Fotografia do autor tomada numa rua da cidade de Cusco.
Fotografia do autor tomada numa rua da cidade de Cusco.

Reginaldo Miranda[1]

  1. Cusco, o “umbigo do mundo”.

Era pouco mais de quinze horas, quando o avião pousou no aeroporto da velha cidade de Cusco, nos Andes peruanos, capital do departamento de igual nome. Isto depois de dar voltas entre montanhas. Mais tarde, nos diria um guia local que somente os pilotos mais experientes são destacados para pilotar aeronaves naquele destino. De fato, não é fácil o aterrissar e decolar naquele aeroporto, cuja pista de pouso é rodeada por montanhas. Depois da última conexão em Lima, finalmente chegaríamos à antiga capital do Império Inca.

Éramos um grupo de vinte pessoas, formado por dez casais, sendo uns, colegas de curso acadêmico; outros, de carreira jurídica ou de profissões diversas. As poucas amizades recentes foram aquelas travadas nas reuniões antecipatórias da viagem, sendo esses últimos parentes ou amigos de nossos amigos. Enfim, a comitiva era formada por um bom grupo de amigos. Ao desembarcarmos no aeroporto, já um transfer nos aguardava para nos levar ao hotel previamente contratado, no centro da cidade. Foi de seis dias nossa estada naquela cidade andina, entre 28 de outubro e 3 de novembro do corrente ano.

Cusco é uma das poucas cidades pré-colombianas da América. Para alguns, sua origem encontra-se envolta em lendas, sendo pré-incaica, como nos lembrou um motorista de táxi com quem travamos breve diálogo, constituindo-se em um epicentro político e econômico de várias civilizações, como o império Wari e o reino Killque. Para outros, deita suas origens em período mais recente, principiando no século XI ou XII da Era Cristã, quando fora fundada pelo chefe inca Manco Capac. As construções incas resistiram ao tempo, desafiando terremotos e outras intempéries da natureza e ações humanas. Em 1534, fora a cidade tomada pelos espanhóis que modificaram sensivelmente sua arquitetura, sendo hoje um exemplo peculiar de fusão entre arquitetura inca e espanhola. Entretanto, são facilmente identificadas as majestosas construções de pedra inca entre o casario colonial espanhol. Por sua riqueza arquitetônica, em 1983, a cidade de Cusco foi tombada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

Essa cidade fica situada no alto da Cordilheira dos Andes, a mais de 3.400 metros de altitude, possuindo cerca de meio milhão de habitantes. Essa elevada altitude torna o ar rarefeito, podendo causar mal-estar em visitantes, a exemplo de falta de ar, enjoo, dor de cabeça, etc., males esses que felizmente não tivemos. No hotel havia sempre água fervida e folhas de coca disponíveis, para aumentar a resistência de quem nelas quisesse se aventurar. Em consequência da altitude, o clima é subtropical árido com poucas chuvas e temperaturas variando entre 4°C e 21ºC.

Um dos mais atraentes pontos turísticos da cidade é a Plaza de Armas, onde fica a majestosa Catedral, a bela igreja dos seguidores de Santo Ignacio de Loyola, um monumento ao líder indígena Pachacutec, e casas de câmbio, o comércio, enfim, também bons restaurantes. Ao que conseguimos apurar, durante o período inca essa praça era conhecida como “Auccay Pata”, ou seja, “o local mais importante”. Possuía maiores dimensões, com cerca de 250 metros de comprimento por 120 metros de largura, dividida em duas partes, ambas cercadas por palácios e templos. Foi, porém, redesenhada pelos espanhóis, que a converteram em quatro: a Plaza de Armas, correspondendo a apenas um terço da anterior; e mais a Plaza Regocijo, a Plaza San Francisco e Plazoleta Espincar. Recebeu esse nome no período colonial porque era um ponto de encontro para soldados e armas espanholas, como acontecia em outras praças de vilarejos nos arredores, que também receberam a mesma denominação, onde eram realizadas manifestações militares. No caso de Cusco, por ali passou grande parte da história do Peru, onde reinaram os imperadores incas. No período de dominação castelhana, continuou sendo um importante centro político, social e econômico, havendo contestações e revoltas. Nesta praça, em 1572, foi barbaramente executado e decapitado o último imperador inca, Tupac Amaru I, que, rebelado, havia se refugiado em Vilcabamba, desafiando a dominação estrangeira. Em 1771, foi esquartejado com o corpo amarrado a quatro cavalos e também decapitado o líder nativo e rebelde Tupac Amaru II, por desafiar a dominação espanhola e pregar a independência peruana; era ele descendente por via materna daquele imperador inca de mesmo nome, que lhe antecedeu. Por fim, nasceu em seus arredores e nesta praça brincou e estudou o primeiro escritor das Américas, o mestiço de aristocratas espanhóis com a realeza indígena, Inca Garcilaso de la Vega.

