisição patrimonial na colônia, assim como negócios, família, criados e escravos. Para reforçar as informações, conferimos o registro de seu batizado em seu local de nascença.

 

  1. Filhos não reconhecidos de Domingos Afonso Sertão

Vidal Afonso Sertão, mameluco, com o óbito do genitor se assenhoreou da Fazenda Grande, juntamente com o irmão Vidal Afonso Sertão. Esta fazenda pertencia ao seu genitor e fora legada aos jesuítas, ambos os irmãos lutando bravamente por sua posse até o ano de 1730, quando retiraram-se com seus rebanhos se estabelecendo em sítios que descobriram nas cabeceiras do rio Piauí. Em 7 de junho de 1765, ainda era solteiro e residia com a sobrinha Albina Soares, na fazenda Aldeia, cabeceiras do rio Piauí. Não deixou descendência. 

Agostinho Afonso Sertão, mameluco, conforme se disse, depois do óbito do genitor se assenhoreou da Fazenda Grande, juntamente com o irmão Vidal Afonso Sertão. Depois de 1730, por ter sido vencido nas demandas que enfrentou contra os padres jesuítas abandonou-a e foi com seu rebanho fundar a fazenda Conceição, nas cabeceiras do rio Piauí, onde faleceu entre os anos de 1766 a 1769. Foi casado com Timotéa Soares da Rocha, “parda disfarçada”, nascida em 1720, sobrevivendo ao marido, cujo casal deixou os seguintes filhos: F.1. Joana Afonso de Sousa, residente na fazenda Santo Antônio, casada com Antônio Paes Landim, o velho, primeiro deste apelido chegado ao Piauí, em companhia de um irmão; filhos: F.1.1. André; F.1.2. José; F.1.3. Antônio Paes Landim, o moço, morador na fazenda Santo Antônio, da ribeira do rio Piauí, casado em 14.11.1770, na fazenda das Almas, com Francisca de Miranda Pereira, filha de Antônio Pereira de Abreu, fundador da fazenda São João, no vale do riacho que recebeu seu nome[11], afluente do rio Piauí, e de sua esposa Maria de Miranda, esta filha de João Rodrigues de Miranda e Josefa de Sousa, fundadores da fazenda Buriti e tronco da família Miranda, no centro-sul do Piauí; filhos: F.1.3.1. Narciso, batizado em 25.3.1777; F.1.3.2. Antônio, batizado em 17.8.1781; F.1.4. Joana; F.1.5. Ana Paes Landim; F.2. Albina Soares, nascida em 1731, residente na fazenda Aldeia, a última das cabeceiras do rio Piauí, fora casada com o português Faustino Ferreira dos Santos, barbaramente assassinado em sua própria casa pelos índios pimenteiras, por volta de 9 horas da manhã de 7 de dezembro de 1769; F.3. José Afonso Sertão; F.4. Agostinho Afonso Sertão, o moço, nascido em 1750, vaqueiro; F.5. Bernarda; F.6. Antônia; F.7. Maria; F.8. Ana; F.9. Isabel; e, F.10. Timótea

Maria Afonso[12], mameluca, casada com João Coelho de São Pedro, que, com a morte do sogro tomou posse da fazenda Tabuleiro Alto, só a entregando aos jesuítas em 1717, depois de sofrer várias ameaças por parte dos religiosos. Não sabemos por quem seja hoje representada sua descendência.

Maria Natália, “que me nasceu em casa, e criei como filha, e como tal a respeito e trato, e é filha de uma mulher por nome Eugênia Francisca”. Conforme confessa, nasceu em sua casa na Bahia e era o seu mimo, para quem deixou interessantes disposições testamentárias, desejando casá-la com um de seus sobrinhos. Acreditamos ser sua verdadeira filha, mas não sabemos por quem seja hoje representada a sua descendência, se a deixou.

Então, pode-se dizer que existe numerosa descendência de Domingos Afonso Sertão, no Piauí. Os três primeiros eram filhos da mesma mãe, certamente indígena em face de todos serem tratados por mamelucos, cuja descendência vai casar-se, em grade parte, com colonos portugueses.

