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A conceituação do tempo, ou da duração, pela ótica de Bachelard, é uma conceituação ainda inovadora no âmbito filosófico, porque não se tem notícia de novidades filosóficas que rejeitem ou ultrapassem as idéias do filósofo francês. Essas idéias diferenciadas tiveram, como ponto de apoio, as teses de Einstein e Gaston Roupnel, além de uma reavaliação dos pensamentos de Henri Bergson sobre o tempo.

 

Reavaliando os pensamentos de Henri Bergson, preocupados apenas com o aspecto linear e pleno do tempo vital, Bachelard procura provar que, acima desse tempo vital (contínuo), há o tempo do pensamento (descontínuo) e o tempo espiritual (totalmente lacunar). O tempo vital (cogito(1)) e o tempo do pensamento (cogito(2) e cogito(3)) estariam situados exclusivamente no plano vital, e o tempo espiritual (cogito(4)), restrito ao plano espiritual de difícil ascensão.

 

Bachelard postou-se contrário à tese da continuidade temporal bergsoniana, passando a postular criticamente a existência de lacunas na duração, argumentando que, se há em Bergson uma filosofia do tempo pleno, positivo, teria de existir, em contrapartida, uma filosofia da negatividade. Postulando a idéia de um tempo negativo, o filósofo descobriu a possibilidade de se realizar uma incursão-excursão no espaço intermediário entre as duas realidades temporais. Esta negatividade, baseada na ritmanálise, levaria os esforços de dissociação até ao tecido temporal, ativando o ritmo da criação e da destruição, da obra e do repouso, retendo o tempo reconquistado, conhecendo o tempo, aceitando e compactuando com a idéia do princípio da negação.

 

A respeito de uma conceituação do pensamento, este não é privilégio apenas do tempo vivido (tempo linear), faz parte na verdade do tempo pensado (superior), em estado nascente, e se caracteriza por uma tentativa de vida nova, um desejo de viver de outro modo, de superar os obstáculos do cotidiano. Pensar sobretudo o tempo, pelo ponto de vista de Gaston Bachelard, é enquadrá-lo, localizá-lo no interior da própria vida; é propôr-se, também, a uma vida diferente e rica.

 

O conhecimento estaria, por este aspecto, em relação direta com o pensamento. A sua grandeza seria determinada no enriquecimento interior do ser que pensa. O desenrolar desse conhecimento seria simplesmente uma conseqüência da vontade do pensador, a elevação de uma aprendizagem constante, feita de preenchimento de mensagens provenientes do exterior, sustentada por forças exteriores, mas reconstruída, ordenada e novamente sustentada pelo desejo de saber.

 

A vontade do pensador se origina do repouso fervilhante. Há uma grande diferença entre o repouso, ato de descansar a mente das paixões cotidianas, e o repouso fervilhante do pensamento (repouso ativado), algo ainda meio vazio, em suspenso, oscilando entre o antes e depois do tempo do pensamento. O indivíduo, consciente de seus pensamentos, adquire o direito de colocar sua inteligência a serviço de fervilhantes questionamentos ou reflexões, os quais poderão ou não renovar as formas ideológicas já instituídas socialmente.

 

Ao momento que sucede o repouso ativado, início de novas e originais formas de pensamento, Bachelard denomina de juízo de descoberta.

 

O repouso fervilhante do pensamento (ou repouso ativado) traduz-se, em princípio, por um esvaziamento da mente em relação aos conceitos usuais, uma reflexão que induz a uma breve imobilidade mental, na qual se acrisolam pensamentos díspares, os quais serão reordenados inversamente em seguida e direcionados para novas e surpreendentes descobertas mentais.

 

O juízo de descoberta, originário desse repouso ativado, é diferente também do juízo afirmativo, juízo este postulado por Henri Bergson e reavaliado por Gaston Bachelard. O juízo afirmativo, juízo das formas já institucionalizadas, apenas acentua o caráter de uma afirmação. Por exemplo, dois juízos em que o primeiro afirma que uma mesa é branca, apenas deixa transparecer o caráter determinado e direto do juízo exposto; quando se afirma o contrário, ou seja, que a mesa não é branca, observa-se simplesmente o caráter indeterminado e indireto do segundo juízo. O juízo de descoberta modifica os valores da verificação sobre a mesa branca. Ao invés de repetir a cor ou não da mesa, propicia a descoberta de uma singular mesa branca, especialíssima; suscita um debate positivo sobre uma diferente e polêmica mesa branca, gerando espanto, exclamações, discussões, fundados em dúvidas preliminares. Descobre-se enfim a existência de uma especialíssima mesa branca, em meio a tantas e tantas mesas brancas ou não. Galileu, por exemplo, descobriu o movimento da Terra e foi castigado por seu atrevimento.

