Crianças negras

[Cruz e Sousa]

Em cada verso um coração pulsando,
sóis flamejando em cada verso, e a rima
cheia de pássaros azuis cantando,
desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
das ondas glaucas na amplidão sopradas
e a rumorosa música dos ninhos
nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
galgando da era a soberana rocha,
no espaço o outro leão do sol sangrento
que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
sonorizando os florestais profundos,
a terra com seus cânticos sombrios,
o firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
das espadas dos aços rutilantes,
eu quisera trazer preso à cadeia
de serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
que choram lágrimas de amor por tudo,
que, como estrelas, vagas se derramam
num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes quentes
como uma forja em labareda acesa,
para cantar as épicas, frementes
tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
não das crianças de cor de oiro e rosa,
mas dessas que o vergel das esperanças
viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
dum leite de venenos e de treva,
dentre os dantescos círculos do açoite,
filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela.
a ironia das aves rindo a aurora
e a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
desamparadas, sobre o caos, à toa
e a cujo pranto, de mil peitos bravos,
a harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
do peito, como em jaulas soberanas,
ó coração! és o supremo centro
das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
vibras também eternamente o pranto
e dentre o riso e o pranto te equilibras
de forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
e a púrpura do amor vais estendendo
sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
até encher a curva dos espaços
e que lá, coração, lá resplandeces
e todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
em braços de carinho que as amparam,
a elas, crianças, tenebrosas flores,
tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
ei-las, caminham por desertos vagos,
sob o aguilhão de todas as torturas,
na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
da Dor, florindo como um loiro fruto
partindo toda a horrível gargalheira
da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,
colhidas do suplício a estranha rede,
arranca-as do presídio da miséria
e com teu sangue mata-lhes a sede!