  1. Os sobrinhos nominados no testamento

 

Da leitura das disposições testamentárias sobressai o nome de dois sobrinhos moradores na colônia: Domingos Afonso do Carmo e João Domingues, além daqueles “ditos meus sobrinhos, que se esperam na frota e esquadra deste presente ano”.

Domingos Afonso do Carmo, natural de Torres Vedras, passou à Bahia; capitão-mor das entradas dos mocambos da ilha de Itaparica ao distrito da Bahia, nomeado em 13 de janeiro de 1718; em 1721, foi agraciado com o hábito da Ordem de Cristo, quando foi apurado que seus “avós paterno e materno foram lavradores que cultivavam suas fazendas com os bois próprios, posto que nunca lavrassem alheios por jornal”; que “seu pai por ser lavrador e ter vinhas próprias tanoava as suas vasilhas, em que recolhia os vinhos das suas fazendas, o que não é ofício mecânico”; renunciou à sua tença de doze mil réis, em favor da irmã Clara Gomes de Muniz, que seguiu vida religiosa[13]. Tendo fixado residência na Bahia, não sabemos por quem seja hoje representada sua descendência, nem se veio, de fato, a casar-se com Maria Natália.

João Domingues, sobre este não conseguimos outras informações.

 

  1. O sesmeiro Julião Afonso Serra

 

Julião Afonso Serra, era irmão de Domingos Afonso Sertão, ambos filhos de Julião Afonso, o velho e de sua esposa Jerônima Francisca. Nasceu no lugar Casal da Serra, freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, cerca de 1642. Com a morte dos genitores mudaram-se para a Bahia, fundando a fazenda Sobrado, no vale do rio São Francisco, em terras arrendadas à Casa da Torre. Foi sócio do referido irmão nas entradas e colonização do sertão piauiense, com quem dividiu meio-a-meio as terras descobertas e colonizadas, com a Casa da Torre. Enquanto foram vivos os irmãos conservaram o patrimônio indiviso, que representava metade dessas terras. Fundaram diversas fazendas de gado vacum e cavalar, arrendando muitas outras terras para seus compatriotas que vinham do reino fundar fazendas no Piauí, percebendo renda de dez mil réis anuais por cada fazenda. Tornaram-se ricos e poderosos. Julião Afonso não deixou filhos reconhecidos. Para auxiliá-los na administração desse vasto patrimônio trouxeram alguns sobrinhos do reino, destacando-se Domingos Jorge Afonso, também conhecido por Domingos Afonso Serra, para quem legou todo o seu patrimônio constituído por um quarto das terras que lhes foram concedidas em sesmaria, ou seja, metade do condomínio que manteve com o irmão.

 

  1. Domingos Jorge Afonso[14], herdeiro do tio Julião Afonso Serra.

 

Foi o herdeiro testamentário do tio Julião Afonso Serra, somente não herdando de Domingos Afonso Sertão porque foram mais sagazes os ambiciosos padres da Companhia de Jesus. Nascido na freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, então pertencente ao Concelho de Torres Vedras, depois passando ao de Mafra, ambos no arcebispado de Lisboa, em 1665, filho de Domingos Jorge e de sua mulher Domingas Francisca. Era neto de Julião Afonso, o velho, e de sua mulher Jerônima Francisca, ambos falecidos na mesma freguesia. Viveu aí sua infância e adolescência, alfabetizando-se nos padrões da época e ajudando aos pais e avós, no cultivo de uma vinha na ribeira do Barril. No entanto, por volta de 1687, veio para o nosso sertão, ajudar aos tios na administração do imenso latifúndio, fixando morada na fazenda Tranqueira, situada às margens do riacho de mesmo nome, na bacia do rio Canindé, onde residia em companhia de Antônio Soares Touquia, de uma negra e dois negros escravos. Nesta fazenda receberam o padre Miguel de Carvalho e sua comitiva nas desobrigas realizadas durante os anos de 1694 e 1697. Inclusive, em 11 de fevereiro de 1697, ali fora realizada a reunião que deliberou pela fundação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória e eleição do lugar de construção da igreja matriz, recaindo em um tabuleiro situado na fazenda da Passagem, pertencente ao indiviso condomínio de seus tios. No entanto, porque esse assunto lhe desagradou profundamente não se fez presente àquela reunião, achando motivo para se retirar naquela ocasião, talvez para a cidade da Bahia. Mais tarde, em conflito com o padre Thomé de Carvalho e Silva, pároco da nova freguesia, chegou a invadir a nascente povoação e queimar as choupanas, inclusive a capela coberta com pindoba. Na qualidade de herdeiro e rico sesmeiro, sustentou intermitentes litígios com esse padre e com muitos posseiros que fundaram fazendas em seu latifúndio, escrevendo assim um importante capítulo de nossa história, que merece ser mais bem estudado.