Para quem defende uma origem pré-incaica para a cidade de Cusco, era ela antes dos incas cercada por muitos palácios e santuários que foram destruídos e substituídos por palácios incas, entre esses, os palácios Huayna Qapac e Wiracocha, além dos edifícios Accla Wasi (casa das mulheres escolhidas), Suntur Wasi (arsenal) e Yachay Wasi (casas do conhecimento).

Mais tarde, foi a vez dos espanhóis substituírem essas suntuosas construções incas por templos e casas coloniais, a exemplo do palácio de Huayna Qapac, que foi substituído pela igreja da Companhia de Jesus; o Accla Wasi foi substituído pelo convento de Santa Catalina;  o Suntur Wasi foi substituído por uma casa colonial, hoje funcionando em seu interior algumas casas comerciais; o palácio de Wiracocha foi substituída pela catedral; por fim, para não alongar, o Yachai Wasi foi substituído por um grupo de casas coloniais. Porém, pelo corte e encaixe das pedras, é fácil perceber em todas essas construções as emendas entre a arquitetura colonial espanhola e a desenvolvida engenharia inca. A cultura inca permanece viva em Cusco para atestar a engenhosidade e nível cultural daquele povo. É o que nos cumpre relatar nessas breves notas para bem situar o leitor.

Desde o primeiro dia de nossa chegada, o grupo preferiu jantar sempre nos restaurantes dessa praça, sendo que os principais restaurantes ficam situados na lateral direita à catedral, entre os quais frequentamos: La Chicha, Inka Grill, Mistura Grill Restaurant, etc. Interessante ressaltar a excelente culinária peruana, em muitos aspectos parecida com a brasileira, sendo farta as variedades de peixes e carnes. Merece destaque pelo exotismo a carne de alpaca, que degustamos por mais de uma vez, sendo macia, suculenta, com baixo teor de gordura e, mais comumente, servida na forma grelhada, com acompanhamento de arroz, batatas, purê, saladas ou risoto de quinoa.

A capital inca foi estrategicamente fundada no meio de seu território, que se estendia desde a atual Colômbia ao do Médio-Chile, daí ser chamada por seus antigos habitantes de “umbigo do mundo”. As suas imponentes construções com perfeito encaixe de grandes pedras são um testemunho do avanço da arquitetura inca. Passear em suas ruelas pitorescas apreciando vestígios dessas construções é fazer um fundo mergulho na história desse povo de cultura avançada. As ruas, embora estreitas, eram bem pavimentadas. A canalização de água desde as nascentes, pelo traçado urbano muito dizem do conhecimento daquele povo. Conforme dissemos, fácil é perceber no centro histórico o que foi obra dos incas e o que foi dos espanhóis. O estilo inca é inconfundível. Porém, sobre os escombros de muitas construções, reutilizando material, foram construídas pelo colonizador espanhol suas casas e monumentos, dando um aspecto todo especial àquela cidade andina. Por todas essas peculiaridades, é considerada a Capital Arqueológica das Américas.

