D. Luzia Coelho da Rocha Passos
Por Reginaldo Miranda Em: 17/01/2021, às 21H05
Reginaldo Miranda*
Nessa cruzada que nos impomos para resgatar do limbo do esquecimento figuras que se destacaram no processo de formação de nossa sociedade vamos lembrar o nome e os feitos da fazendeira Luzia Coelho da Rocha Passos, benfeitora da antiga povoação das Piranhas, hoje cidade de Crateús, que ajudou em sua fundação, doando terras, gado e edificando a igreja do Senhor do Bonfim, marco inicial da cidade de Crateús, nas cabeceiras do rio Poti, então pertencentes ao Piauí.
Era natural da freguesia de São Pedro de Muritiba, então termo da vila da Cachoeira e hoje cidade de Muritiba, na Bahia, onde viveu a infância e mocidade. Por volta de 1740, casa-se com o conterrâneo João Fernandes Lima, sendo ambos filhos de tradicionais famílias do Recôncavo da cidade da Bahia.
Logo depois do matrimônio segue com o marido para a ribeira de Crateús, na capitania do Piauí, a chamado de um tio deste que ali era abastado fazendeiro, João da Costa Lima. Esse parente havia povoado naquela ribeira diversas fazendas, para isso tendo comprado à Casa da Torre algumas léguas de terra em sociedade com Manoel Pinto Lobo. Mais tarde arrematou os dízimos reais do Piauí nos triênios de 1743-1744-1745. Nesse contrato entrou o sobrinho João Fernandes Lima, como sócio e caixa na forma da lei, havendo-se com muita correção no cumprimento das cláusulas contratuais. Contudo, faleceu em 1748, antes da conclusão do pagamento mas deixando bens suficientes para saldar as dívidas vincendas.
Foi quando apareceu na ribeira de Crateús um ambicioso lusitano, filho da freguesia de N. Sra. da Purificação da vila de Oeiras, arcebispado da cidade de Lisboa, por nome Manoel da Silva Lobato[1]. Com visão aguçada, não tardou a casar-se com a rica viúva, D. Luzia Coelho da Rocha Passos, sucedendo ao primeiro marido desta, como cabeça do casal, na conclusão daquele rendoso contrato de arrematação dos dízimos reais. O casamento foi celebrado em casa da viúva, na fazenda Piranhas, em 7 de janeiro de 1751. Respaldado pelos bens e crédito desta consorte conseguiu arrematar os mesmos dízimos reais para o triênio de 1749-1750-1751, oportunidade em que solicita ao rei provisão obrigando a todos os donos e procuradores das fazendas a terem livros autenticados e rubricados para o assento dos dízimos reais[2]. Ao mesmo tempo administrava as fazendas da esposa. Com a instalação da capitania de São José do Piauí, em 20 de setembro de 1759, foram em seguida organizadas as companhias do regimento auxiliar, sendo ele nomeado para capitão de cavalos de uma delas. Estava assim em prosperidade e na abastança o capitão Antônio da Silva Lobato, quando foi assassinado com dois tiros em um sítio na ribeira de Crateús. Procedida a devassa para apurar o homicídio restaram pronunciados em 20 de junho de 1761, Francisco da Silva Cardoso e seu filho José da Silva; Francisco Alves, por alcunha O Baeta, João dos Santos e Antônio Euzébio[3].
Depois de seu óbito aparece contra ele uma denúncia de bigamia, dizendo-se que antes do casamento em Crateús, fora casado na vila de Parati, no Rio de Janeiro, com o nome de Manoel da Silva Leitão, sendo esse o seu verdadeiro nome. Para apurá-la em 1º de junho de 1763, foram inquiridas testemunhas na fazenda Santana, do sertão de Crateús, freguesia de N. Sra do Desterro da vila de Marvão do Piauí, na casa de residência do Muito Reverendo Juiz Comissário do Santo Ofício e vigário da vara Antônio Tavares da Silva. De fato, apurou-se que ele fora casado com aquele nome em 15 de novembro de 1736, na freguesia de Nossa Senhora dos Remédios da vila de Parati, com Joana de Lima, viúva que ficara do francês Pedro Rodrigues de Lamarcha[4]. Porém, esta primeira esposa falecera em 3 de junho de 1750, na idade de 50 anos, sem deixar filhos. Assim, ao casar-se novamente o nosso biografado já era viúvo, não incorrendo no crime de bigamia. Em Parati, onde morou durante as primeiras núpcias trabalhara como caixeiro de Manoel Lopes Viana, de onde partiu para as Minas, depois alcançando o sertão de Crateús, no Piauí[5].
