Estátua de Zé Doido após acidente. Registro de viajantes
Estátua de Zé Doido após acidente. Registro de viajantes

Dílson Lages Monteiro - Especial para Entretextos

– Não sou doido, não, sou é tarado né, siô? – era assim que repetidamente, sem qualquer sinal de cansaço, Zé Doido abordava quem passasse na rua. Em voz hesitante, esperava dos interlocutores, quase sempre ausentes de contato visual, um sinal de confirmação da pergunta.

Um ou outro troçador alegrava-se de sadismo:

– Tu não é doido, não. É muito é sem-vergonha!

E ele, em impaciência angustiante, se punha a repetir:

– Sou doido, não; sou é sem-vergonha!

Nunca se soube seu nome. Apenas uma vaga referência à cidade de origem. Quaisquer alusões a ele, sempre pelo qualificativo que o diminuía. O que o identificava também o anulava. Como pessoa. Como criatura do mundo das sociabilidades. Que triste!

Zé Doido habitou os temores de muita criança. E de mulheres, em especial. Vez ou outra, saía dizendo que elas estavam apaixonadas por ele. Costumeiramente, nu da cintura acima, punha-se a atritar pedras entre si ou contra calçadas. Mãos sobre a testa, olhando para o céu à procura do sol. Dizia que o estava esquentando. “Sol quente da mulesta, siô. Sol quente! Eu que esquentei”.  

De tempos em tempos, desaparecia. A natureza andarilha o levava à cidade natal no pé da Serra Grande, a mais de 100 quilômetros. Quando não, aos lugarejos no entorno. Certo é que voltava a ir à porta do empresário que, nascido no mesmo canto que ele, carregando o peito cheio de borboletas e admiração pelo mundo, tratava de diminuir os padecimentos do conterrâneo. Um homem bom. Muita gente ainda lembra do tanto que bem fez. Quem vai esquecer bondade enquanto ainda existir sinal de vida em forma de recordação?

Para além de viver nas ruas admirando o sol escaldante, o andarilho era visto com frequência na beira do rio. Escondido detrás de moitas em um tempo de abundante vegetação. Tempo sem máquina de lavar roupas. Multidão de lavadeiras nas margens batendo roupa em lages que até propriedade e lugar certo tinham. A pedra da dona Maria. Da dona Francisca. Da dona Joana. Anônimas da vida social, a não ser quando, de trouxa na cabeça, carregavam também a roupa limpa dos patrões. Aqui e acolá, punham Zé Doido a correr das moitas, receosas de que promovesse um ataque, o que nunca aconteceu com esse voyerista da imaginação sem fim.

Era um tempo de lazer na beira dos rios também. Em churrascarias que marcaram época. Uma delas tinha o nome de Beira rio. Casa no alto do morro. Mesa de lages dispostas em filas debaixo de frondosas mangueiras. Gente de toda idade na areia branca à margem. Conversas animadas ao som de “La Belle de jour”, “Morena Tropicana”, “Da Manga Rosa, quero o gosto e o sumo”, de Alceu Valença. Gente bebericando pinga. Comendo Peixe frito. Enormes piranhas que desapareceram. Surubim ao molho. Coisa rara. Zé doido zanzava por ali, nas imediações, detrás de moitas.

Os adolescentes buliçosos se aproveitavam... Rio tomado de banhantes e eles lá, os comportadinhos, a se fartarem. Mergulhavam fundo e passavam as mãos nas pernas das mulheres. Ou beliscavam forte. Elas saíam em disparada. Praguejavam. Diziam nome feio. “É o Zé Doido, vi ele mergulhando, tarado”. A molecada tratava de espalhar que o andarilho tinha fôlego grande e estava na ilha a sorrir seu riso ingênuo de pena e compaixão. O riso natural da admiração da luz e da natureza. Ficava sendo Zé Doido o beliscador.

Certa vez, parado nas imediações de uma chácara nas proximidades da cidade em início de noite, lá estava ele do nada. A luz do dia já rareava e as corujas sentavam na ponta dos mourões de cerca. Ele aproximou-se como um raio que cai dos céus antes de chuva inesperada. Queria carona para a cidade. Disse logo ao irmão que não o levaria.

“Que é isso? Ele vai entrar e fica quieto... Não vamos deixá-lo nessa escuridão à mercê de maldosos, vamos?” – convenceu-me, mas não sem antes fazer uma advertência: “Olha, Zé Doido, tu não vai morder ninguém aqui, não!”.

– Mordo não, mordo não! Quero ir pra casa do vereador! Vereador é amigo! Amigo, amigo! Com fome, com fome! – tratou de responder, me convencendo por completo de que não era ameaça. Apenas uma barriga roncando.

Dali a pouco mais de um quilômetro, descia na porta do vereador. Bateu palmas. Chamou pelo nome. Foi a última vez que o vi. Tempos depois, soube do fatídico desastre. Por duas vezes, ele morreu, você acredita? Duas vezes, o povo não cansa de repetir. O desastre verdadeiro na margem da rodovia do município vizinho... O caminhão atirando-o longe como bicho. A comoção ligeira de toda a região.

Ergueram em sua homenagem um busto. Veio um veículo em disparada. Cheio de armas e ladrões de banco. A imaginação diz que Zé Doido, do além, entrou na frente do carro e provocou o desastre... A estátua pulou longe... Morte por duas vezes. Duas vezes. A morte Real. A morte da estátua esfarelada. Mas logo o andarilho voltaria a enfeitar à margem da rodovia sob a forma de estátua nova. Com direito a inauguração pelo senhor prefeito.

Quando vejo uma dessas figuras que dizem doido, esquecido pelas ruas, penso no que já viveram de desprezo. De acolhimento. Nas histórias surpreendentes pelas quais passaram, em caminhos que a fatalidade ou o desamor construiu, sem que se tivesse possibilidades de escolhas. Penso nas famílias. Ou na inexistência delas. Lembro-me de Fernando Pessoa e seu Banqueiro Anarquista. Seria realmente aceitável, sem indignidade, que se nascesse assim ou nisso, no ser quase invisível que mete medo ou provoca risos, se transformasse? Lembro-me de Zé Doido. E antes de sorrir ou evitando essa ação, olho para o céu e me pergunto se não poderia ser tudo diferente.