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 Só há um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem.

Mia Couto

Era como qualquer noite de sábado: agitada. No bar, a festa corria solta, sem hora certa para acabar. A música alta e a atmosfera impregnada de cheiros – mistura de diferentes perfumes, ranço de cigarro e álcool – não era problema para a maioria dos frequentadores.

Clarice parecia ser a única exceção. Ela não estava nem um pouco à vontade. Ao contrário. Seu único desejo, no meio de toda aquela barulheira, era estar em casa, na cama, vendo um filme antigo na TV. No entanto, Lúcia, amiga e colega de trabalho, não quis saber de desculpas, forçou-a a vir. Segundo ela, já era hora de abandonar a toca, voltar à vida, deixando o passado para trás. Assim, mesmo a contragosto, Clarice aceitou.

A semana fora difícil. Se pudesse teria fugido para o outro lado do mundo. Não, do universo. As pessoas pareciam não compreender que ela não estava com ânimo para conversas. Além disso, todos a tratavam como se estivesse doente, às portas da morte. Odiava isso. Odiava!

E agora, apesar da semana horrorosa, aqui estava ela, mergulhada nesse ruído ensurdecedor, em meio a pessoas que não conhecia. Lucia, como era seu costume, tinha desaparecido, deixando-a sozinha com a recomendação de que aproveitasse o momento. “Momento? Que momento?”, Clarice se perguntava. Se a vida fosse realmente justa ela apagaria todos os “momentos”. Nervosa, arrumou-se, puxando a barra do vestido. A cerveja estava morna, mas mesmo assim ela bebeu mais um gole, era melhor do que ficar com a boca seca.

O olhar de Clarice vagava pela sala, observando os outros se divertirem. Sentia-se a mulher invisível. Aliás, pensando bem, quando não havia se sentido assim? Não lembrava. “Que merda!”, pensou. Um cansaço enorme desceu sobre ela e, sem pensar mais, decidiu que era hora de ir embora.

Nunca soube explicar direito como aconteceu, mas quando já estava em pé, procurando Lúcia, ela o viu.

Não era bonito. Também não era feio. No entanto, ele tinha algo diferente. Algo difícil de explicar, mas que a atraia de algum modo estranho e desconcertante. Como há algum tempo não se interessava por alguém, surpreendeu-se ao perceber que não conseguia tirar os olhos dele. Lentamente, voltou à sua mesa, esquecendo-se de Lúcia e até mesmo do barulho que há poucos minutos tanto a incomodava.

Nesse momento, ele se virou, passando também a encará-la. O coração de Clarice bateu com força e os olhos procuraram, instintivamente, um caminho de fuga. Precisava sair dali o mais rápido possível. Tão nervosa estava que, sem querer, acabou entornando a cerveja no vestido. Envergonhada, escondeu-se, pedindo a Deus para que ninguém houvesse percebido nada. “Idiota! Idiota!”, repetia aflita, controlando-se para não chorar.

Enquanto lutava contra as lágrimas e, desesperadamente, tentava passar despercebida, notou que alguém estava ao seu lado. Era ele. Sorrindo, lhe estendia um guardanapo. “Para você”, disse. “Ai, meu Deus!”, ela gemeu silenciosamente.

Quando Lúcia a encontrou, Clarice estava sozinha. Na mão um copo de cerveja vazio e no rosto uma expressão estranha. Quando quis saber o que havia acontecido, Clarice não respondeu. Permaneceu olhando-a, de um jeito esquisito, com um ar distante, como se guardasse um segredo.