Conversa de véio
Em: 20/02/2018, às 06H47
[Domingos Pellegrini]
Conversa de dois idosos na academia ao ar livre:
- Então, de novo aqui no estica-véio...
- Pois é, enquanto a danada não chama, a gente vai ouvindo os sabiás. E o carnaval, pulou onde?
- Na cama, na cadeira de balanço e na rede. Filha diz que cadeira de balanço é coisa obsoleta, falei então me pega todo dia no colo e balança, aí pode pinchar fora a cadeira.
- E obsoleto ficou o telefone fixo, javiu? Menino, eu via meu pai esperar dois dias pra fazer um interurbano...
- Palavra que nem existe mais. Bisnetinha diz que com o tal uatsap a gente pode falar com Pequim de graça, mas eu não tenho nadinha pra falar com Pequim. Queria era falar umas coisinhas pra uns e outros da política assim olho no olho, sacumé?
- Sei, mas eu tô me acostumando com o uatsap, mesmo sem entender como é que uma coisa funciona sem custo. Meu medo é que, quando estiver entendendo direitim, inventam outro trem, é tanta novidade tão ligeiro que...
- ...dá medo. Nem enterram gente mais, só cremam. Aliás, lembrei de creme. Levei o bisneto na sorveteria, tinha sorvete de tudo quanto é tipo, menos de creme, perguntei porque, disseram ah, ninguém mais pede creme...
- Mas daqui a pouco o creme volta com tudo, que nem lomplei, que quase acabou e agora é moda. Se eu tivesse menos de setenta, abria a Sorveteria da Saudade: só pistache, creme, morango, coco e amendoim.
- Amendoim não posso comer, minha véia reclama que fico muito assanhado...
- Devia ter me avisado que era pra dar risada. Meu genro é assim, conta piada tão sem graça que só ele ri.
- Já o meu conta piada que ninguém entende.
- Meu neto contou esta: qual a doença que o pneu mais pega? Pneumonia.
- Que matou o Tico, vinha aqui todo dia, dizia que estava ótimo e...
- ...esticou de vez. E a gente aqui esticando aposentadoria pra chegar no fim do mês.
- Ganhando duas vezes menos que o tal auxílio-moradia de juiz. Será que a gente vai embora sem ver o Brasil criar vergonha?
- Pois é, no Brasil se cria desde zebu até avestruz, só não se cria vergonha.
- Porque o povo é muito pamonha.
- Minha avó já dizia que falta berço, escola, terço e cachola.
- Mas meu bisneto outro dia me pediu a bênção, pode acreditar. Chegou de mansinho e: a bênção, vô. Até marejou a vista. Aí ele piscou: amanhã é meu aniversário, me dá um tablet de presente? Dei um tablete de chocolate. Tô ficando esperto.
- E ele gostou?
- Me deu um pente de presente.
- Mas você é careca!
- Entendeu?
Seu nome é Marco Antonio Xavier, e a profissão ele fala de boca cheia: reciclador. Passa pegando os papéis, plásticos e vidros, e toma o suco com que retribuímos a lição que nos dá: leva o lixo, deixa alegria. Sempre sorrindo, sem reclamar, com disposição para tudo resolver de algum jeito inventivo. Leva mesmo o que não tem valor para reciclagem, encaminha para alguém que de algum jeito usará, como cabos de vassoura que vai enfiando num tubo "pra não atravancar o carrinho".
Aliás, carrinho com estrutura metálica e guarda-sol, "pra trabalhar direitinho". Exemplo a ser seguido num país onde tanta coisa mal funciona e – conceito a ser reciclado - o trabalho ainda é visto como castigo. Mas os catadores reciclam o futuro todo dia.