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[Bráulio Tavares]

Qualquer literatura que dependa de mistério e de suspense precisa mentir para o leitor, ou, na mais santa das hipóteses, despistá-lo. Precisa evitar que ele perceba de antemão as surpresas que o autor está armando à sua revelia. Isso nos sugere em primeiro lugar o romance policial de mistério, aquele tipo de enigma: quem cometeu o crime, como conseguiu fazê-lo, que motivos tinha para isso.

A literatura de suspense, o chamado thriller, precisa disso também, não porque haja nela propriamente um grande mistério a ser desvendado, mas dezenas de pequenas lacunas, omissões, coisas mal explicadas... É preciso que o leitor fique sem saber de dados essenciais. O efeito dramático dessa ignorância se reflete no protagonista, principalmente quando este está acuado, perseguido, na defensiva, enfrentando situações inesperadas e arriscosas; quando tem que tomar decisões fatais sem ter dados suficientes para isso.

O que significaram tal frase, tal atitude, tal gesto de alguém? O personagem, em perigo, é obrigado a examinar com intensidade tudo com que vai se defrontando no transcorrer da sua aventura. E o leitor também.

Cabe ao autor, então, ter seus recursos para, ao mesmo tempo em que faz jogo limpo com o leitor, obscurecer sua vista. Tem que dar ao leitor as informações miúdas, aparentemente desimportantes, que serão cruciais no desfecho. Mas dá-las assim como quem não quer nada, no meio de um diálogo, uma descrição, uma enumeração tediosa que o leitor lê, não valoriza, mas que recordará quando o véu se rasga e a explicação final cai no seu colo.

Agatha Christie, por exemplo, é mestra disso. Um dos meus exemplos favoritos é o daquele romance em que Poirot questiona (a propósito de um álibi, ou coisa assim) uma data qualquer, com um personagem. No aceso da discussão, o outo caminha até a parede e confere o calendário pendurado ali. Poirot queria apenas testar sua impressão de que o criminoso era míope; a data era mero pretexto.

Isso é uma bobagem, mas é como o drible de fingir que vai para um lado e ir pro outro. Por algum mistério, todos os zagueiros estão prevenidos contra ele, e ele continua funcionando.

Isaac Asimov, num dos seus formulaicos e divertidos mistérios dos “Viúvos Negros”, conta a história de um segredo de cofre ou coisa parecida, que não passava de uma fórmula, uma sequência de números e letras, datilografada nas velhas máquinas mecânicas (esta expressão não é tão redundante quanto parece) de 1976. No final do conto, ele mostra que o que vinha sendo lido por todos como um número 1 era na verdade uma letra “l” minúscula – pois nas máquinas antigas essa tecla era usada tanto para esse algarismo quanto para essa letra.

Diz Asimov: “Onde quer que alguma coisa, não importa o quê, possa ser vista de duas maneiras diferentes, eu tenho uma história de mistério na mão para ser escrita. Todo mundo vê do jeito errado, e só meu detetive vê do jeito certo.”

Isso é o Ovo de Colombo. Equivale a Garrincha avisar os russos que vai driblar pra direita e cruzar pro meio da área.

Outro exemplo: não quero citar diretamente a história original, para não dar spoiler, mas digamos que no auge de uma epidemia numa cidade moderna os médicos estivessem tentando desesperadamente identificar de onde provinha o contágio de tanta gente, e  alguém dissesse:

O professor passou metade da noite checando os lugares onde os pacientes tinham estado, em busca de possibilidades de contágio. Oito eram estudantes na Faculdade X. Onze tinham estado na fila de uma mesma loja. Nove tinham trabalhado na restauração de um prédio e trinta tinham feito compras no Shopping Y.”

No fim do livro a gente fica sabendo que o lugar crucial para esse fato foi justamente o prédio restaurado; mas o autor soube deixar essa informação quase invisível. Primeiro, diluiu a informação vital no meio de três outras. Depois, indicou na tal restauração uma quantidade de “casos” menor que o exemplo anterior, e logo depois deu uma brusca subida, arrastando, para esse último registro, a atenção de um leitor que está calculando possibilidades numéricas de contágio.

Ou seja: a informação foi dada ao leitor, estava ali o tempo todo.  É essa arte de enrolar o leitor que o autor do romance ou conto de detetive compartilha com o mágico de salão: “Vou serrar esta pin-up ao meio! Vou explodir o cubo de água e ninguém vai se molhar! Vou tirar de dentro desta cartola uma coisa que não ocorreu a nenhum dos meus colegas!”

Tanto no mistério quanto no suspense, muita coisa depende da habilidade do autor em nos fazer ver as coisas de um modo X e logo depois demonstrar que não, a interpretação correta era Y. Um dos grandes defensores do “fair play” no romance policial (a atitude de dar ao leitor as informações necessárias para solucionar o enigma), John Dickson Carr, comenta isto num ensaio famoso (“The Grandest Game in the World”, escrito em 1946, em resposta a “A Simples Arte do Crime” de Raymond Chandler, de 1944).

Ao revelar a resposta do mistério, diz ele, o autor evoca detalhes que não foram corretamente interpretados pelo leitor:

“Seres humanos se movem ali, e não bonecos cheios de serragem, porque o autor nos descreveu suas inflexões de voz, e suas nuances de sentimentos, com o mesmo rigor com que descreveu a descoberta das tachinhas de metal  embaixo do sofá, por parte do Inspetor Hogarth. Ele não deixou de fazer um estudo dos seus personagens somente porque estava preparando seu enredo de trás para diante. Aquele giro com os olhos – mas é claro!  Aquela hesitação momentânea, quando Betty põe a mão no peitoril da janela, como para se apoiar – naturalmente!”.

E o leitor de romance policial atravessa o livro com o movimento pendular entre o “você não é mais esperto do que eu” e o “me engana que eu gosto”