MENSAGEM URGENTE AO DIGNÍSSIMO SENHOR ALCAIDE

Miguel Carqueija


    Estava-se ainda no princípio de uma bela e mui formosa tarde de primavera, quando dirigi meus cansados passos rumo à majestosa vivenda do digníssimo Senhor Alcaide. Em lá chegando, observei por um momento os altos torreões e as garbosas ameias, pensando intimamente naquilo que eu, o Mestre de Boas Maneiras da Vila de Alamar, seria obrigado a dizer.
    — Como estais, Mestre Ponce? — cumprimentaram-me as sentinelas. Respondi ao amável cumprimento, desejando que Deus estivesse com eles, e esclareci o meu anelo:
     — Tenho um assunto grave, da máxima urgência, a tratar com o Sr. Alcaide.
    Fui introduzido na área do palácio e um garoto foi levar a notícia, enquanto eu aguardava passeando no jardim, por minha própria escolha. A um dos criados, indaguei pelas formosas e educadíssimas filhas do digníssimo Sr. Alcaide, minhas distintas e assíduas alunas em minhas aulas de boas maneiras. Respondeu-me o criado que elas se encontravam em visita às irmãs dominicanas, a quem ajudavam nas obras de caridade.
    — Alegro-me que elas estejam lá — comentei.
    — Mestre, por favor — manifestou-se o criado — vós que tendes a sabedoria que falta a nós outros, pobres incultos, poderíeis me dizer que é verdade que os ratos quando envelhecem viram morcegos?
     — Meu filho, isto é uma tola superstição. Estamos no século XVI e não devemos dar crédito a tais coisas.
    — Mas então que são os morcegos?
    — São outros bichos, simplesmente. Nunca viste filhotes de morcego? Se eles fossem ratos velhos não existiriam morcegos novos.
    Nesse ponto de nosso diálogo Don José de Barbacane, sobrinho de Sua Excelência o Alcaide Don Gumercindo, aproximou-se e declarou que o Sr. Alcaide estava em importantíssima e inadiável reunião com o tesoureiro da vila e outras autoridades administrativas, mas que eu poderia aguardar na ante-sala até o término da aludida reunião. Ser-me-iam servidos refrescos e bolo.
     — Agradeço comovido a todas estas gentilezas que dão testemunho da nobreza de coração de nosso Alcaide, mas não há possibilidade de que eu fale com ele desde já, considerando a urgência do assunto e o fato de que o Senhor Alcaide precisa tomar ciência...
    — Não vejo como, Mestre Ponce. O meu tio já está tratando de assuntos urgentes e este terá de esperar. A menos que o senhor possa confiá-lo à minha humilde pessoa.
    — Isto seria uma desconsideração com o Sr. Alcaide que, como autoridade máxima de Alamar, deve ser o primeiro a ser informado de fatos graves ou de máxima importância. Como Mestre das Boas Maneiras eu ficaria desprestigiado se cometesse tal indelicadeza.
    Fiquei, pois, aguardando na ante-sala e de vez em quando espiava pela janela. Horas depois fui chamado e finalmente introduzido no gabinete de Don Gumercindo. Este me recebeu com sua habitual finura e ofereceu-me vinho, que aceitei com prazer, e trocamos um amistoso e demorado brinde.
    — Mas sentai-vos, Mestre Ponce — disse ele, ao terminarmos o brinde. — Qual é o assunto de tão suma importância que vós tendes a me confiar?
    — Digníssimo Senhor Alcaide, permitais que eu faça o relato minucioso e objetivo dos fatos tais como eles se apresentam diante de minha fraca inteligência, a fim de que, com vossas não poucas luzes, possais fazer uma idéia da grave e perigosa situação que se nos depara, e deste modo, agir no sentido de...
    Don José entrou repentinamente no aposento, de forma bem pouco educada, e gritou:
    — Meu tio! Fuja depressa! Catástrofe! O dique ruiu! O castelo vai ser inundado!
    O Sr. Alcaide levantou-se de um pulo. A contragosto eu fiz o mesmo e falei quase gritando:
     — Mas é isso justamente que eu vim comunicar!
    — O QUE??? — disseram ambos.
    — Pois claro! Por volta da metade do dia, passeando a pé nas proximidades do dique, para digerir meu frugal almoço, percebi a fratura que ia aumentando e calculei que a obra estava com as horas contadas e que hoje mesmo o vale seria inundado.
    — Mas por que não nos avisou? — o tom do Alcaide desagradou-me, ele estava esquecendo as lições de boas maneiras que eu lhe ministrara durante vinte anos.
    — Meu Senhor — respondi com dignidade — lembrai-vos que desde que aqui cheguei tenho estado a repetir que o assunto é da maior urgência.
    Ele abriu novamente a boca, e o que disse — e não me pareceu pouca coisa — perdeu-se no bramido e no fragor e nos gritos que já chegavam aos nossos ouvidos. Os dois deixaram correndo o local e eu pus-me a andar pelos corredores, evitando as pessoas em pânico. Por fim descobri num quarto um leito não muito pesado e aguardei a hora propícia, fazendo-o sair pela janela para a superfície de água que já chegava àquele nível, tomando o cuidado de amarrar a cama no postigo para que não se perdesse. Então pulei para a cama, munidos de duas vassouras para usar como remos, e deixei-me levar.
    Felizmente nossa planície é mui suave e pude navegar sem maiores problemas até chegar em terra firme, algumas léguas adiante. Desde então, e já fazem semanas, venho tentando localizar o digníssimo Senhor Alcaide a fim de narrar-lhe o restante do meu minucioso relato. Aonde será que ele foi?