Por de 1705, Domingos Jorge Afonso muda seu domicílio para a cidade da Bahia, porém, sem se descuidar da administração das fazendas no Piauí, para onde vinha periodicamente. Por esse tempo, passa a ser auxiliado nessa administração pelo irmão Ignácio Gomes Afonso e por outros parentes que chegavam do reino. Em 29 de outubro de 1718, celebra com o padre reitor do colégio da cidade da Bahia, por escritura pública, contrato de transação amigável e composição[15], assim dividindo os bens dos dois tios, até então indivisos, a exemplo do que ocorrera antes entre seus tios e a Casa da Torre. Desde então, passa a administrar exclusivamente seu patrimônio.

Por esse tempo é bom se esclarecer que ao fixar residência na cidade da Bahia, Domingos Jorge Afonso ingressa na carreira militar, ali prestando alguns serviços. E por nomeação de 20 de julho de 1718, do governador e capitão-general do Brasil, D. Sancho de Faro (conde de Vimieiro), cuja nomeação foi confirmada por el rei na carta patente de 31 de janeiro de 1720, assumiu o posto de capitão da Companhia de Infantaria da Ordenança do Regimento do arrabalde da cidade da Bahia[16].

A essa altura convolou núpcias com dona Antônia Florência de Jesus, que lhe sucedeu na administração desse imenso patrimônio, juntamente com o filho único, João Jorge Afonso.

Faleceu por volta de 1748, na cidade da Bahia.

Com o filho João Jorge Afonso vai se desintegrar o rico patrimônio, parte por alienação onerosa e parte por perdas em litígios possessórios, repetindo o mesmo que aconteceu com os herdeiros da Casa da Torre, no mesmo período. Não sabemos por quem seja hoje representada a descendência desse último herdeiro do patrimônio de Julião Afonso Serra.

 

  1. Ignácio Gomes Afonso, a descendência enraizando-se no Piauí

 

Natural de São Domingos da Fanga da Fé, era filho de Domingos Jorge e de sua esposa Domingas Francisca, esta irmã de Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra. Era irmão do capitão Domingos Jorge Afonso, a quem muito auxiliou na administração do rico patrimônio herdado do tio. Mais tarde, fundou a fazenda Poções, com quatro léguas de comprimento e meia de largura, situada às margens do riacho de mesmo nome, afluente do rio Piauí. A terra fora doada pelo referido irmão, de cuja posse expulsaram a Vicente Ferreira Morgado, que a tinha povoado. Foi casado com Domingas Rodrigues Flores[17], que lhe sobreviveu falecendo em avançada idade na dita fazenda. Conforme conseguimos apurar o casal tivera nove filhos, a saber: João Jorge Afonso; Antônio Jorge Afonso, foi casado com Ana Maria da Silva; e mais, Diogo, Miguel, Manoel, Helena, Eugênia, Joana e Victória, os mais novos.

Desses desejamos ressaltar João Jorge Afonso[18], fundador da fazenda Brejo, também chamada Brejinho, situada nas cabeceiras do riacho dos Pilões, afluente do rio Canindé medindo uma légua em quadra, onde residia com a esposa Maria da Silva de Jesus. Foram filhos desse casal o capitão Roberto Ramos da Silva[19] e Maria Ramos da Silva, esta última fixou residência no lugar “Pau da História”, vale do rio São Francisco, onde deixou três filhos: Luís da Silva Ramos, Luís do Rego e Luísa da Silva Ramos, os dois primeiros fundadores, respectivamente, dos povoados Lago e Bom Jardim, em Casa Nova, Bahia.

