Conceitos de Literatura: Tradicional e Moderno

[Carlos Evandro M. Eulálio]

Resumo: Pretende-se neste artigo fazer uma abordagem sucinta sobre os conceitos de literatura tradicional e moderno. Daremos ênfase ao fato de que o conceito dessa arte, apesar de ser objeto de especulação nos textos de Platão e Aristóteles, somente em meados do século XVIII vai surgir com mais precisão no mundo ocidental, embora saibamos que as primeiras manifestações literárias irrompem muito antes, por volta do século VIII a.C., nas obras a Ilíada e a Odisseia, cuja autoria é atribuída a Homero. Faz-se também uma abordagem sobre a natureza da literatura, com base nas principais características da arte literária. 

Palavras-chave: Literatura, linguagem, função poética, objeto linguístico, objeto estético.

 

 A palavra literatura deriva da língua latina, littera, que quer dizer letra. Na antiguidade clássica, esse termo é associado à noção de arte da palavra que compreendia toda a produção escrita de um povo.  O sentido moderno que atribuímos à palavra literatura, como o que hoje conhecemos, somente se verifica a partir do final do século XVIII, embora saibamos que no Ocidente as primeiras manifestações literárias acontecem por volta do século VIII a.C., com destaque para o surgimento das epopeias a Ilíada e a Odisseia, cujo autor supõe-se ter sido o poeta grego Homero.

Os primeiros questionamentos sobre o conceito de literatura ocorrem de forma dispersa nos textos de Platão (427-347 a.C.) e em torno da noção dos gêneros poéticos lírico, épico e dramático, proposta por Aristóteles (384-322 a.C), em sua clássica obra Poética. A partir daí, com o surgimento de outras formas literárias, ao longo dos séculos, chegamos a estágios mais avançados sobre o significado do termo literatura. De forma mais abrangente, o crítico Antônio Cândido considera literatura como

 

“[…] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos.”  (CANDIDO, 2011, p. 174).

 

Conforme o entendimento de Antônio Cândido, ao referir-se a criações folclóricas e lendárias, fica patente que a literatura não se manifesta apenas através da escrita. Antes do aparecimento da escrita, os povos antigos já compõem poemas e canções que são transmitidos oralmente. Essa tradição oral reflete-se ainda hoje, quando constatamos que alguns compositores das escolas de samba ainda produzem de cor extensos sambas-enredo, sem registrá-los de imediato no papel. 

          

Atualmente, o que distingue a literatura de outros textos é a forma como os escrevemos, isto é, a forma como a linguagem literária se manifesta; muito diferente da linguagem de uma notícia de jornal ou de um capítulo do livro de história ou de geografia cuja finalidade comunicativa é exclusivamente informar, visto que possuem mensagens essencialmente denotativas, com predomínio da função referencial da linguagem. Quanto ao texto literário enquanto arte, ele

 

“é um meio de comunicação de tipo especial e envolve uma linguagem também especial. Esta última, como já foi visto, apoia-se numa língua e se configura em textos em que se caracteriza uma determinada modalidade de discurso.” (PROENÇA, 2004, p. 41)   

               

Para Domício Proença, o texto literário é ao mesmo tempo um objeto linguístico e um objeto estético. Para caracterizá-lo como objeto estético, nele em geral são recorrentes a polissemia, com predomínio da conotação, ou seja, do sentido figurado; a ficcionalidade, com ênfase na transfiguração do real, e a presença predominante da função poética da linguagem, centrada no modo de construção e configuração da mensagem. Outra característica importante da literatura é a imitação. A literatura fala sobre a vida de todos nós. Retrata verdades e situações que são comuns a todo ser humano. Por isso Aristóteles, em sua poética, define literatura como imitação das ações humanas. Como vemos, essa é a principal característica da literatura: imitar a vida. Então, quando lemos um conto ou um poema, nele imaginamos o retrato de nossas ações e atitudes ali projetado. Ao imitar essas verdades, a obra literária desperta emoções no leitor, contribuindo para que ele potencialize seus conhecimentos sobre o mundo em que vive. Consequentemente, a literatura também desenvolve no leitor ou ouvinte a capacidade crítica de interpretar esse mundo, a fim de melhor compreendê-lo.    

A arte literária está presente nas letras de uma canção, nos poemas que lemos e recitamos, nas narrativas de ficção dos contos e dos romances, nas peças de teatro e nos poemas épicos. Estes constituem as narrativas em versos sobre os feitos heroicos de um povo ou de uma nação. Vejamos a seguir, um exemplo de texto literário, lendo o poema Logias e Analogias, do professor, letrista e poeta mineiro, Antônio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso (1944-1987). Neste texto, o eu lírico mostra com ironia um aspecto de nossa realidade, através de uma crítica ao capitalismo:

 

                                        Logias e analogias

 

  No Brasil a medicina vai bem,
  mas o doente ainda vai mal.
  Qual o segredo profundo
  desta ciência original?
  É banal: certamente
  não é o paciente
  que acumula capital.

                                                                      (BRITO, 2012, p. 155)                         

 

O sufixo logia, que indica estudo de determinada matéria, na função de substantivo, comparece como elemento de composição do título. Em poucas palavras, o poeta retrata um dos motivos da desigualdade humana, ressaltando que nem todos têm acesso aos benefícios que a medicina pode proporcionar, em virtude das precárias condições socioeconômicas de um segmento da sociedade. O ritmo e principalmente as rimas internas e externas que promovem a sonoridade do texto, com o emprego ainda do enjambement, sinalizam a predominância da função poética da linguagem, que caracteriza em essência o texto literário em oposição ao não literário. A frase interrogativa, cuja resposta é dada no verso seguinte, acentua o propósito irônico do eu-lírico e aguça a atitude reflexiva do ouvinte/leitor, destinatário da mensagem.

Para concluir esta reflexão sobre alguns conceitos de literatura, chamamos a atenção para o fato de que o nível de compreensão de uma obra literária vai depender, precipuamente, do repertório de informações que o leitor/ouvinte internaliza ao longo de sua existência. Esse repertório é cada vez mais ampliado com leituras diárias, sendo essencial que desenvolva essa habilidade, para que possa interpretar adequadamente um texto literário.

 

* Carlos Evandro M. Eulálio é professor de literatura e membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da cadeira 38.

 

Referências

 

BRITO, Antônio Carlos de. Lero-Lero (1967-1985). São Paulo: Cosac Naify, 2012.

 

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011.

 

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria; literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

 

MICHELETTI, Guaraciaba. O discurso poético e as relações de e com o poder na poesia de Cacaso. Linha D’Água (Online, São Paulo v.30, n.1, p.151, jun.2017, acessado em 25/1/2021.

 

PROENÇA FILHO DomícioA linguagem literária. 7.ed. São Paulo: Ática, 2004.

 

RODRIGUES, A. Medina et al. Antologia da literatura brasileira: textos comentados, v. 1, do Classicismo ao Pré-Modernismo: São Paulo: Marco, 1979.

 

YEE, Raquel da Silva. Literatura ocidental I. / Raquel da Silva Yee. – Indaial: UNIASSELVI, 2019.1.