Monumento aos bandeirantes
Monumento aos bandeirantes

                                                 Reginaldo Miranda*

A presença dos bandeirantes paulistas no desbravamento e colonização do território piauiense tem suscitado acaloradas discussões e acirrado debate, mormente a presença e pioneirismo de Domingos Jorge Velho. De nossa parte não temos dúvida de que ele foi o pioneiro desbravador da bacia do Poti, outrora rio Itaim-açu, aonde se estabeleceu com sua gente. No entanto, o que resta pacificada é a presença de seu sucessor, o capitão-mor Francisco Dias de Siqueira, comandante do Arraial de Paulistas desde antes da primeira desobriga do padre Miguel de Carvalho, em 1693. Quanto a isto nem os mais renhidos contestadores se opõem, porque esta presença está calcada em farta documentação. Porém, independentemente de estéreis discussões o que resta é admitir, à unanimidade, que foram os paulistas os primeiros desbravadores da bacia do rio Poti, onde fixaram seu arraial, tendo este dado origem à futura cidade de Valença do Piauí. De fato, naquele indicado ano era comandante do referido arraial o capitão-mor Francisco Dias de Siqueira, por alcunha “O Apuçá”.

Pois bem, entre os demais bandeirantes paulistas que palmilharam a bacia do rio Poti e adjacências, pode-se citar o coronel de um terço de paulistas, João Raposo Bocarro, o moço. Este ali chegou em 1691, assim reforçando a tropa do aludido arraial, que diminuíra sensivelmente desde a partida três anos antes, de Domingos Jorge Velho para os Palmares, nas Alagoas, levando grande contingente de paulistas e indígenas das nações aroases e cupinharões. Bocarro atuou por pouco tempo, ao lado do tio no centro-norte e norte do Piauí, assim como em Ibiapaba e no Maranhão, onde entravam os paulistas.

Como prova da presença do coronel João Raposo Bocarro na bacia do Poti, encontramos em uma relação de todos os possuidores de terras no Piauí, elaborada no ano de 1765, pelo conselheiro ultramarino Francisco Marcelino de Gouveia, o seguinte registro:

Aniceto Barbosa, e seu cunhado João Pereira possuem uma fazenda chamada Cabeça do Tapuio, com duas léguas de comprimento e uma de largura, a qual lhe vendeu seu pai e sogro, Antônio Pereira do Amaral, a quem havia pertencido por falecimento de seu pai Gaspar dos Reis Bittencourt, que a tinha povoado e comprado ao descobridor João Raposo Bocarro”.

Portanto, damos publicidade a esse registro inédito da presença desse bandeirante paulista nas cabeceiras do rio Poti, sendo mais um nome a reforçar a presença dos paulistas na colonização do Piauí. É importante ressaltar que esta fazenda situava-se no território da futura freguesia de Nossa Senhora do Desterro do Rancho do Prato da vila de Marvão, provavelmente sendo hoje a cidade de São Miguel do Tapuio.

Também, na mesma bacia do rio Poti, em território que mais tarde com a criação das primeiras freguesias, ficou para a de Santo Antônio do Surubim da vila de Campo Maior, consta na mesma relação o seguinte registro:

“Antônio Ribeiro de Macedo Brito, e seu irmão Agostinho Ribeiro Nunes de Brito, possuem a fazenda chamada a Barra, com três léguas de comprido, e duas de largura, que lhes pertenceu por falecimento de seu pai, Manoel Ribeiro Nunes, e tinha antes sido de Antônio Raposo Bocarro, por morte do qual, se arrematou no Juízo dos Órfãos desta cidade”.

Neste caso, não encontramos na literatura histórica nem nos mais antigos registros de genealogia paulista, alusão ao nome de Antônio Raposo Bocarro. Nenhum tio ou irmão tem aquele bandeirante com este nome, pelo que se nos afigurou duas hipóteses: a primeira é que pode ser o mesmo João Raposo Bocarro, aparecendo o nome Antônio por fruto de equívoco do informante ou do redator; a segunda é que se trate de um seu sobrinho por nome Antônio Raposo da Silveira[1].