Em Cusco, visitamos a referida Praça onde se destaca a Catedral com sua arquitetura colonial e características góticas, maneiristas, renascentistas e barrocas. Em seu interior abriga pinturas, murais, esculturas e valiosa coleção de antiguidades.

A igreja da Companhia de Jesus, com belas linhas arquitetônicas, cuja primeira fundação data de 17 de julho de 1571, por ordem do vice-rei Francisco de Toledo e iniciativa do padre provincial Jerônimo Ruiz de Portillo é um lugar imperdível para visitação. Foi edificada no palácio inca Amaruinca, possuindo em seu interior uma nave com imponente altar principal, esculpido em cedro e completamente dourado. Caminhar em seu interior e apreciar detalhes e estilos de construção, é mergulhar profundamente no passado e na rica história de um templo e de uma cidade cujas raízes se confundem com a da formação das civilizações andinas.

Não tão distante da Plaza das Armas, visitamos o Mercado Central de San Pedro e o Centro Artesanal, cada um com suas peculiaridades para atrair atenção dos visitantes.

A cidade também possui alguns museus que ajudam a preservar sua memória, a exemplo do Museo Inka, instalado em um casarão colonial, abrigando ampla coleção de tecidos, múmias, ferramentas e armas; Museo Machu Picchu, com muitas fotos, vídeos e artefatos daquele sítio arqueológico; e o Museo Histórico Regional de Cusco, situado na casa em que viveu o escritor Garcilaso de la Vega, abrigando objetos arqueológicos pré-incas, incas e pinturas da era colonial. Vale a pena a visitação para bem compreender a formação e características daquela sociedade andina.

  1. Arredores de Cusco e sua riqueza arqueológica.

Os arredores da cidade de Cusco são ricos em sítios arqueológicos da era pré-colombiana. Como capital de um vasto Império, era normal que existissem muitos núcleos urbanos satélites, postos de defesa militar e estruturas agrícolas ou voluptuárias em seu entorno, hoje podendo ser apreciados pelos estudiosos da história e da arqueologia. Com a compra de bilhetes turísticos pode-se visitar quaisquer deles em micro-ônibus com o auxílio de guias locais. Mas é preciso ter um bom preparo físico para suportar o sol escaldante que engana ao queimar por entre as nuvens; além de escalar ladeiras íngremes respirando o ar rarefeitos das altas altitudes. Sobre esses sítios existem variadas notas divulgadas por agências de viagens ou registros de turistas, às quais também desejamos deixar nossas impressões.

Merece destaque o Sítio Arqueológico de Moray, localizado na província de Urubamba, distrito de Maras, no Vale Sagrado dos Incas. Segundo as informações locais, essa relíquia arqueológica ocupa atualmente uma área de 37,5 hectares. Fora construído em grandes e variados terraços circulares concêntricos, cuja disposição das plataformas gera diversos microclimas. Uma temperatura mais quente é alcançada no centro mais profundo, aumentando à medida que se move para fora, estimando-se que alcance até vinte estágios diferentes. Era utilizado como avançado centro de pesquisa, cujas descobertas eram aplicadas nos campos agrícolas para sustento da população. Por sua beleza arquitetônica, esse sítio arqueológico é um dos mais visitados e fotografados pelos turistas que visitam o Vale Sagrado, embora exija preparo físico de quem resolva percorrer sua área interna. Mas não se pode descer as paredes para o interior dos círculos, por medida de segurança. Não foi sem esforço que caminhamos por entre essas construções, parando de vez em quando para recuperar a respiração. No entanto, vale a pena a visitação mais de perto. Contudo, também pode ser apreciado à distância, do alto da montanha, proporcionando uma visão geral, como fizeram alguns de nossos amigos, sem prejuízo para conhecimento do lugar.

Também visitamos as Salineras de Mara, conjunto de milhares de poços de extração de sal da montanha, localizadas no Vale Sagrado dos Incas, distrito de Maras, região de Urubamba. Antiguíssimas, datam suas origens da era pré-incaica, originando das águas salgadas que brotam da montanha Qaqawiñay e são represadas nos poços, os quais depois de evaporadas pelo sol escaldante fica apenas o sal. São trabalhadas pelos moradores da cidade de Maras e pelas comunidades camponesas locais, cada família possuindo determinado número de poços, que passam de geração em geração.

