Crônica dos lugares universais: "Tenta-ganha!"

Dílson Lages Monteiro

 

— E ladrão lá tem cara!

Ainda sentado na barraca, o homem de meia-idade, tentando conter a revolta de se ter deixado enganar pelas aparências, protestava contra si mesmo. Se tivesse observado que, por trás dos músculos e da blusa de marca colada ao corpo definido, estava um bandido segurando uma arma oculta em um capacete, não teria dado os dez passos entre o meio-fio de uma rua à outra. Quem mesmo duvidaria que o casalzinho, ele parecendo segurança de porta de festa, ela carregando uma barriga de cinco meses, fosse ladrões?

— E ladrão lá tem cara! — tornava a repetir o homem de meia-idade,

Tudo se deu quando olhou para a barraca de cartazes brilhosos. O prêmio da semana, três carros e uma bolada de deixar orelha em pé.... Para ele, até que era pouco. Mas dinheiro é sonho... Nem que o nome saísse nos jornais ao lado de gente necessitada de grana. Sorteio é sorteio e não escolhe classe social. Que mania tola de exclusão! Ora, essa! Se não quisesse a bufunfa sorrindo para comprar o que desejasse ou o veículo para transformar em real, que fosse jogar na loteria federal! Lá ninguém enxerga cara de ganhador!

Antes de entrar na barraca, estrategicamente esparramada na quina de um parque de caminhadas, ao lado de um semáforo, viu a velha moto. Ligadinha! É cada louco no mundo. Quem diabos deixou essa moto ligada com chave no contato e tudo? Louco!

De longe, viu o barrigão da mulher. Jovem de cabelos encaracolados de prender os olhos. A proximidade trouxe o cheiro da extravagância. Cheiro de shampoo de motel. Uns 20 anos. O marombeiro, com jeito de quem vive exibindo músculos em frente a espelho, inchava-se de vaidade. Até parecia segurança da barraca. De pé, ele e a jovem bela, cujo braço se prendia ao do rapaz.

A cena fixava-se bem no fundo do olho. Ele, de pé, capacete no braço, uma das mãos no interior do objeto. Ela, uma mão levemente repousando no ombro do companheiro, a outra lhe acariciando o dorso. Quem desconfiaria?

O ambicioso homem de meia-idade cruzou a barraca. No interior, um silêncio de casa velha desabitada. Três pessoas sentadas nas cadeiras à direita. A mulher do canto, de olhos esbugalhados, foi logo alertando:

— Tem cartela, não! Não! Não!

O homem viu a mesa cheia delas, prontinhas a se preencher e perguntou:

— E essas daqui? Me empreste a caneta aí!

A vendedora, de olhos crescidos na testa, os quais não paravam de rodar na caixa ocular, mãos trêmulas, pescoço virando de um lado a outro, repetiu com rispidez:

— Tem caneta, não! Não! Não!

O homem viu-se contando a grana. A viagem que faria com o montante. A poupança recebendo dinheiro inesperado. Ia tirar uma parte para fazer um pequeno reparo em casa. O resto, todinho no banco. Já tinha decidido, quando voltou a falar para a vendedora:

— A senhora tem troco para 50 reais? Dá pra tirar os 5 reais de 50?

— Não,  aqui não tem nada! Tenho não! Troco não, não, não! — a mulher respondeu. Naquele instante, a voz trêmula, as mãos inquietas, o pescoço girando denunciavam alguma anormalidade. Virou-se de lado e um rapaz  sentado acenou negativamente como se quisesse avisar de algo que não conseguiu interpretar. Nem tempo mais para pensar teve. O marombeiro, disfarçando a inquietação, tratou de avisar:

— Põe a grana na pasta das cartelas! Isso aqui é um assalto e vai sentando aí no banco, vagabundo! Baixa a cabeça e deixa de me encarar se não quiser torar chumbo nos peitos.

Calmo estava o homem. Calmo permaneceu. A calma era tanta que não enxergou a razão de a moto funcionando sozinha. Tanta tranquilidade que nenhum sinal dos companheiros de espaço despertou nele desconfiança. Nem o nervosismo da vendedora. Nem os vários sinais para que se afastasse da barraca. Nenhuma anormalidade era maior do que o desejo de grana extra. “Tenta-ganha!”, “Tenta-ganha!”. O comercialzinho rodando o pensamento, com a música chiclete pregada na testa, na pasta da vendedora, nas cartelas, na beleza dos cabelos cacheados da ladra, na blusa de marca do larápio... Grana extra! Grana!

— Ninguém se levanta, que é chumbo nos peitos  —  disse o marombeiro já sentado na moto, que percorreu ainda o entorno da barraca em círculos. Para afugentar qualquer tentativa de reação. Rumou para destino ignorado. Um dia cairão nas garras da justiça...

Poucas semanas depois, um marombeiro e uma bela jovem prenhe foram presos em bairro vizinho. Depois de perseguição de populares.

O homem de meia-idade esqueceu o prêmio do bilhete. Soube pela tevê. O desejo agora era ver a foto dos dois na web. Colheu a metade da noite, depois da lida diária, fuçando portais de notícias e já ia cair na cama. Preparava-se para desligar o computador, fechava janelas. Os olhos pararam na notícia. Reconheceu neles o comercial do bilhete de prêmios e os próprios prêmios. Viu ali a cédula de 50 reais. E ainda ficou com pena!