CORAÇÃO PARTIDO
Por Elmar Carvalho Em: 01/11/2015, às 12H21
ELMAR CARVALHO
Estava eu posto em sossego, no salão de entrada da APL, no sábado passado, a conversar com o confrade Reginaldo Miranda sobre os seus projetos historiográficos, entre os quais se encontram a reedição de seus livros e o término da redação de suas novas pesquisas, que darão origem a novas obras sobre a nossa história e sobre nossos vultos ilustres, quando chegou o escritor e cardiologista José Itamar Abreu Costa.
Itamar nos contou um fato anedótico de dois ferrenhos adversários políticos, que o bispo Dom Abel Alonso Nunez, com a sua intermediação, terminou por apaziguar e conciliar. No fecho da narrativa do episódio, revelou que um deles morreu de coração partido. Fiquei curioso, e logo imaginei que o finado havia contraído uma forte paixão amorosa não correspondida. Isso porque a metáfora do “coração partido” é usada na literatura e mesmo nas conversas informais como símbolo de desilusão amorosa, de amores sem correspondência, de amores impossíveis ou proibidos.
Dr. Itamar, ante minha irrefreável curiosidade, deu rápida explicação, e me prometeu enviar maiores informações por e-mail. Cumprindo a promessa, enviou-me o seguinte bilhete eletrônico:
“É uma situação já bem documentada. Nos pacientes submetidos a stress permanente, haverá liberação excessiva de substâncias vasoativas (Adrenalina e Noradrenalina), e como consequência a coronária sofre um espasmo e o paciente infarta, ao ser estudado por Ecocardiograma são detectadas grandes áreas de necrose no músculo do coração.
Submetido ao cateterismo e cinecoronariografia (estudo das artérias coronárias), eis a surpresa: as artérias coronárias estão quase sempre isentas de obstruções. Em outras situações o paciente tem morte súbita e, ao ser submetido à necropsia, são detectadas imensas áreas de necrose da musculatura do coração e o padrão das artérias coronárias completamente normais.
A doença leva este nome em função de que existe uma cidade no Japão (tradicionalmente agrícola – plantações de arroz), na qual os jovens japoneses trabalham cerca de 18h/dia, sem férias, sem perspectivas para o futuro; estes trabalhadores apresentam uma frequência muito alta de infarto e/ou morte súbita.”
Ante os esclarecimentos acima, verifico que o coração mencionado pelo doutor Itamar foi literalmente partido, e nada tinha a ver com os metafóricos corações partidos dos poetas e amantes, embora um forte estresse provocado por amores infelizes ou trágicos possa literalmente “arrebentar” um coração, segundo deduzo da leitura do e-mail acima transcrito.
Outrora, acreditou-se que o coração seria a sede do amor. Hoje quase todos acreditam que os sentimentos estejam em algum lugar do cérebro. Alguns acreditam que eles estejam alojados na alma ou no espírito. Não irei, aqui, discutir assunto tão abstrato e controverso. De qualquer maneira o coração passou a ser símbolo do amor. É um importante órgão, vigoroso, de músculos nobres e resistentes, conquanto também possa ser necrosado e partido. Portanto, recomendo que ninguém ame demais, ou, pelo menos, não ame além de sua capacidade.
É, na verdade, uma bomba, que faz o sangue circular por todas as veias e artérias. E se ele parar, a vida para. Foi chamado de comboio de cordas pelo poeta Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração.” Eu o chamei de bomba, mas bomba incendiária: “Meu coração / é uma bomba incendiária / mas muitas vezes tem servido / de bobo da corte / para os fúteis e vulgares.”
No livro Psicanálise dos Gênios (Doentes Célebres), de Gastão Pereira da Silva, leio que o grande poeta Shelley, ao morrer em circunstância trágica, teve o seu corpo levado a uma pira fúnebre. Então, ocorreu algo de extraordinário, que deixo GPS descrever: “De súbito, porém, o corpo estala e se encurva no ar e o coração de Shelley aparece inteiramente ileso! As chamas não o queimam, mas o cérebro ferve literalmente dentro do crânio, como se estivesse dentro de uma caldeira!” E conclui afirmando que tudo o fogo destruíra, menos o coração bondoso do poeta, que costumava fazer caridade.
No conto O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, o protagonista, na verdade uma suntuosa e bela estátua, manda em sucessivas ocasiões que a andorinha, que o amava, distribuísse aos necessitados as valiosas peças de metais nobres e pedras preciosas de que era revestido, até se transformar numa escultura feia e sem valor artístico. Quando a andorinha morreu aos seus pés, o seu coração se partiu. “Como ele perdeu a beleza, perdeu também sua utilidade”, proclamou, doutoral, o professor de arte da Universidade.
Os administradores da cidade mandaram, então, fundir a estátua, para que uma nova fosse feita. Tudo o fogo derreteu, menos o coração bondoso (e partido) do Príncipe Feliz, que foi jogado no lixo. Um dia, pediu Deus a um de seus anjos que lhe trouxesse “as duas coisas mais preciosas da cidade”. E o anjo lhe entregou a andorinha morta e o coração de chumbo.