Muitas são as opções para os visitantes conhecerem a cultura inca, estre os quais se insere o Parque Arqueológico de Sacsayhuaman, localizado a 6km da cidade de Cusco. A fortaleza de igual nome pode ter sido uma construção pré-incaica remodelada no governo de Pachacutec Inca, para atalaia e defesa. Chamam atenção as paredes esculpidas em imensas rochas, talvez já existentes no local. Em seu sítio arqueológico, de cerca de três mil hectares, estão localizados também as ruínas de Qengo, Puca Pucara, Tambomachay, entre outras menores.

Outro destino muito procurado no Vale Sagrado é o Parque Arqueológico de Pisac, localizado a cerca de 30km da cidade de Cusco. Deriva seu nome de uma palavra quíchua que significa “perdiz”, pássaro abundante na região. Dizem que visto do alto, possui o parque a forma desse pássaro. No passado fora uma cidade ou templo religioso de importância, ainda preservando muitas de suas características históricas.

O Sítio Arqueológico de Coricancha foi dedicado ao sol e a outras divindades, como a lua, as estrelas e as montanhas. Em quíchua significa “invólucro de ouro”. Às margens do rio Apurimac fica localizado o Parque Arqueológico de Choquequirao, abrangendo uma área de quase dois mil hectares. É um complexo arqueológico com edifícios típicos da cultura inca e bem preservada plataforma de andenería, sendo considerada a “irmã sagrada de Machu Picchu”.

No Parque Arqueológico de Tipón pode-se apreciar sistemas de aquedutos, fontes cerimoniais e terraços agrícolas construídos nesse ponto de descanso das famílias incas. Está bem preservado, bem demonstrando o avanço da engenharia hidráulica inca.

O Centro Arqueológico de Chinchero data do período pré-incaico, sendo obra dos nativos chamados Killke. Ocupado pelos incas, serviu de residência para Tupac Yupanqui, que executou a construção de seus palácios no local. Durante a ocupação espanhola, foi drasticamente modificado, onde construíram a igreja de Nossa Senhora de Monserrat.

Além desses, muitos outros são os sítios arqueológicos da região, a exemplo de Raqchi e Piquillacta, todos com suas peculiaridades e riqueza arquitetônica. Cada um construído em época diferente, por gestor diferente e com diferentes objetivos, porém, todos demonstrando a pujança da cultura pré-incaica ou incaica. Contudo, para o visitante difícil é visitar todos, seja pela exiguidade do tempo, pelo cansaço e até mesmo pela repetitividade para quem não é especialista da área. A nosso sentir, quaisquer desses sítios que for visto pela primeira vez provocará profunda impressão no visitante, porque foram os incas caprichosos na construção de todas eles.

 

  1. Ollantaytambo, “la Ciudad Inka Viviente”.

Depois de visitarmos diversos sítios arqueológicos nos arredores de Cusco, almoçamos em uma bela instância situada a caminho. Finalmente, à tarde, alcançamos a antiga aldeia, hoje cidade de Ollantaytambo, em cuja estação ferroviária tomamos o trem com destino a Águas Calientes.

Segundo os registros históricos essa cidade fora fundada em meados do século XV, no vale do rio Patacancha, pelo operoso imperador Pachacutec, o grande construtor do Império Inca. Nesse mesmo período ele também construiu a cidadela de Machu Picchu, de que falaremos à frente. Para a construção de Ollantaytambo, aquele grande imperador destruiu uma cidade anterior ali existente por obra de outras civilizações e a reconstruiu sob o prisma de sua engenharia, incorporando-a ao seu Império. Essa aldeia serviu como importante ponto de verificação, sendo sua etimologia de origem aimara, uma língua do altiplano peruano, cujo significado é “lugar de observação a partir de baixo”. Por sua localização geográfica no topo das montanhas, também serviu como posto de defesa, assim como espaço de veraneio para descanso da elite inca.

