[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Cota étnica é uma coisa, cota social é outra coisa. Há quem acredite que dá tudo no mesmo, mas quem pensa assim ou não entendeu o assunto ou realmente é racista – aberta ou disfarçadamente. Infelizmente, essas pessoas continuam a nadar em águas turvas, lutando contra a cota étnica como se ela fosse parte de uma “política educacional compensatória”. Às vezes o mais tolos na esquerda até ajudam a direita, endossando uma visão falsa quanto à natureza e o objetivo da cota étnica.

Explico mais uma vez aqui a cota étnica, para o cansaço do leitor inteligente. Tenho de assim fazer para que o assunto dessa cota não atropele o assunto da cota social, também objeto deste texto. Peço paciência aos que já entenderam a diferença.

A cota étnica serve à integração e não é afeita a qualquer “reparação histórica”. Aliás, se assim fosse, seria uma “reparação” cínica! Também não visa elevar o padrão econômico de famílias negras. Caso fosse esse o objetivo, já nasceria sem função, pois o negro não é minoria em termos de quantidade, mas minoria sociológica. Cotas não resolveriam  nada quanto a melhorar a vida econômica do negro brasileiro. Nada disso. Cota étnica é uma maneira de colocar negros e índios em lugares, no sentido espacial do termo, em que eles não estão e, assim, criar para  todos os jovens brasileiros a possibilidade de, pelo convívio, adquirir um sentimento de não estranhamento para com qualquer brasileiro. O objetivo da cota étnica é o de não alimentar o preconceito étnico. Só o convívio quebra o preconceito. O convívio escolar é o mais eficaz. Não é política educacional, é política étnica. Seu resultado é conhecido em outros países – e é positivo. Quem insiste em dizer que cota étnica visa algum resultado no âmbito da política educacional, em um sentido estrito do termo, não sabe o que está falando, seja de direita ou de esquerda, negro ou branco ou índio.

A cota étnica pode até ser tomada como educacional, mas em um sentido amplo, ou seja, a de que educa todos para o convívio sem preconceitos. Mas, em termos estritos do termo “política educacional”, ela não cabe. Ninguém a pensou assim em sua origem, certamente americana. No Brasil, os que a justificaram como algo no âmbito da política educacional, erraram feio. E os que a atacaram tentando destruir esses argumentos erraram mais ainda.

Agora, a cota na universidade pública para aluno da escola pública básica, aí sim, é uma medida de política educacional. Não visa nenhum resultado étnico ou coisa parecida. Seu objetivo pode até ser propalado como social, mas é antes de tudo algo no âmbito da política educacional, tomada de modo estrito. Com essa medida os cotistas já não serão minoria em termos de número, e passarão a pesar na universidade em todos os sentidos, inclusive os de mentalidade em relação ao que é e o que não é o ensino superior.

O que pode ocorrer com essa medida?

Tudo dependeria da interpretação e da opção das classes médias com bom poder aquisitivo. Elas poderiam pensar em deixar a universidade pública, indo para a particular, mas poderiam, também, voltar à escola básica pública, abandonando o ensino básico particular. É isso que estaria em jogo e é isso que determinaria o fracasso ou o êxito dessa política que uns podem chamar de corajosa, outros de ousada e outros, ainda, de maluca e até mesmo de sacana. Por que digo isso? Explico.

Caso os mais ricos nas classes médias optassem por voltar para a escola pública básica, de modo a aproveitar as cotas para ampliar as suas chances de entrada na universidade pública, então aos poucos a escola básica melhoraria. Pois, para onde os ricos da classe média vão, vão os partidos, a imprensa, o Congresso, os governos e o dinheiro. Caso os mais ricos nas classes médias avaliassem que com a entrada dos mais pobres na universidade pública, esta já não mais teria o seu encanto, e então se deslocassem para o ensino universitário particular, a universidade pública chegaria ao fim. Ocorreria com a universidade o que ocorreu de fato com o ensino médio. Isso por que a universidade pública, uma vez sem os mais ricos dentro dela, seria esquecida pelos partidos, pela imprensa, pelo Congresso, pelos governos (à direita ou à esquerda) e, é claro, pelo dinheiro.

Um país sob o regime democrático liberal, com as disparidades do Brasil e, enfim, sem o cultivo de uma tradição pelos estudos, necessita ter suas instituições educacionais públicas valorizadas e ao mesmo tempo democratizadas segundo uma ação bem planejada e harmoniosa. Para tal, no caso brasileiro, há de se costurar com boa mão um tecido de dois fios. Os pobres devem estar nas instituições e, no entanto, elas não podem ser abandonadas pelos ricos. Eles, os ricos da classe média, não podem se sentir prejudicados, pois, caso isso ocorra, eles abandam o barco e, então, rapidamente o barco afunda. As instituições públicas funcionam exatamente como funciona a migração classista nas cidades, quanto à habitação. É bobagem acreditar que os ricos podem sair de um lugar e este lugar, então, ficando só com os pobres, irá ser cuidado pelo poder público.

