Congresso do Livro digital

Felipe Lindoso - publicado originalmente em O Globo, em 18.05.2012

Cerca de quatrocentos participantes assistiram ao 3º Congresso do Livro digital, promovido pela Câmara Brasileira do Livro nos dias 10 e 11. Esse público estava constituído majoritariamente por funcionários das grandes editoras (os proprietários/controladores praticamente ausentes), donos e funcionários de pequenas editoras, livreiros e bibliotecários, que assistiram a quinze mesas-redondas e palestras com representantes de grandes empresas e instituições internacionais. No final, ficou surpreso e satisfeito com a informação da R. R. Bowker, baseada em pesquisa de comportamento de consumidores, de que mais de quatorze milhões de livros eletrônicos teriam sido vendidos no Brasil nos últimos seis meses.

Entre as empresas, mandaram representantes a Amazon (a Google cancelou sua presença no último instante), Nielsen e Bowker – as duas gigantes da análise de dados de consumo – a Pearson International, a Ingram Content e a Libreka. Entre as instituições internacionais presentes o destaque ficou com a IPA – International Publishers Association, a Federação Europeia de Editores, e o International Digital Publishing Forum, e também Claire Nguyen, Diretora da Biblioteca Interuniversitária de Santé, Paris.

A presença de palestrantes nacionais foi muito pequena. Destaques para a apresentação de Eduardo Melo, da Simplissimo, uma agregadora digital, e de Suely Ferreira, Diretora-Técnica do Sistema Integrado de bibliotecas da USP. A professora Mônica Franco, Diretora de Formação de Conteúdos Educacionais do MEC foi a presença mais polêmica, com uma intervenção que deixou preocupados os editores presentes ao comunicar que os tablets em processo de aquisição pelo ministério, e que serão enviados para professores de ensino médio, serão embarcados com conteúdo exclusivamente produzido pelo MEC. A professora Franco praticamente provocou os editores pedindo que “mandassem para ela”, informalmente, conteúdos digitais para uma futura análise.

A grande quantidade de palestrantes e participantes das mesas-redondas dificultou muito a participação do público, sem condições de aprofundar suas perguntas, que deveriam ser necessariamente sintéticas. É um problema do formato, que supõe uma participação muito passiva da plateia. Ponto positivo foi a quase ausência de palestrantes/vendedores. Essa categoria, muito presente nas versões anteriores, é a constituída por representantes de empresas que buscam vender as últimas novidades tecnológicas do setor.

Os grandes temas do Congresso foram colocados logo na palestra inicial do Presidente da IPA, Y.S. Chi, destacando o fato do livro digital proporcionar conteúdo de qualidade em “um mar de conteúdo sem qualidade. O simples conteúdo é cada vez mais percebido como de pouco valor, diante da disponibilidade do conteúdo aparentemente similar disponível gratuitamente”. Nessa conjuntura torna-se imperativo que os autores produzam e os editores publiquem materiais que ofereçam uma experiência de qualidade, e que essas publicações possam ser facilmente descobertas na Web. Facilidade de navegação, adicionada ao conteúdo de qualidade e ao acréscimo de valor com materiais bem escolhidos e editados, segundo Y.S. Chi – que é editor de livros técnico-científicos – são o caminho do futuro dos livros eletrônicos. Na qualidade de presidente da IPA, Chi assinalou também que vivemos em um mundo onde vários modelos de negócios estão sendo testados, e que os editores devem experimentar e não ficarem presos a um único modo de vender conteúdo.

A palestra de Chi deu o mote para o que considero terem sido as duas apresentações mais importantes do Congresso.

Jonathan Nowell, da Nielsen fez uma convincente apresentação sobre a importância dos metadados no desenvolvimento do mercado em geral, e dos livros eletrônicos em particular. A Nielsen mantêm o BookScan, sistema de acompanhamento online das vendas de varejo, em dez países, e pretende instalar esse sistema no Brasil até o final deste ano. O BookScan analisa o conjunto dos dados de cada venda feita – do título ao local de venda, do modo de pagamento ao local de residência do comprador. Uma variedade enorme de informações que permite aos editores analisar as vendas no varejo com dados de qualidade. Desde que, como assinalou, haja informações de qualidade sobre os livros, os famosos metadados. Sem eles, a quantidade e a qualidade da informação se perdem. Lembrou que a qualidade e a análise das informações são uma das grandes armas da Amazon.