 

Ainda acompanhando o raciocínio de Bachelard, as afirmações do juízo afirmativo nem sempre demonstram conhecimento positivo. Tal conhecimento deverá ser observado nas ondulações das argumentações geradas pela dúvida preliminar (polemizada), tal conhecimento poderá ser constantemente destruído e reconstruído, às vezes nunca terminando a construção, mas, sobretudo, deverá aspirar ao impulso renovador do pensamento transmutativo.

 

Sobre a filosofia de Henri Bergson, quero esclarecer que Bachelard não a rejeita, em absoluto; apenas utiliza-se dela para desenvolver suas reformulações sobre a questão da duração, reformulações que têm também uma ligação reflexiva com Albert Einstein e Gaston Roupnel, como já foi dito antes. De minha parte, o que apreendi da filosofia de Henri Bergson, sobre a duração, evolou-se de uma reflexão rápida do quarto capítulo de seu livro L'Évolution Creatrice, “Le Devenir Réel et le faux Évolutionisme”; a contra-argumentação é genuinamente de Gaston Bachelard, realçada em suas adesões e críticas ao pensamento do filósofo da metafísica do pleno. Não darei profundidade aos estudos de Bergson por razões estratégicas. Com isto, evitarei uma provável introdução de um elemento novo em minhas teorizações, o que dificultaria o objetivo de meus juízos diferenciados sobre uma entre inúmeras formas de o estudioso da literatura se envolver com o texto literário. Entretanto, as atuais exigências acadêmicas, relativas à interdisciplinaridade, estarão aqui realçadas. Esta inovadora orientação crítico-pedagógica traduz-se como um alerta em face deste recente momento de transição histórico-social-literário para o terceiro milênio.

 

Depois da intermediação, refletirei sobre a temática dos cogitos propriamente dita, ligando-a, num processo interativo, ao universo literário de Guimarães Rosa, ressaltando os quatro elementos que sustentam a vida (terra, água, fogo e ar), os quais estão presentes na obra roseana sob o predomínio da imaginação criadora ativada, alicerçando-a e propiciando, seletivamente, a ascensão do escritor aos cogitos superiores.

 

Os quatro elementos agirão como degraus e serão eles os responsáveis pela mudança de pensamento do ficcionista de ascendência sertaneja, desde Sagarana (pequenas narrativas experientes, ligadas aos aspectos exteriores do sertão) até a fase final, na qual se detectam a sua ascensão ao plano intermediário (entre o cogito(3) e o cogito(4)) e a posterior concretização de seus pensamentos criativos singulares, originários desse plano incomum. A esta parte intermediária, ligada à temática dos cogitos e aos elementos vitais, chamarei Psicanálise da Criação.

 

Sobre este título, Psicanálise da Criação, quero esclarecer que o termo surgiu em minhas incursões teóricas ao universo filosófico-psicológico de Bachelard, já que ele se auto-define como psicólogo de livros. Adotei esta terminologia para explicar o terceiro momento da atividade criativa de Guimarães Rosa. Psicanálise da Criação passará a ser, aqui, exclusivamente, o título de um capítulo de minhas explanações teóricas, sem um compromisso interdisciplinar com a Psicanálise do Texto Literário propriamente dita, representando apenas o meu particular método de abordagem, unindo a Ciência da Literatura à filosofia bachelardiana. Este título se fez necessário, porque, procurando desvendar as desordens mentais do moderno (ou pós-moderno?) narrador roseano das últimas fases (Primeiras estórias, Tutaméia e Estas estórias), atingi teoricamente a vida psíquica consciente e inconsciente do Artista ficcional brasileiro do século XX, independente de ser ele Guimarães Rosa ou não, preso ao seu próprio tempo histórico desordenado. (Observação: É importante afirmar e reafirmar sempre que a palavra desordem, realçada aqui e em algumas páginas dos capítulos seguintes, não possui caráter depreciativo. A palavra em questão deverá ser compreendida pelo seu significado etimológico).

 

Recapitulando a temática dos cogitos, no cogito(1) (cogito primário) percebe-se que todo pensamento gera uma representação no mundo físico, uma causalidade eficiente. Quando o pensamento não é concretizado imediatamente, gera um impasse (uma argumentação), e esse impasse obriga a uma busca de novas formas de concretização do pensamento inicial. Este momento de impasse (reflexões, questionamentos) localiza-se no cogito(2).

 

No cogito(2), o pensamento ativado, nascido de um primeiro pensamento, gera uma reflexão (ou uma interrogação, quando não há a possibilidade de concretizar o pensamento), que poderá ou não levar a uma causalidade final (cogito(2)) ou a várias causalidades díspares (cogito(3)). Este impasse é uma interrupção, um desvio, na cadeia causal. Entre causa e efeito há intervenções que modificam o fim esperado, intervenções essas que preparam a renovação do probabilismo de acontecimentos, os quais não estão em absoluto ligados à determinação causal. Se a causalidade final (cogito(2)) não for alcançada, propiciará uma nova lacuna, possibilitando uma nova busca, que poderá ou não atingir ao plano do cogito(3) da consciência pura.