Foi em Ollantaytambo que se refugiou o imperador Manco Inca Yupanqui, também conhecido como Manco Cápac II, depois de romper com o momentâneo aliado Francisco Pizarro e declarar sangrenta guerra pela defesa do Império. A relação entre ambos era uma misto de respeito e desconfiança mútua, desde que Pizarro ajudara a efetivar esse líder indígena no poder, com a prisão e execução do irmão e rival Atahualpa, em 1533. No entanto, esse líder nativo não pôde permanecer inerte diante das reivindicações de seu povo, quando, em 1536, aquele militar espanhol que fora cognominado “conquistador do Peru”, saqueou os templos sagrados. Então, à frente de cem mil guerreiros cercou a cidade de Cusco que estava sob domínio dos espanhóis. Frustrado nesse cerco, porque não conseguiu tomá-la, recua estrategicamente com sua tropa para Ollantaytambo, onde impõe severa derrota ao conquistador alienígena, depois de duros combates que se travaram no ano de 1537. No entanto, depois de resistir heroicamente contra o cerco espanhol, Manco Inca abandona Ollantaytambo, refugiando-se nas densas florestas de Vilcabamba, onde evita o confronto aberto, adotando a tática de guerrilha e emboscadas. Porém, por estratégia militar, ao deixar Ollantaytambo destrói as pontes que existiam sob o rio Patacancha, para dificultar a ação do inimigo. Mais tarde, os espanhóis a reconstroem resgatando elementos líticos incas, de conformidade com a arquitetura da época. Manco Inca resistiria em Vilcabamba, até o ano de 1544, quando foi traiçoeiramente assassinado por um grupo de dissidentes espanhóis que abrigara em seu palácio. Seus três filhos governaram em sua sucessão, sendo o primeiro Sayri Túpac, que abdicou em 1558; Titu Cusi Yupanqui, morto em 1571; e, finalmente, Túpac Amaru I, o último imperador inca, que honrou a tradição de seus ancestrais, resistindo à dominação estrangeira até ser barbaramente executado em 1572. Morreu o homem, na luta, mas ficou em seu povo a ideia de liberdade, vez ou outra provocando revoltas.

Em Ollantaytambo pode-se apreciar o Templo do Sol e o belo sistema andenería, o Banho do Ñusta, a Real Casa do Sol e a Cobertura Monumental, entre outras belezas arqueológicas. No topo da montanha que cerca a cidade, existem antigas construções chamadas Colcas, que serviam para armazenar produtos básicos da alimentação indígena, como milho e batata. Infelizmente, pelo cansaço e pelo adiantado da hora, apenas exploramos o sítio urbano da cidade, podendo apreciar importantes vestígios daquela civilização andina. Porém, a exemplo do que dissemos sobre o Sítio Arquelógico de Moray, também em Ollantaytambo existem terraços agrícolas de grandes dimensões, construídos em sintonia com a posição do sol e do ambiente natural, criando microclimas diferentes que permitem o cultivo de diversos produtos agrícolas.

Como centro religioso, agrícola, militar e de lazer, Ollantaytambo conserva importantes construções da civilização inca, além de sítios arqueológicos nas montanhas circundantes. É uma bela cidade, com traços marcantes da civilização inca, inclusive canalização de águas das montanhas passando pela zona urbana. Aliás, pelo que vimos em outras áreas urbanas, fica patente que a engenharia inca dominou com facilidade essa técnica, desviando rios e nascentes para as zonas urbanas e, assim, assegurando comodidade e segurança hídrica aos seus habitantes. Somando-se às pesquisas agrícolas, pode-se dizer que aquela civilização possuía alto grau de segurança alimentar, além de gozar de relativo conforto em seu dia-a-dia.

Finalizando essa parte, podemos afirmar que vale a pena conhecer Ollantaytambo, onde se encontram a cultura antiga dos incas, o traço do colonizador espanhol e a moderna hospitalidade peruana, essa última expressada na culinária e bebida servida em bares e restaurantes locais.