Depois dessa segunda viuvez, D. Luzia Coelho continuou a tocar sozinha os seus negócios nas fazendas e na liquidação dos contratos dos dízimos reais. Por força do trabalho constante consolidou-se como grande latifundiária e criadora de gado vacum e cavalar. Segundo informa o Barão de Studart, foi casada cinco vezes mas só localizamos o nome desses dois primeiros maridos. Por força das circunstâncias, as viuvezes repetidas, foi acumulando o patrimônio do casal de forma a impor em seus negócios um regime matriarcal que diferiu da situação da época, sendo uma exceção no sertão de Crateús.
Segundo uma relação de todos os possuidores de terras do Piauí, elaborada pelo conselheiro ultramarino Francisco Marcelino de Gouveia, finalizada em 15 de novembro de 1762, possuía as seguintes fazendas na ribeira do Crateús, termo da vila de Marvão: Riacho do Gado, com três léguas de comprimento e outras tantas de largura, arrendada ao procurador de Antônio da Silveira; Piranhas, com três léguas de comprido, e outras tantas de largura, que lhe ficou por morte de seu segundo marido Manoel da Silva Lobato, tendo este a arrematado no Juízo dos Ausentes da cidade de Oeiras, em execução que se fez nos bens de Gonçalo da Silva Teixeira[6]; Riacho dos Cavalos, com três léguas de comprido e outras tantas de largura, sem título dominial; Lagoa, junto ao rio Poti, com três léguas de comprido e quatro de largura, com um retiro pelo riacho Irapuá[7], com mais três léguas de comprido e duas de largura, que lhe pertenceu por morte de seu primeiro marido João Fernandes Lima, a quem a tinha dado seu tio João da Costa Lima; São João, com três léguas de comprido e duas de largura, a qual lhe pertenceu por falecimento de seu marido Manoel da Silva Lobato, que a tinha arrematado no Juízo dos Ausentes da cidade de Oeiras, por falecimento de João da Costa Lima.
A fazenda Riacho do Gado foi vendida em 1778, pelo preço de doze mil cruzados, ao coronel Manoel Martins Chaves, da ribeira do Acaraú. Em 1806, foi dele confiscada juntamente com 600 vacas e 8 escravos de fábrica e arrematada no juízo dos ausentes por José Ferreira Santiago, que se estabelecia com fazendas naquela região.
Sobre a abastada fazendeira Luzia Coelho da Rocha Passos, em 1919, assim informou o historiador cearense, Barão de Studart:
“Dª Luzia Coelho, natural da Bahia, foi quem edificou a igreja do Senhor do Bonfim em Crateús, antiga Piranhas, e doou-lhe para o patrimônio uma légua de terra e uma fazenda de gado. Foi casada cinco vezes e não deixou filhos. Dessa descendente da Casa da Torre e de sua fundação me ocupei em trabalho publicado com o título Príncipe Imperial na Revista do Instituto do Ceará, ano de 1889”[8].
Assim, rastreando os escritos do famoso historiador de além-Ibiapaba, voltamos vinte anos no tempo, para conferir na inestimável Revista do Instituto do Ceará, por ele indicada, a seguinte informação:
“Príncipe Imperial foi elevado a vila por decreto de 6 de julho de 1832, sendo desmembrado do município de Marvão.
‘Antigamente era conhecido por Piranhas, por ser assim chamada a primeira fazenda aí situada, que por sua vez tirou o nome da grande quantidade de peixe piranha, que naquele tempo e ainda hoje existe nos poços.
‘Com esta fazenda, situada pela baiana Luzia Coelho da Rocha Passos, descendente da célebre Casa da Torre[9], teve lugar a fundação da povoação.
‘Apesar de casada por 5 vezes não teve descendente algum, mas com o grande número de criados e agregados que ela trouxe e mais tarde com alguns membros das famílias Ferro e Mourões constitui-se a população da povoação, hoje vila.
‘Conta-se que trouxera da Bahia uma imagem do Senhor do Bonfim, atual padroeiro da freguesia, dentro de uma rede conduzida por pessoas a pé.
‘A esse santo fez a mesma senhora doação de meia légua de terra por um e outro lado do rio, uma fazenda de gado, casa e currais no lugar denominada Passagem e hoje conhecido por Passagem do Bonfim.
‘Na casa doada mora hoje Theodoro de Assis Barbosa. Com os pedreiros e carpinas trazidos da Bahia levantou ela uma capela, que atualmente serve de matriz, para o seu Senhor do Bonfim”[10].