Nasceu João Raposo Bocarro, o moço, por volta de 1640, na vila de São Paulo, sendo filho de outro de igual nome, também coronel João Raposo Bocarro, o velho, nascido na vila de São Paulo, cerca de 1597, este filho de Antônio Raposo, natural da cidade de Beja, em Portugal e de Isabel de Góes, natural da vila de São Paulo. Também o genitor foi importante bandeirante, tendo participado da bandeira de seu parente Antônio Raposo Tavares, ao Guairá, em 1628; em 1637, participou da expedição de Francisco Bueno, ao Rio Grande do Sul; em face desses relevantes serviços prestados, em 1638, requereu e obteve do capitão Antônio de Aguiar Barriga, a concessão de uma data de sesmaria no sertão de Guarulhos, para si e seus filhos João Raposo, o moço, Ana de Góes, Maria Raposo, Mécia de Góes e Isabel de Góes, alegando que sempre ajudara nas ocasiões que se lhe ofereceram para o aumento e engrandecimento da nação, sendo desde nove anos capitão de uma companhia de ordenanças e que a sustentava à sua custa; esse pioneiro genitor faleceu antes do ano de 1684. Portanto, foi iniciante dessa geração o lusitano Antônio Raposo[2], natural da cidade de Beja, no Alentejo, de onde passou em 1582 à histórica vila de São Vicente, na armada de Dom Diego Flórez Baldez[3], onde foi armado cavaleiro pelo governador geral do Brasil, D. Francisco de Souza[4], em atenção a decreto de el-rei D. Filipe II[5], de 1601, como prêmio pelos relevantes serviços prestados à coroa; faleceu com testamento, no ano de 1633. Conforme foi anotado, chegando a São Vicente, esse genearca uniu-se aos primitivos fundadores do lugar, matrimoniando-se[6] com a paulista Isabel de Góes[7], a moça.

História semelhante possui a família materna de nosso biografado. Foi sua genitora d. Ana Maria de Siqueira, irmã do capitão-mor Francisco Dias de Siqueira[8], ambos filhos de Francisco de Siqueira, o velho, natural da vila de Caminha, no reino e de sua mulher Ana Pires de Medeiros, natural da vila de São Paulo. Esta avó materna faleceu na vila de São Paulo, com testamento, em 4 de maio de 1668, sendo filha do casal paulista Custódia Gonçalves e Francisco Dias, este filho de Pedro Dias, que foi jesuíta leigo, e de sua segunda esposa Ana Gomes da Silva, natural da cidade de Braga, também no reino[9].

Diante dessas informações genealógicas percebe-se que o bandeirante João Raposo Bocarro, o moço, possuía origens na mais legítima e pioneira plêiade de fundadores das primeiras vilas e capitania de São Paulo. Também, entre os pioneiros desbravadores do Brasil.

Com essa genética de conquistadores no sangue, não demorou ele a também prestar relevantes serviços à coroa. No ano de 1663, integrou a expedição de seu primo Mathias de Mendonça, em busca de esmeraldas no sertão de Sabarabaçu[10].

Depois de muitas entradas e conquistas em que provara seu valor, foi agraciado com diversas patentes militares de menor graduação, até ser promovido à de coronel de um terço de ordenanças da capitania de São Paulo, em que exercitava no ano de 1680. Dada a experiência que adquirira nas mais diversas diligências que lhes foram confiadas, no ano de 1685, o governador-geral D. Antônio Luís de Souza Teles de Meneses, o encarregou dirimir e apaziguar a questão da aldeia indígena do real padroado de Barueri[11].

No entanto, em 1689, ruma para o norte integrando a expedição paulista de socorro enviada para “combater o gentio bravo” que infestava a Bahia. Contudo, embora sendo vagas essas informações, não é induvidoso que essa missão tenha a ver com o combate aos negros rebelados no quilombo de Palmares, nas Alagoas, que ainda não existia como capitania. Provavelmente, integrou aquele contingente que veio em socorro do bandeirante Domingos Jorge Velho, sendo mais um sinal de que este bandeirante estava em sintonia com o capitão-mor Francisco Dias de Siqueira, que ficara na bacia do Poti, para onde depois veio Bocarro, seu sobrinho.