O poder público brasileiro não funciona no sentido de dar ao pobre o que o rico consegue por si mesmo. O poder público no Brasil funciona no sentido de dar ao pobre o que o pobre pode conseguir na convivência com o rico que também é ajudado por esse poder. Ao contrário do que a direita fala, no seu grito histérico contra as “bolsas” e outros direitos trabalhistas, no Brasil o pobre não é ajudado pelo poder público enquanto que o rico vive sob a livre concorrência. No Brasil o pobre é ajudado pelo poder público a continuar vivendo como pobre e o rico também é ajudado pelo poder público a continuar vivendo como rico. O ganho da nossa democracia não é, ainda, o de criar compensações efetivas, mesmo que em termos de legislação tenhamos um tipo de Estado de Bem Estar Social. Nossa democracia não tem conseguido sair da situação dita básica. O que temos conseguido é criar uma condição para que o pobre não morra muito antes do tempo natural.

Em um país como o nosso, os ricos não devem ocupar todas as vagas nas instituições públicas de ensino, mas eles não podem ser incentivados a abandoná-las, pois quando batem em retirada levam embora toda a atenção da sociedade junto com eles. Os mais ricos nas classes médias são formadores de opinião. Aliás, eles, em termos de mentalidade, controlam completamente todos os meios de comunicação.  Não estou falando aqui dos milionários. Estes tem poder, mas não contam muito em termos de decidir sobre instituições de educação. Eles são em número pequeno e seu estilo de vida não dá nenhum padrão. O que conta são as classes médias com mais filhos e que realmente ocupam o padrão que entendemos, ao menos simbolicamente, como “de classe média”. São estes que pesam na balança, inclusive e talvez principalmente porque nadam a favor da “ideia de classe média” que o mundo ocidental adquiriu, formada pelo American Way of Life dos anos cinquenta.

Assim, em tese, a direção tomada pelas classes médias, em especial os mais ricos nessas classes médias, é que iria dar o resultado para a política de cota social gerada pelo governo. As coisas correriam dessa forma, na incerteza, se a cota fosse destinada para qualquer aluno da escola pública, sem restrições. Teríamos de esperar para ver o que os mais ricos das classes médias fariam, para então avaliar o resultado da medida. No entanto, tudo isso valeria se a legislação que cria a cota social, não tivesse criado mais um detalhe:  o estudante da escola pública para o qual a cota é destinada não deverá pertencer a uma família com renda maior que três salários mínimos. Dessa forma, já de antemão fica castrada a alternativa que poderia ser boa, a de vermos a classe média mais rica ter interesse em voltar para a escola pública básica. (1)

Resta então somente uma alternativa a ser analisada. Trata-se de ver se a da universidade pública, mesmo tendo um número grande de cotistas, poderá ser capaz de manter sua qualidade, não deixando os mais ricos fugirem dela.

Bem, posto dessa forma tudo se complica. A universidade pública em geral, principalmente as universidades federais, passam por um momento delicado. Há terrível arrocho salarial e há falta completa de condições de trabalho em termos de aparato físico e correlatos. Desse modo, elas já estão sendo forçadas, antes mesmo da institucionalização da cota social, de diminuir seu potencial criador. Com a cota social, que não está sendo seguida de medidas que visam melhorar o ensino médio público, a tendência é se ter em sala de aula alunos despreparados, e isso em uma quantidade já não mais controlável. Esses alunos, na melhor das hipóteses, pedirão (alguns exigirão!) aos professores que reponham o conteúdo do ensino médio, sem avançar para o ensino superior. Na pior poderão simplesmente começar a exigir uma “facilitação” para a aprovação – e estando em grande quantidade não será difícil para eles impor sua vontade. Tudo indica que isso irá solapar de vez a qualidade do ensino universitário público. Os mais ricos tenderão a reagir a isso. A tendência será a de migração dos mais ricos para o ensino particular que, por sua vez, já está sendo ajudado pelo governo pelo mecanismo do PROUNI. Sem os mais ricos das classes médias em seu interior, a universidade pública se tornará por excelência o lugar dos pobres e, dessa maneira, perderá completamente a atenção dos partidos, da imprensa, do Congresso, dos governos (tanto da direita quanto da esquerda) e do dinheiro. Ficará como está hoje o ensino médio público, o lixo do lixo.

Sendo assim, o futuro não é bom para a universidade pública. O Brasil perderá o que demorou décadas para construir. A opção tomada pela Era Dilma marcará o Brasil de uma maneira que os historiadores, no futuro, terão de comentar assim: “naquela época o Brasil conseguiu de certa formar administrar a política econômica construída pela Era FHC-Lula, mas o país destruiu suas chances de se equiparar aos outros de mais ou menos o mesmo potencial no cenário internacional”. Os historiadores da educação comentarão assim: “A Era Dilma feriu a autonomia universitária e, em uma articulação entre direita e esquerda, implantou um regime de cotas que em poucos anos minou a qualidade da universidade pública brasileira”. Duvidam? Vocês gerão!

Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

(1)               Esse detalhe me foi lembrado pelo meu amigo Marcos Nicolini, a quem agradeço.