Essa capela foi edificada no ano de 1772.
Conforme se vê pelo insuspeito depoimento do Barão de Studart, um dos maiores pesquisadores da história cearense, D. Luzia Coelho da Rocha Passos, não foi somente a benfeitora, mas verdadeira fundadora da fazenda e povoação das Piranhas, na ribeira de Crateús. Ali chegou com escravos, vaqueiros e agregados fazendo levantar a caiçara dos currais, erguer a capela e primeiras moradas, de que resultou a povoação. Em face do prematuro falecimento de seus cinco maridos e de ser ela, de fato, a senhora das fazendas, fez-se forte e governou com pulso firme o lugar valendo-se de sua respeitável posição para impor-se em um meio patriarcal e violento. Mas tinha a seu dispor um exército formado pelos referidos escravos, vaqueiros e agregados, assim impondo-se não somente pelo poder econômico, mas também pela força bruta para dissuadir os mais renitentes facinorosos. Para se ter uma ideia do que era a região de Crateús por aqueles dias, situada na divisa de duas capitanias, segue o interessante registro feito pelo inolvidável historiador cearense:
“A comarca de Crateús gozou no passado de ruim nome como o valhacouto de criminosos, o teatro de sanhudos potentados[11]. Já não se dão, todavia, aí lutas cruentas, que faziam tremer os magistrados há anos passados e traziam a população em contínuo sobressalto.
‘Já lá vai o tempo em que à detonação de um tiro acompanhavam sempre as seguintes palavras: Deus te dê o reino do céu.
‘Os Ferros, Mourões e Barros de Mello não tiveram imitadores na prática de suas façanhas.
‘Como atestado delas ainda veem-se dezenas de cruzes levantadas pelos caminhos.
‘Dizem que peneirando-se a areia do lugar, onde está situada a matriz, não seria fúria tirar-se um alqueire de chumbo e balas[12]”.
É forçoso dizer que no tempo de D. Luzia Coelho, esses Mourão, Gadelha e Mello ainda não imperavam em seus domínios, somente dele tomando conta depois de sua morte, na primeira metade do século seguinte.
Pelo decreto da regência do império, em nome do imperador, de 6 de julho de 1832, que sancionou e mandou executar resolução da assembleia geral legislativa, tomada sobre outra do conselho geral da província de 30 de janeiro de 1830, foram erigidas cinco vilas e três paróquias em algumas povoações do Piauí[13]. Entre essas a povoação de Piranhas, então elevada à categoria de vila com o nome de Príncipe Imperial, em homenagem ao jovem monarca e também para divorciarem-se do passado de intrigas que dilacerou o lugar[14]; pelo mesmo ato foi também criada a freguesia de Bom Jesus do Bonfim, ambas com os mesmos limites territoriais e desmembradas do termo da vila de Marvão, hoje Castelo do Piauí. Pela lei provincial n.º 436, de 24 de julho de 1857, foi desmembrado parte de seu território para formar na povoação de Pelo Sinal, a vila de Independência[15]. Em 3 de junho de 1862, a câmara municipal de Príncipe Imperial comunica ao governo que o cholera-morbus está grassando na povoação das Vertentes, daquela comarca. Como consequência o presidente da província envia remédios e nomeia duas comissões sanitárias incumbidas de distribuir medicamentos e dietas aos indigentes dos termos de Príncipe Imperial e Independência, formadas pelo juiz de direito, juiz municipal, vigário, delegado de polícia e pelo presidente da câmara municipal de cada municipalidade[16].
Em face do decreto n.º 3.012, de 22 de outubro de 1880, foi a comarca de Príncipe Imperial anexada à província do Ceará, em troca da litorânea vila de Amarração, que passou ao Piauí. Desde então, conforme consta no artigo primeiro do referido diploma legal, ficaram “servindo de linha divisória das duas províncias a Serra Grande, ou a Ibiapaba, sem outra interrupção além do rio Poti, no ponto do Boqueirão, e pertencendo à província do Piauí todas as vertentes ocidentais da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientais”. Limites claros como o pino do sol ao meio-dia, assim, não se sustentando as ainda atuais reinvindicações do Ceará nas vertentes ocidentais da serra de Ibiapaba.
Já integrada ao Ceará, pelo decreto n.º 1, de 2 de dezembro de 1889, a vila de Príncipe Imperial, foi denominada Crateús, em homenagem aos indígenas do lugar e à ribeira pela qual sempre fora conhecida. Pela lei estadual n.º 1.046, de 14 de agosto de 1911, foi elevada à categoria de cidade. Foi essa, pois, a evolução histórica da cidadela de dona Luzia. Com essas notas homenageamos a cidade e sua fundadora, uma velha fazendeira dos sertões de Crateús, na era piauiense.
