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A curiosidade é mais importante do que o conhecimento.
Albert Einstein
- NÃO! – gritou o homem enquanto a porta se fechava.
O lugar era muito estranho. Uma sala com paredes brancas tendo, somente, duas cadeiras como únicos móveis. Em um dos lados havia uma grande janela, sem vidros, através da qual se avistava uma paisagem deslumbrante. O céu não era azul, mas lilás, assumindo em alguns pontos tons de laranja e verde. Quando se olhava para baixo via-se um imenso oceano e ondas que chegavam à terra batendo com uma força extraordinária. No entanto, o ruído não era perceptível para quem estava dentro da sala. Ali se ouvia apenas um rumor contínuo semelhante à respiração de um ser gigantesco.
Na sala encontravam-se dois homens. Um estava de pé, de costas para janela, mostrando em seu rosto uma expressão que ia da simples raiva até a completa indignação. O outro, sentado em uma das cadeiras, olhava o companheiro com um sorriso complacente.
- Não! – disse o homem em pé, tentando recuperar a tranquilidade perdida durante a discussão. – Você não vê o quanto está se afastando de Deus? Os vícios devem ser refreados, anulados, extintos. Deveríamos nos concentrar apenas na busca dos conceitos mais elevados, o resto é vaidade, perdição eterna.
O homem sentado não se mexeu. Ou melhor, somente seus olhos se moveram, desviando-se daquele que o encarava furioso e dirigindo-se à paisagem além da janela. A visão daquele estranho céu aprofundou ainda mais o seu sorriso.
- Caro amigo, não percebe o absurdo de suas palavras? Como a curiosidade pode ser um vício? Não compreendo como pode ser errado o desejo de revelar o que Deus encobre. Olhe à sua volta e tente explicar esse céu ou esse oceano? Alguma vez já havia visto cores assim? Não acredito que você não tenha curiosidade em descobrir onde estamos e como viemos parar aqui.
- Não me chame de amigo – disse, bruscamente, o homem diante da janela. – Não sou amigo de alguém que defende ideias heréticas como as suas. A busca da verdade deve sempre ter como maior objetivo a compreensão da natureza de Deus, o que não dá direito a ninguém de questionar a Sua obra ou os Seus desígnios. Quanto a esse lugar, é evidente que se trata de uma armadilha do demônio.
Agitado afastou-se da janela, como se esse gesto pudesse negar o que estava às suas costas. Aquele lugar era, com certeza, algum tipo de purgatório para onde sua alma pecadora havia sido enviada. Uma prova disso era aquele homem. Sua presença, encarando-o com uma expressão de deboche, era a prova definitiva de que estava sendo assediado pelo demônio. No entanto, ele não cairia nos seus ardis. Para conquistar o direito de viver no paraíso, ao lado do Pai, lutaria contra todas as tentações de Satanás. E o primeiro passo seria destruir aquele homem e seus argumentos infames.
- A curiosidade que você tanto defende é inútil. Em seu nome cometemos crimes inomináveis. Deixamo-nos levar por pensamentos e ações que nos afastam de Deus. Condenamos nossa alma à danação eterna.
- Você realmente acredita que Deus condenaria os homens por desejarem buscar as razões ou as causas primeiras de sua existência?
- O demônio tem muitas faces e uma delas é a curiosidade – respondeu firme o homem.
O homem sentado não pôde deixar de sentir pena do seu companheiro de sala. Estava diante de um fanático, de alguém que negaria os fatos mais elementares se esses contrariassem as suas crenças. Esse era o pior dos ignorantes, pois do alto da sua fé extremada acreditava-se um mensageiro de forças superiores e desconhecidas. Discutir com um fanático era como discutir com uma parede. No entanto, ele não queria abandonar o debate, era preciso fazer uma nova tentativa, quem sabe, seus argumentos conseguissem derrubar o muro que havia se interposto entre eles.
- Você fala muito do diabo? Acho estranho um homem que se diz temente a Deus ter tanta intimidade com o demônio. De qualquer maneira, o seu ataque à curiosidade, declarando-a como algo diabólico, não tem sentido. É a curiosidade que diferencia o homem do animal. É ela que incita o ser humano a buscar a causa e os efeitos dos fenômenos naturais e das questões éticas. Sem ela não há crescimento, não há evolução.
- Evolução? Do que você está falando? – interrompeu o outro. – O homem foi feito a imagem e semelhança de Deus. Não há como querer melhorar o que foi criado por Ele, uma inteligência que está muito acima da nossa. Esse pensamento é uma blasfêmia, uma heresia, uma...
Nesse momento um ruído estranho interrompeu a discussão. Os dois homens silenciaram tentando ouvir melhor. Era o primeiro som, além daquele produzido pelo oceano, que escutavam desde que haviam despertado naquela sala. Olhando à volta perceberam que na parede oposta à janela uma porta tinha sido aberta. Ela surgira onde antes nada existia.
Os dois homens se olharam assustados. Aquele que estava sentado levantou-se devagar e andou em direção à porta e à luz que vinha do corredor. Seu passo foi interrompido pelo outro.
- Onde você pensa que vai?! Não está vendo que se trata de uma armadilha? O demônio o está atraindo. Afaste-se dessa porta! – disse entre furioso e apavorado.
O homem olhou para o companheiro e depois para a porta. Seu rosto iluminou-se com um novo sorriso.
- Você não percebe? Um novo mundo está prestes a se revelar diante de nós, não podemos perder a oportunidade de conhecê-lo. Vamos juntos descobrir o que está além dessa sala! – Com um gesto amigável estendeu a mão para o homem apavorado que continuava a fitá-lo.
O outro recuou um, dois passos, afastando-se da mão estendida.
- Não! Você não vê?! Isso tudo é uma terrível armadilha. Se cruzarmos essa porta estaremos caindo nos braços de Satanás e indo direto para o inferno.
- Olhe a sua volta, meu amigo. Essa sala com suas paredes brancas já é o inferno. Não quero ficar aqui pela eternidade. Por favor, venha comigo!
O outro recuou mais um passo.
Com um suspiro, não disse mais nada e confiante andou em direção a porta. A última coisa que ouviu antes dela se fechar, isolando-o daquela sala de paredes brancas, foi um grito angustiado.
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Curiositas, originário do latim dos eruditos da Idade Média,significava interesse que se tinha sobre determinado assunto até tudo que era considerado raro e extraordinário. Nos séculos XVI e XVII seu sentido mudou, passando a ser a força propulsora revolucionária na busca pelo conhecimento da Natureza. Hoje significa um desejo intenso de ver, ouvir, conhecer, experimentar geralmente algo novo e desconhecido.
Texto publicado originalmente no site Argumento.net em março de 2012.