Crime no banheiro
Por Chagas Botelho Em: 26/03/2023, às 06H35
[Chagas Botelho]
Usei o banheiro do consultório para fazer o número um. Talvez sofra de incontinência urinária, talvez. Dá sempre vontade de esguichar um xixizinho, esteja onde estiver. Levantei a tampa do vaso e deixei a cachoeira fluir de olhos fechados. A torrente expelindo era tão prazerosa quanto a um orgasmo. Creio que cheguei até a cantarolar uma canção antiga enquanto o fluxo desembocava. Que sensação maravilhosa foi sentir o líquido escorrer, torrencialmente. Nossa, que alívio! Tivesse demorado um pouquinho mais faria nas calças.
Depois que o jato fluiu pujante, respirei desafogado. Agora, sim, com o reservatório esvaziado, voltei a sorrir. O semblante, tranquilizador. Remido do aperto, recolhi o passarinho. Subi a cueca. Fechei o zíper. Sequência de um pós-xixi realizado com sucesso. Porém, antes de apertar a descarga, vi a merda. A grande merda que acabara de fazer. De olhos fechados, displicente, sentindo apenas o prazer de me aliviar, não percebi que respingava nas bordas do trono. Respigar é eufemismo. Inundou legal.
Uma falta de educação tremenda. Enxugaria o quanto antes aquele incontido ensopado. Caso contrário, o próximo mijão ou uma senhora que fosse urinar, já que o banheiro era unissex, me chamariam de pinto rasgado. Olha que coisa, mirei certo metade do xixi, a outra metade errei o alvo.
Procurei papel higiênico, no exíguo espaço. Pasme, o porta-papel estava vazio. No armário debaixo da pia, apenas um desinfetante. Nada de rolos higiênicos. Enquanto isso, a ocorrência aquosa e meio amarelada permanecia perene nas bordas da privada. Quanta sujeira! Agora me expliquem, como não ter papel higiênico, papel toalha ou uma toalhinha no banheiro de um consultório tão afamado? Sequer uma tirinha de qualquer ítem. Sei que quem poupa tem, mas nenhum limpador, secador, aí já é demais. Quando avistei o cartaz de advertência, enlouqueci: “use o banheiro como se estivesse cometido um crime, não deixe vestígio”.
Pronto. Estava condenado ao corredor da morte. Meu crime não foi perfeito. Zero de perfeição. As marcas escancaradas estavam nas bordas da louça branca para provarem a sentença. Sim, minhas impressões urinárias estavam ali impregnadas, completamente à mostra. Por pouco não transbordaram pelo chão.
Na mochila, carrego uma camiseta reserva. É transportada para casos de emergência. Aqueles respingos criminosos eram uma emergência. A camiseta trazia a estampa dos Beatles. Não hesitei. Esfreguei as caras do Paul, John, George e Ringo sobre o encharcado. Tudo ficou limpo e seco. O delito havia sumido. E o vaso sanitário, imaculado. Se fosse periciado, nada de anormal seria notado. Saí, então, com o aspecto de homem mais inocente do mundo.
Na sala de espera, aguardando a minha vez, refleti. Na verdade, comecei a me perguntar: "e se na falta do bendito papel higiênico, ao invés de xixi fosse o número dois? Quisesse derrubar a massa? Bem, daria descarga e o fedor nauseabundo desceria. Tudo resolvido". No entanto, outros questionamentos me vieram à mente: "mas, como iria me safar da lambança no reto? Pediria socorro à atendente? Usaria a camiseta dos rapazes de Liverpool, por sinal, de milhões, para me assear?". Quer saber, melhor mesmo é nem cogitar essa possibilidade sólida. Vai que de repente se concretiza.