  1. Vistadome, o trem panorâmico dos Andes.

Na Estação de Ollantaytambo pegamos o trem para Águas Calientes, ponto de partida para quem deseja alcançar Machu Picchu, “a cidade perdida dos incas” e uma das maiores belezas arquitetônicas do planeta. O vistadome é um trem com assentos confortáveis, mesas amplas, teto e janelas panorâmicas que permitem apreciar a bela paisagem dos Andes peruanos, entre as quais: densas florestas, imponentes montanhas e as corredeiras do rio Urubamba, no Vale Sagrado dos Incas. Essa viagem dura entre duas e três horas, proporcionando agradável sensação aos passageiros, que podem apreciar um cenário cheio de belezas naturais e mais bem conhecerem a geografia peruana.

  1. Águas Calientes, a caçulinha do Urubamba.

Anoitecia quando chegamos à pitoresca cidade de Águas Calientes, à beira do rio Urubamba, ponto final da linha ferroviária que leva a Machu Picchu, que dista cerca de 10km. Localiza-se, porém, a 103km da cidade de Cusco e possui uma população de quase cinco mil habitantes. O clima é temperado úmido, variando entre 8ºC e 24ºC.

Embora a região fosse ocupada há milênios, a jovem cidade de Águas Calientes data da primeira metade do século XX, quando fora construída a referida linha ferroviária entre Cusco e aquele ponto. Fora fundada por famílias e descendentes dos operários que assentaram os primeiros trilhos para sua construção. Deve seu nome às inúmeras fontes termais que a circundam, cuja temperatura das piscinas podem variar entre 38ºC e 46ºC.

A cidade é pequena, moderna, atraente, voltada para o turismo, com bons hotéis, restaurantes e lojas, a maioria deles situados ao lado da linha ferroviária, no entorno da Plaza Manco Capac. Um ponto de atração é seu Mercado de Artesanato, que fica ao lado desta praça, ofertando uma variedade de peças, tecidos e souvenires, que são confeccionados pelos próprios moradores, preservando técnicas e tradições andinas.

 

  1. Machu Picchu, “a cidade perdida dos incas”?

Machu Picchu, “a cidade perdida dos incas”, com suas peculiares estruturas rochosas desafiando o tempo, é o the crème de la crème, o ponto alto da visita ao Peru. É, talvez, o mais importante sítio arqueológico da América do Sul. Localizada no alto dos Andes, não foi ocupada pelos espanhóis, o que ajudou a conservar sua estrutura original. Tudo que ali se encontra é obra dos incas, cuja fundação foi iniciada no século XV, no reinado do sapa ou imperador Pachacutec, que governou entre 1438 a 1471. Foi a moradia da nobreza, sacerdotes, engenheiros, médicos e outros funcionários da burocracia inca. Fica localizado a uma altitude de 2.445 metros, no Sudeste do Peru. Estima-se que sua população alcançava entre 500 a 750 habitantes, só gente da elite. Dada a altitude elevada e íngreme, é certo que o material de sua construção foi todo alcançado no próprio local, pois dificilmente chegariam às construções os imensos blocos de pedra que a sustentam. Aliás, conforme dissemos em outra parte, também em Machu Picchu a engenharia inca mostra seu desenvolvimento no corte e montagem precisa dos imensos blocos de pedra.

O sítio arqueológico é formado por cerca de 200 estruturas rochosas, entre as quais: templos, palácios, silos, terraços, trilhas e observatórios astronômicos, em cujo interior dava-se o cotidiano dos moradores.

