Crônica: "Na Glória"

[J. Carino]

Ninguém passa impunemente pelo bairro da Glória.

Alguma força, a um tempo suave e poderosa, imanta aquelas ruas, as casas antigas, os prédios novos, o calçamento de paralelepípedos, que é resquício do ontem e irrompe no asfalto de hoje.

Cruzando o bairro da Glória, entramos em outro mundo, porém mantendo-nos neste, que nos obriga a correr, suar, lutar, na azáfama do cotidiano.

Basta olhar aquele famoso relógio para sermos contaminados pela magia de um tempo passado em que a Glória pontificava em elegância; em que carruagens lentas conduziam aristocratas lançando um olhar blasé em direção a passantes humildes e perplexos diante de tanta ostentação; e, depois, bem depois, quando as Grandes Sociedades carnavalescas desfilavam pelo bairro sustentando batalhas cordiais de confete e serpentina, que se entranhavam no cabelo de donzelas travestidas de melindrosas - pingentes coloridos da alegria -, como se entranhou na saudade dos velhos foliões o refrão imortalizado na letra de um chorinho: "Na Glória!".

Quer ver um Rio lindo, caro leitor? Vá à Glória e suba ao adro da igrejinha. Olhar lá de cima é ver um mar ainda contendo no seu seio espumoso a nostalgia dos tempos em que marolas suaves chegavam até abaixo do relógio, transformando-se em testemunhas de amores pudicos, quando as ousadias chegavam no máximo... ao passeio de mãos dadas.

Olhamos do alto e podemos ver um casario hoje maltratado pelo tempo, um não acabar mais de telhados, com sua cor ocre enegrecida pelo passar dos anos, nos quais, aqui e ali, a sementinha deixada cair por algum pássaro com coração de poeta, brota e se torna uma plantinha alimentada pelo musgo de um verde austero, escuro, profundo. Mas, em contrastes abusados, florezinhas amarelas irrompem entre essas telhas vãs. Tão vãs quanto a maioria das esperanças...

Glória da Taberna... Quanta mágoa afogada em chope! Quanta desilusão curtida em porres homéricos! Taberna que sempre foi o protótipo de todas as tabernas do mundo: oásis no cáustico deserto de laços desfeitos, braços sem abraços; parada obrigatória dos que trilham os descaminhos dos amores não correspondidos, ou de outros, plenos enquanto duraram e depois incinerados no fogo da paixão.

Glória do famoso hotel, fausto do passado, sala de visitas sofisticadíssima em que a cidade recebia hóspedes ilustres e turistas abonados. Nas salas espelhadas, fantasmas vaidosos talvez ainda passeiem seu narcisismo, abrindo e fechando portas com maçanetas douradas.

Passando pelo Aterro, no trânsito enlouquecedor, motoristas têm, de um lado, a visão paradisíaca do Pão de Açúcar, eterno cartão postal; de outro, vêem, daqui de baixo, a igrejinha de um branco tão imaculado como as almas lavadas de todos os pecados. Nela, Nossa Senhora da Glória vela por todos.

Na pracinha da Glória, São Sebastião, amado santo patrono crivado de flechas, parece atrair para si todas as dores, todos os sofrimentos de nossa mui leal e heróica cidade.

E, ainda que ateus sejamos, o espírito parece elevar-se em prece pela vida, pela cidade, por um Rio tão lindo.

Como bons cariocas, a irreverência circulando no sangue nos tira da contrição para o inevitável gracejo do jogo de palavras:

- Glória à Glória, para sempre!

J. Carino é professor universitário.

Relógio da Glória, inaugurado em 15 de abril de 1905.