O capitão de ordenanças Roberto Ramos da Silva, mais conhecido por “Roberto da Cachoeira”, nasceu na fazenda Brejo, vale do rio Canindé, termo da cidade de Oeiras, em cuja matriz foi batizado em 11 de agosto de 1770; em 11 de janeiro de 1787, casou-se com Delfina Rodrigues Seabra[20], também natural de Oeiras, filha do cabo-de-esquadra João Rodrigues Seabra, que foi diretor do aldeamento indígena de São João de Sende (1780) e de sua esposa Antônia Batista; por volta de 1806, fixou residência no vale do riacho do Pontal, capitania de Pernambuco, onde funda a fazenda Cachoeira, depois e em sua homenagem “Cachoeira do Roberto”, onde edificou casa, capela, cemitério, curral, roçados, plantou lavouras  e cultivou pastagens, situando grande rebanho bovino e  cavalar; o casal gerou 17 filhos, entre os quais: Mamédio, Pedro, Cipriano, Apolônia, Ana Maria, Martinho, Raimundo, José, Clemente e Roberto. Segundo o Jornal do Recife, em nota transcrita pelo Correio Paulistano, em 1868 ainda existia a sua viúva e sua descendência era composta de “17 filhos”, “mais de cem netos, alguns dos quais já têm filhos”, compondo sua descendência “de cerca de seiscentas pessoas” residindo “nos termos das províncias da Bahia e Piauí”, que confinam com a comarca da Boa Vista, onde se situava a sua fazenda “Cachoeira do Roberto”[21].

 

  1. Sebastião Jorge Afonso, sobrinho-neto dos ricos sesmeiros

Sebastião Jorge Afonso, sobrinho-neto do capitão Domingos Afonso Sertão, também natural de Torres Vedras, era filho de Andreza Jerônima e de seu marido Francisco Gomes, moradores na Lobagueira; neto materno de Julião Afonso Serra e Jerônima Francisca.

Mudou-se para o termo da vila da Mocha, depois cidade de Oeiras, no sertão do Piauí, onde criou gado e veio a falecer antes de 1772[22], sem deixar descendência. Possuía dentre outros irmãos, João Jorge Afonso[23], que fora casado com Catarina Maria, pais de Clara Maria; e Cristina Maria, que fora casada com Manoel Gomes, com as seguintes filhas: Maria Gomes, Joana Gomes, Teresa Maria, Josefa Maria, Domingas Teresa e Joaquina Maria, todos moradores no lugar Paço de Ilhas, freguesia de Santo Isidro, termo da vila de Mafra[24]. Com o óbito de Sebastião Jorge Afonso, na cidade de Oeiras, as indicadas sobrinhas justificaram[25] o parentesco e se habilitaram como suas herdeiras, reivindicando os bens por este deixados no Piauí. Eram todos filhos de Suzana Gomes[26], apontada no processo de justificação como sobrinha direta de Domingos Afonso Sertão.

  1. Conclusão

Diante desses fatos pode-se concluir que muitos parentes colaterais dos sesmeiros Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra, deixaram a terra natal para virem fixar residência no Piauí. Os ajudaram na administração do imenso latifúndio, defendendo a posse da terra, cobrando as rendas anuais e fundando fazendas. Por essa razão, é hoje imensa a descendência que deixaram em nossa terra, assim ajudando a formar nossa sociedade. Também, deixaram filhos naturais não reconhecidos, sendo incontroversa a existência de três filhos de Domingos Afonso Sertão que povoaram com fazendas o médio e alto curso do rio Piauí, integrando sua descendência à de outros colonizadores de nosso sertão. Falta quem estude a formação de nossa gente e, assim, possa resgatar as origens esquecidas de nossas famílias revelando variados laços genealógicos. O presente estudo é baseado em fonte primária de pesquisa, sendo fruto de criterioso levantamento nos livros eclesiásticos das matrizes de Nossa Senhora da Vitória, em Oeiras, no Piauí e São Domingos da Fanga da Fé, hoje Encarnação, em Mafra, Portugal. É um passo importante no resgate dessas origens esquecidas. Esperamos que seja útil aos interessados na pesquisa genealógica, nos dois lados do Atlântico.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

[2] Infanta de Aragão e rainha de Portugal, nasceu em 1271 e faleceu em 1336. Em 25 de maio de 1625, foi santificada pelo papa Urbano VIII.