Sabe-se que os conquistadores espanhóis não tomaram conhecimento da existência dessa cidadela inca, porque seus moradores a abandonaram para juntar-se ao imperador Manco Inca na resistência contra as tropas espanholas. Assim, os moradores de Machu Pichhu morreram em Vilcabamba, junto com seu imperador. Com eles morreu o interesse pelo lugar, fazendo com que a vegetação se reconstituísse, cobrindo as antigas construções, situadas no alto da montanha. Evidentemente, moradores nativos sempre souberam da existência daquelas ruínas, delas não se aproximando, tendo-as por sagradas. Os primevos talvez a tivessem como uma cidade fantasma, onde todos os moradores desapareceram, transmitindo suas crenças aos descendentes. As gerações seguintes não tiveram interesse em explorar as suas ruínas. O certo é que a tinham como um lugar de respeito, sagrado, do qual não se aproximavam. Também, não havia qualquer interesse econômico em suas construções, sendo mais um sítio entre centenas que existem na região.

No entanto, diz-se que em 1867, o empresário alemão Augusto Berns explorou a região, alcançando a cidadela dos incas, onde saqueou algumas peças com a permissão de autoridades peruanas. Certamente, por falta de sensibilidade ou tempo para pesquisa, não percebeu as peculiaridades daquele sítio arqueológico, que se encontrava coberto de matas. Desde então, ao contrário do que se apregoa, o nome Machu Picchu começa a aparecer em mapas geográficos.

Passados 35 anos, em 1902, um fazendeiro cusquenho por nome Agustín Lizárraga, alcançou aquele sítio, deixando uma marca nas pedras como testemunho de sua visita. Porém, não deu ao lugar a devida importância, preferindo aforar as terras adjacentes para criatório de seu rebanho. Faleceria em 1912, afogado nas águas do rio Vilcanota, sem oportunidade para contestar a alardeada descoberta de um professor norte-americano.

Foi, de fato, em 1911 que o pesquisador norte-americano Hiram Bingham, da Universidade de Yale, chegou à região para explorar o vale do rio Urubamba. Na verdade, ele procurava a legendária cidade de Vilcabamba, baluarte de resistência indígena que serviu de tumba ao imperador Manco Inca e aos seus destemidos guerreiros. Na oportunidade, ouviu do agricultor Melchor Arteaga, informações sobre abundantes ruínas no alto do cerro de Machu Picchu. Embora insistisse para conhecê-las ninguém as quis mostrar. Foi um menino, filho das duas únicas famílias que ali moravam, prepostas de Lizárraga, que lhe guiou ao sítio, coberto por matas e infestado de víboras. Em 24 de julho daquele ano ele reverberou ao mundo, alardeando a descoberta científica do lugar. No ano seguinte ele retorna ao lugar, seguindo-se-lhe outros exploradores que elaboram mapas e fazem escavações onde recolhem centenas de vasos e objetos de prata, bronze, cobre e pedra. A expedição de Bingham foi publicada em edição especial pela revista National Geographic Society, em 1913, com reportagem de 186 páginas, incluindo centenas de fotografias. Muitas peças foram levadas para estudos nos EUA, com promessa de devolução posterior, entretanto até os dias de hoje somente pequena parte foi devolvida, sob instâncias do governo peruano.

Desde então, foi recomposto o sítio arqueológico de Machu Picchu, sendo reconstruídas algumas construções em meio a um terço delas em estado original. Essas ruínas formam um dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo e foram escolhidas em votação popular como uma das sete novas maravilhas do mundo moderno. Em 1983, foi declarada Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade, pela UNESCO.

  1. Conclusão.

Com essas notas fazemos o registro de nossa visita ao Peru, especialmente à região de Cusco, antiga capital do Império Inca, no “umbigo do mundo”. Conhecer as ruínas, muitas ainda intactas, dessa avançada civilização andina é fazer profundo mergulho nas raízes da Humanidade e, sobretudo, espancar aquela ideia que, às vezes, ronda nosso saber, de que tudo começou na América com a chegada dos europeus. Estão aí as monumentais construções da cidade de Cusco e de seus arredores, inclusive a bela e pitoresca Machu Picchu, para dizer aos eurocêntricos que a excelência do conhecimento fincou raízes em nosso continente muito antes de ser saqueado pelos europeus.

 


[1] Advogado e escritor. Membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]