Depois de prestar serviços na bacia do rio São Francisco, provavelmente em Palmares, foi encarregado em julho de 1691, do “descobrimento das minas de ouro, prata, pedraria e pérolas que há nas serras e lagoas do Rio Grande do Norte, Ceará e confins do Maranhão”. Foi quando palmilhou esse vasto território, encontrando-se com o tio Francisco Dias de Siqueira, no Arraial de Paulistas, na bacia do Poti. Este o auxiliou como adjunto. Nesse tempo ainda não existia a capitania do Piauí, ficando nosso território englobado nessa expressão genérica de “confins do Maranhão”. No entanto, foi tão efetiva a ação desse bandeirante e de sua tropa que no ano seguinte, 1692, o governador do Maranhão, Antônio de Albuquerque, queixou-se ao rei dos avanços paulistas comandados por João Raposo Bocarro. Evidentemente, esse avanço era na bacia do rio Parnaíba, de que o Poti é afluente, exatamente a área entre o Ceará e o Maranhão. Foi nesse período que desbravou terras e situou fazendas nas cabeceiras do Poti, mais para o lado cearense, de que nos informa aquela relação de possuidores de terras.

É certo que o coronel João Raposo Bocarro permaneceu entre o Poti e Ibiapaba até o ano de 1693, mas não se demorou por muito tempo. Em 1697, não se faz presente na fundação da primeira freguesia do Piauí, certamente, porque já se encontrava em outras missões.

Sempre incansável em seu trabalho, do Piauí passou para o distrito das minas do Rio das Velhas, em Minas Gerais, onde fundou e povoou um sítio a que denominou Iguapaúma, ao menos desde o ano de 1707, quando o requereu em sesmaria que lhe fora concedida em 1711. Em seu requerimento alegou ter “bastantes escravos para lavrar e beneficiar com roças o dito sítio, redundando em aumento da fazenda real pelos dízimos e cultivação dele, e outrossim tinha o suplicante gasto grande parte de sua vida no serviço de Sua Majestade em várias conquistas”.

E nessa faina permaneceu pelo restante de sua vida, em diligências militares, no cultivo da terra e no pastoreio do rebanho.

O coronel João Raposo Bocarro, o moço, foi casado com d. Mariana Vaz Ferreira, filha do lusitano Estácio Ferreira e da paulista Violante Jorge. Desse consórcio deixou ao menos um filho, o capitão-mor Estêvão Raposo Bocarro, sertanista com atuação no sertão que divisa entre Minas Gerais e Bahia, onde descobriu e povoou quatro sítios e recebeu de sesmaria dezesseis léguas de terras, entre as cabeceiras do riacho chamado Palmeirinha e as caatingas do Rio Verde. Faleceu em data que não sabemos precisar, no entorno do ano de 1720, com cerca de oitenta anos de idade. Foi um bravo militar e bandeirante com larga folha de serviço prestado à nação, tendo deixado seu nome ligado ao Piauí, onde descobriu e povoou fazendas, embora sem a obtenção de sesmarias, como era a prática dos paulistas de antanho. Por essa razão, merece figurar nessa galeria de notáveis.

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*REGINALDO MIRANDA, advogado, escrito, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. E-mail: [email protected]

 

 

 


[1] Existiu também um tio por nome Antônio Raposo Pegas, mas é improvável que tenha vindo ao Piauí.

[2] Filho de Álvaro Aires Ferrão e sua mulher Susana Nunes Raposo, naturais e moradores em Portugal.

[3] Militar e almirante espanhol com larga folha de serviço prestado (Las Mosteras, Somiedo, Astúrias c. 1530 – 1595).

[4] Senhor de Beringel (vila portuguesa do concelho de Beja) e sétimo governador geral do Brasil. Nasceu c. 1540 e faleceu em 1611.

[5] Rei da Espanha (Filipe III) e de Portugal (Filipe II).

[6] Esta é a segunda esposa, pois segundo o genealogista Pedro Taques, em sua Nobiliarquia Paulistana, primeiramente foi casado com Antolina Requeixo de Peralta, natural de Castela, com quem veio da Península Ibérica. Foi filha deste primeiro matrimônio, d. Antônia Requeixo de Peralta, esposa de Gaspar Fernandes Palha, natural da cidade de Funchal e homem da governança da vila de Santos

[7] Falecida em 1629. Filha de Domingos Gonçalves da Maia e sua mulher Isabel de Goés, primeira do nome, ambos naturais da ilha da Madeira.

[8] Existia outra irmã por nome Ana Pires.

[9] LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana. São Paulo: USP, 1980.

[10] Montanha lendária.

 

[11] Fundada na segunda metade do século XVI.