Nowell chamou atenção para um aspecto importante na disseminação do livro eletrônico, que é a eliminação das fronteiras para o fornecimento às “diásporas”. A venda de livros eletrônicos em inglês para países onde esse idioma não é o nativo aumenta exponencialmente, inclusive para o Brasil, dado confirmado pela Amazon. E o Editor Henrique Mota, de Portugal, assinalou a disposição de editoras portuguesas basearem aqui suas vendas de livros eletrônicos, inclusive por razões de tributação.

Fica no ar a pergunta: quem atende a demanda da “diáspora” brasileira, significativa em vários países de outros continentes, como o Japão, os EUA, a Espanha?

Kelly Gallagher, da R.R. Bowker, apresentou dados de uma das divisões da empresa, o PubTrack Resource Center, comparando a perspectiva de consumo de livros eletrônicos em dez países: Austrália, Brasil, França, Alemanha, Índia, Japão, Coreia do Sul, Espanha, Reino Unidos e EUA. A pesquisa não registra compras efetivamente feitas (ao contrário do BookScan), e sim as tendências de comportamento de consumidores. Segundo a pesquisa, feita com pelo menos 1.000 entrevistados em casa país, 18% dos entrevistados brasileiros, equivalente a quatorze milhões de pessoas, já haviam adquirido livros eletrônicos nos últimos seis meses antes de abril passado, e a perspectiva é que esse número triplique no próximo ano. Isso é o que explica o interesse da Amazon – que não divulga números – mas da qual se especula ter vendido quase a metade disso, e abre os olhos dos editores.

NOTAS


Chartier – Palestra histórico-filosófica deslocada. A palestra “O Autor: peça chave para um mundo de leitores”, do professor Roger Chartier, historiador do livro e um dos mais conceituados especialistas do setor, discorreu longamente sobre a origem do direito autoral no renascimento, os conceitos filosóficos por trás da sua consolidação jurídica e alguns dos impasses do mundo digital. Muito interessante. Mas vários participantes do Congresso se perguntavam se aquele era o local para uma conferência desse tipo.

Amazon – Porcentagens instigantes e poucas respostas. Pedro Huerta, Diretor de Conteúdo Kindle para a América Latina, apresentou a palestra da gigante do comércio eletrônico. Segundo quem estava presente em Nova York, foi a mesma apresentada por lá em um evento há alguns meses, só que com outro palestrante. Como de hábito, a Amazon não revela números, acena com porcentagens fantásticas. Afinal, quem vende um exemplar em um período e dois em outro, pode dizer que as vendas aumentaram 100%. O diretor da Amazon também se esquivou de responder objetivamente algumas das perguntas feitas.


MEC – Não precisava dar vexame. A participação da professora Mônica Franco, Diretora de Formação de Conteúdos Educacionais do MEC era uma das esperadas com maior expectativa, e foi a que provocou as maiores frustrações no 3º Congresso do Livro Digital. A professora parecia que estava dando uma aula de sociologia de educação para alunos do ensino médio, lembrando como desde “lá atrás, na pré-história” o conhecimento era produzido e compartilhado. Quando finalmente falou sobre o conteúdo a ser embarcado nos tablets que o MEC está comprando para professores do Ensino Médio, não abriu a perspectiva de que as futuras compras de conteúdo sigam o mesmo padrão dos demais programas do MEC (PNLD, PNLM, PNBE), que sempre passam pela escolha dos professores de conteúdos fornecidos pelas editoras e avaliados por universidades, e anunciou que essa primeira versão só teria material produzido pelo próprio MEC. Jens Bammel, Secretário Geral da IPA, assinalou que essa tendência dos governos se transformarem em editores era um dos erros mais comuns na adoção de programas de conteúdo digital, assim como a crença de que a “modernidade tecnológica” resolve os problemas da educação. A professora piorou a coisa pedindo aos presentes, que “enviassem para ela”, informalmente, conteúdos para uma futura avaliação. Na verdade ela já tinha caracterizado o atual programa como piloto e sujeito a futuras modificações, e se perdeu no meio do caminho.