[3] A população da freguesia era de apenas 673 habitantes em 1758, dos quais 598 adultos e 75 crianças.

[4] GIL, João Pedro da Silva Henriques – Casa Grande da Lobagueira. Os Silva Henriques de S. Domingos da Fanga da Fé. Mafra: Câmara Municipal de Mafra e Junta de Freguesia da Encarnação, 2003. https://www.cm-mafra.pt/cmmafra/uploads/writer_file/document/1849/casal_da_lobagueira.pdf

 

[5] Em uma justificação de descendentes aparece Andreza João.

[6] PT/TT/JIM-JJU/002/0236/00001. Feitos Findos, Juízo da Índia e Mina, Justificações Ultramarinas, Brasil, mç. 236, n.º 1.

[7] PT/TT/JIM-JJU/002/0270/00006. Feitos Findos, Juízo da Índia e Mina, Justificações Ultramarinas, Brasil, mç. 270, n.º 6.

 

[8] Destes apenas não encontramos documentação comprobatória da filiação de Domingas Francisca. No entanto, como acreditamos que seja a mãe do capitão Domingos Jorge Afonso e este era, comprovadamente sobrinho dos ricos sesmeiros, de um deles herdando todo o patrimônio, há de ser irmã deles. Na provisão de nomeação de Domingos Jorge Afonso, para capitão de ordenanças da Bahia, consta ser filho de Domingos Jorge. É provável que seus genitores fossem primos, caso de casamento endogâmico, o que era comum em localidade de poucas famílias.

[9] Em terras da Casa da Torre, conforme declara em seu testamento, cuja localização ele achava privilegiada “para a fábrica dos comboios das boiadas”, por ficarem em caminho entre o sertão do Piauí e as feiras do litoral.

[10] Deixou em seu testamento a ela e a sua mãe, uma escrava para cada uma, conforme consta: “Tenho mais cinco escravos pretos, a saber. Manoel, Domingos, Antônio, Sebastião e Pedro, e duas negras, Maria e Teresa; e destes deixo forro o negro Sebastião e à menina Natália deixo a negra Teresa; e à sua mãe Maria Francisca deixo a outra Maria Benguela”. Também, a seguinte disposição: “Suposto que tenho vinculado à capela, que instituo, as casas em que vivo, quero contudo, que casando a dita Maria Natália com algum dos ditos meus sobrinhos, more nas ditas casas enquanto viverem, ou se paguem aluguel delas algum; porém constando ao administrador da capela, que as casas são mal tratadas, as faça logo despejar; e as alugue a pessoa que lhe dê bom trato; e de qualquer modo declaro, que sempre ficam vinculadas e inalienáveis”.

 

 

[11] Riacho de Antônio Pereira.

[12] A documentação por nós analisada não confirma seu nome, apenas referindo ao marido, que era cunhado de Agostinho e Vidal Afonso Sertão.

[13] PT/TT/MCO/A-C/002-004/0012/00010. Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra D, mç. 12 n.º 10.

 

[14] Aparece em documentos iniciais com o nome de Domingos Afonso Serra.

[15] AHU-Bahia, cx. 10, doc. 20 AHU_ACL_CU_005, Cx. 12, D. 992

 

[16] PT/TT/RGM/C/0011/30956. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 11, f.228v.

[17] Em 1762, dona Domingas Rodrigues Flores, então no estado de viúva, residia na referida fazenda em companhia dos sete filhos ainda solteiros e da sobrinha Theodózia. A existência desta sobrinha comprova que vieram muitos outros parentes para povoarem o território piauiense.