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*REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]
[1] Era filho de Thomé da Silva e sua mulher Maria da Encarnação, naturais e moradores na mesma freguesia de N. Sra. da Purificação, em Oeiras, Portugal.
[2] AHU. ACL. CU 016. Cx. 5. D. 337 e 338.
[3] AHU. ACL. CU 018. Cx. 8. D. 466
[4] Pedro Rodrigues de Lamarcha, faleceu em 21 de setembro de 1736, com 75 anos de idade, sendo sepultado na igreja de N. Sra. dos Remédios de Parati.
[5] PT/TT/TSO-IL/028/CX1595/14852. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 14852; PT/TT/TSO-IL/028/16737. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 16737; PT/TT/TSO-IL/028/CX1591/14586. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 14586.
[6] Embora conste essa informação no título dominial do imóvel, a posse já era de D. Luzia Coelho desde antes desse matrimônio, inclusive foi em sua casa situada nesta fazenda que ela contraiu as segundas núpcias com esse arrematante, conforme termo de casamento lavrado no livro eclesiástico da freguesia de Marvão, cuja certidão tivemos oportunidade de ler. Ele apenas legalizou em seu nome, como cabeça do casal, o patrimônio que sua esposa trouxera com o casamento.
[7] Nesse sítio Irapuá, situada à margem esquerda do riacho Tourão, um dos tributários da margem direita do Poti, distante cinco léguas da povoação das Piranhas, foi criado um nicho sob a invocação do Senhor Bom Jesus de Jerusalém. Estava encravado em meia légua de terras que foi doada por José da Costa Silveira e sua mulher Maria dos Santos, por escritura pública passada por Manoel Antônio Lisboa, tabelião da vila de Marvão, hoje cidade de Castelo do Piauí, em 2 de julho de 1788, juntamente com 12 novilhas, cuja gestão embora negligente ainda existia em 1889, segundo o Barão de Studart. Conforme se vê, esses doadores sucederam à Senhora de Crateús, na posse do referido sítio e na devoção à religião cristã.
[8] STUDART, Barão de. João Carlos Augusto de Oeynhausen e Manoel Martins Chaves. Revista do Instituto do Ceará. Ano XXXIII. Fortaleza: 1919. P. 3-21.
[9] Achamos improvável essa ascendência na Casa da Torre, embora pertencesse a nobres famílias da Bahia. Seu patrimônio não advém de herança da Torre e sim da força de trabalho dela e de seus consortes.
[10] STUDART, Barão. Príncipe Imperial. In: Revista do Instituto do Ceará. 3º - 4º Trimestres. Ano III. Tomo III. Fortaleza: Tipografia Econômica, 1889. P. 198-203.
[11] No expediente de 8 de setembro de 1847, do presidente da província ao chefe de polícia, foi pedida providência para o assassinato de Ignácio da Silveira Gadelha, na vila de Príncipe Imperial.
[12] STUDART, Barão. Príncipe Imperial. In: Revista do Instituto do Ceará. 3º - 4º Trimestres. Ano III. Tomo III. Fortaleza: Tipografia Econômica, 1889. P. 198-203.
[13] Poti, hoje Teresina, e a freguesia de N. Sra. do Amparo; São Gonçalo, que já era freguesia; Piracuruca, que já era freguesia; Jaicós, que também já era freguesia; e apenas para freguesia, Confusões, hoje São Raimundo Nonato.
[14] “Disse-me pessoa de critério que a mudança do nome foi devida ao desejo de verem se assim acabavam tantas intrigas, que dilaceravam o lugar”, anotou Paulino Nogueira em seu Vocabulário Indígena em uso na província do Ceará (Revista do Instituto do Ceará. 4º Trimestre. Ceará: Tipografia Econômica, 1887. P. 209-435).
[15] Instalada oficialmente em 1º de março de 1858. Pelo Sinal, foi em sua origem uma fazenda com três léguas de comprimento e duas de largura, pertencente a João Gomes de Mello, seu povoador. Recebeu o nome de Independência, em homenagem à guerra em que se bateu o Piauí, para libertar-se do jugo português e permanecer integrado ao Brasil. Em 22.10.1880 seu território juntamente com o de Príncipe Imperial (Crateús), que formavam uma só comarca, são transferidos para a província do Ceará em troca da vila de Amarração, hoje Luís Corrêa.
[16] O Expectador, 17.6.1862.