Crônica, a forma literária do tempo presente
Em: 12/02/2019, às 10H50
Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras
A pressa do dia a dia e a automação do cotidiano, intermediadas pela intensa presença de tecnologias, criaram um vácuo para novas necessidades. Uma delas, para surpresa de muitos, é a de comunicar-se de verdade; de encontrar uma voz que se ligue à sua, para suprimir a impressão de que, na multidão do anonimato, não se é um número ou não se está sozinho. O desejo de pertencer a uma comunidade, de ter uma identidade ou de aperfeiçoá-la, faz com que a crônica encontre um espaço natural em meio ao burburinho de imagens ofuscantes e do imediatismo de um mundo de “clicks”, feito para durar o instante de sua materialidade. A crônica impõe-se como resistência e caminho de iniciação à descoberta da literatura.
Joaquim Ferreira dos Santos, na antologia “As cem melhores crônicas brasileiras”, lembra que a crônica, com o propósito concedido a ela hoje, começou, guardadas as especificidades do tempo, da relação com a imprensa, com o fito de registrar relatos da semana e, na virada do século XX, ganhou fisionomia própria com Machado de Assis: “Passou a refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso, o que ia nos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o crescimento das cidades, o duelo dos amantes e tudo mais que quer mexesse no caminhar da espécie.”Acrescenta ele que, em Machado, “a crônica está no detalhe, no mínimo, no escondido, naquilo que aos olhos comuns pode não significar nada, mas, puxa uma palavra daqui, ‘uma reminiscência dali’, e coloca-se de pé uma obra delicada de observação absolutamente pessoal”.
Hoje, o contato diário do brasileiro com os maiores nomes da literatura ocorre, principalmente, por esse gênero. A crônica se ressignificou, sem abandonar a função mais básica: forma de interação, entretenimento e participação social, capaz de inserir o leitor no espaço concreto dos grandes acontecimentos e, ao mesmo tempo, recuperar os aspectos mais banais da vida, aparentemente sem grande relevância. Independente de como se configure (seja pela sua dimensão lírica, seja pela humorística, seja pela política), no fundo, essa manifestação tornou-se hoje – mais do que em qualquer tempo –- um significativo meio de desenvolver a noção de pertencimento a uma comunidade, o que reforça a evidência de que “a crônica brasileira tem uma cara própria, leve, bem-humorada, com o pé na rua”, como bem disse Antônio Cândido.
Conforme ainda Joaquim Ferreira dos Santos, as crônicas hoje se apresentam com “o abuso da primeira pessoa, do comentário e da liberdade de adotarem um idioma ora poético, ora jornalístico, ora irônico, ora perplexo”, quase sempre bem-humorado. Parecem textos ligeiros, simples e superficiais, tamanha a facilidade de leitura. São pequenas obras-primas de emoção, baseadas nos espantos e alegrias, decepções e surpresas do cotidiano”. Por isso, marcam-se pela amenidade, como diria Leandro Konder, ao escrever “Artes da palavra – elementos para uma poética Marxista”: “Ao contrário da reportagem, a crônica não tem maiores compromissos com a objetividade. Sua força não está na informação, mas na capacidade de interessar os leitores, em geral. Sua força não está na profundidade do pensamento, mas na amenidade com que o expõe”.
A natureza amena da crônica leva Leandro Konder a afirmar que tal forma literária “abre espaço para o comentário pessoal, o olhar subjetivo, a busca de singularidade do efêmero e do fragmentário. Embora não ignore os problemas da esfera pública, a crônica parece preferir lidar com vicissitudes mais pessoais, com sentimentos que se formam na vida privada, ou se voltam para ela”. Esses traços reafirmam uma de suas principais funções: “ A crônica faz apreciação pessoal dos fatos do cotidiano”.
Essa apreciação do dia a dia tanto comporta a revisão da história, não raro, quanto abre espaço para a liberdade própria do gênero “em que tudo é possível”, inclusive o intercruzamento de gêneros textuais. A esse respeito, José Castello, citando os relatos de oficinas de escrita criativa de Walter Galvani, publicados em “Crônica: o voo da palavra”, registra:
“Entre nós, hoje, o fracasso dos gêneros se expressa, de maneira muito particular na proliferação da crônica – o lugar, por excelência, da ausência de gênero. Na crônica, tudo é possível, da ficção clássica à moda de Clarice Lispector às interrogações existenciais de um Carlinhos de Oliveira, do lirismo despudorado de Rubem Braga à filosofia disfarçada em desafogo de Paulo Mendes Campos. Depois deles, a crônica brasileira tornou-se o lugar da experimentação (...). Às vezes, abriga apenas o texto jornalístico; outras vezes, a confissão mais sincera, ou a simples memória que, na verdade, não é tão simples assim. (...) A crônica se tornou o lugar da experiência, um laboratório; o espaço sem forma, para o qual os velhos gêneros confluem, já sôfregos, já deformados por um século inteiro de agonia e suspeitas. (...)”.
A atualidade permanente da crônica hoje também se configura em duas de suas características: a leveza e o descompromisso. Esses elementos a aproximam da oralidade, fazendo com que seja gênero facilmente praticável e de rápido encantamento, principalmente em tempos de pressa e imediatismo. Como ensinou Antônio Cândido em seu clássico ensaio "A vida ao rés-do-chão", sempre atual, “na linguagem, a crônica é descompromissada, leve, longe da lógica argumentativa ou da crítica política e se deixa penetrar pela poesia. No seu desenvolvimento, a crônica foi largando a intenção de informar e comentar e passou a ficar com a função de divertir, todavia, divertindo, ela também faz refletir. O grande prestígio da crônica hoje seria um sintoma do processo de busca da oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo”.
Todas essas razões se mostram suficientes para se afirmar categoricamente: “A crônica é, por excelência, a forma literária de primazia na atualidade”. A porta aberta para as descobertas que somente a literatura consegue gerar em suas travessias de sonhos, asas, perguntas e inquietações.