[18] Na freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, existem muitos parentes com este mesmo nome, inclusive um primo na Bahia-Piauí, filho do capitão Domingos Jorge Afonso. Por essa razão, inicialmente chegamos a presumir que ele também fosse mais um sobrinho migrante daquela freguesia portuguesa. No entanto, o nome “das Flores” adotado inicialmente por um de seus filhos e a proximidade da fazenda fez com que concluísse ser filho de Ignácio Gomes Afonso e Domingas Rodrigues Flores. 

[19] Deveria ser Roberto Jorge Afonso, mas desprezou o apelido familiar para adotar Roberto Ramos das Flores, conforme aparece no registro de casamento e, posteriormente, Roberto Ramos da Silva.

[20] Irmã de José Joaquim Rodrigues Seabra, tabelião público de Oeiras, nomeado em 18.2.1809 (Casa Anísio Brito, Códice 159. P. 89v).

[21] Correio Paulistano, 24.12.1868.

[22] PT/TT/JIM-JJU/002/0423/00001. Feitos Findos, Juízo da Índia e Mina, Justificações Ultramarinas, Brasil, mç. 423, n.º 1.

[23] Compulsando a documentação histórica de Oeiras, no Piauí, encontramos dois sobrinhos dos ricos sesmeiros com esse nome de João Jorge Afonso. Nos registros eclesiásticos da freguesia de São Domingos da Fanga da Fé, vulgo Encarnação, em Mafra, encontramos cerca de meia dúzia de parentes deles com esse mesmo nome, não sendo menor o número de indivíduos com o nome Domingos Jorge, todos referentes ao século XVII. Essa repetição de nomes causa grande tormento para deslindar as relações de parentesco.

[24] PT/TT/JIM-JJU/002/0422/00012. Feitos Findos, Juízo da Índia e Mina, Justificações Ultramarinas, Brasil, mç. 422, n.º 12.

 

[25] Dizem nos autos, “que no terramoto de 1º de janeiro de 1755, se queimaram os autos principais, e juntamente a sua justificação, hoje não há testemunhas que conhecem o capitão e seus irmãos e irmãs, querem as suplicantes justificar que a sobredita sua mãe é filha de Suzana Gomes, sobrinha do mesmo capitão; por cuja razão a dita sua mãe é uma das vinte nove legatárias da 4ª parte a filhas de sobrinhas e sobrinhos, a quem o dito deixou a 4ª parte de seus bens, os quais está em 3º grau com o dito capitão e consequentemente as suplicantes estão em 4º grau, como haviam justificado”; as  testemunhas ouvidas confirmaram que Suzana Gomes era sobrinha direta do falecido capitão, sendo Cristina Maria uma das 29 legatárias da quarta parte dos bens do mesmo defunto.

 

[26] Encontramos no mesmo período, na freguesia de S. Domingos da Fanga da Fé, mais duas pessoas com o mesmo nome: Suzana Gomes, casada com Bernardo Jorge, moradores na Lobagueira, com os seguintes filhos: F.1. Simoa, batizada em 26.10.1659; F.2. Maria, batizada em 19.3.1663; F.3. Domingas, batizada em 4.11.1666; F.4. Domingos, batizado em 14.4.1669; F.5. Antônio, batizado em 6.6.1672; F.6. Bernardo, batizado em 23.7.1674; F.7. Suzana, batizada em 28.12.1675; F.8. João, batizado em 2.6.1678; e, F.9. Theodózio, batizado em 6.12.1680. E Suzana Gomes, natural do lugar da Barreira, freguesia de São Pedro da Cadeira, do termo de Torres Vedras, casada com Domingos Jorge, também moradores na Lobagueira, pais de: F.4.1. Theotônia Maria, falecida em 1761, foi casada com Theodózio Bernardes, filho de Bernardo Jorge e Suzana Gomes, pais do capitão de ordenanças Jacinto Manoel Fernandes, agraciado com o hábito da Ordem de Cristo e cujas duas avós tinhas o mesmo nome, todos membros da mesma família; F.4.2. João, batizado em 10.2.1686; F.4.3. Domingos, batizado em 26.10.1687; e, F.4.4. Sebastião, batizado em 29.1.1690.