Como convencer sem ter razão
Em: 10/01/2016, às 14H07
[*Gilberto de Abreu Sodré Carvalho – especial para Entretextos]
Tenho em mãos o livro “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, o qual contém a Dialética Erística de Arthur Schopenhauer (n.1788; m.1860). É uma edição da Topbooks, de 1997. Apresenta uma longa introdução e comentários do brasileiro Olavo de Carvalho.
Sob o nome “Dialética Erística”, Schopenhauer significa a arte de debater com o fim único de vencer uma discussão. Não há ética nem boa-fé na Erística.
Do mesmo modo, a Dialética Erística nada tem a ver com a Lógica, ou seja, com a discussão, organizada e de boa fé, para que dois ou mais debatedores cheguem a uma solução ou a uma verdade.
A dinâmica de trapacear nos debates, identificada pelo filósofo Schopenhauer, inclui um ator importantíssimo: o auditório.
Ora, o auditório? De rigor, o auditório, seja ele fisicamente presencial ou virtual, é quem vai sancionar a solução que ele preferir.
A Dialética Erística corresponde a arte de convencer, de uso intenso por governantes, por políticos profissionais em geral, por advogados, entre outros.
No plano da vida do dia a dia, onde não há por vezes um auditório, a Dialética Erística é praticada nas discussões de todo tipo, entre marido e mulher, entre chefe e subordinado, entre aluno e professor, entre todos aqueles na situação de querer vencer uma discussão mesmo sem ter, e saiba não ter, razão.
O auditório, seja presencial ou virtual, também ajuda, com a sua aprovação ou não de argumentos parciais, de um ou de outro contendor, a orientar os novos golpes de argumentação “para vencer”.
Na Dialética Erística, estamos fora do âmbito das discussões sob as regras da Lógica e da sua lisura própria e sua boa-fé intrínseca.
Na Dialética Erística, é bom colocar que também o debatedor que tem razão, e sabe disso todo o tempo, usa das manobras da Dialética Erística, ou tem de defender-se delas. “Ter razão” só significa algo importante se o auditório concordar com isso. Portanto, “vencer” se impõe, mesmo quando se tem razão.
As técnicas de vencer um debate sem ter razão não foram inventadas por Arthur Schopenhauer. Ele percebeu, como investigador da natureza e da fragilidade ética humana, que havia estratagemas desleais nas discussões onde o importava era vencer.
Abaixo, listo, com a síntese possível, os truques da Dialética Erística, na ordem apresentada no livro. Espero que o leitor que se queira brioso não se assuste e aproveite a leitura. É importante que os éticos conheçam, conscientemente, este apanhado de ações de alta malícia e de espertíssima má-fé. Ao ler cada tipo de manobra, o leitor se lembrará de já ter praticado, ou sofrido, muitos dos truques.
1. Fingirmos entender a afirmação do adversário amplificada a um ponto em que ela se torne claramente inverdadeira. Isso deve ser feito quando a afirmação do adversário deve a sua consistência por aplicar-se a uma situação específica e restrita.
2. Tomarmos uma palavra central, usada na argumentação do adversário, como tendo sido usada em um sentido em que o todo da argumentação do adversário não tenha qualquer consistência.
3. Tomarmos uma afirmação feita pelo adversário em um sentido restrito ou específico, escondendo com isso que a afirmação foi feita no sentido geral.
4. Fazermos com que o adversário vá aceitando premissas ou fundamentos parciais que, sem que ele perceba, vão levar a comprovação, em um momento imprevisto por ele, ao que queremos demonstrar.
5. Usarmos proposições inverdadeiras que possam favorecer a nossa argumentação de modo a conceder, aqui ou ali, com o adversário, e fingirmos que construímos uma verdade maior em parceria com ele.
6. Usarmos expressões que divergem uma das outras na significação, de molde a escondermos a intenção de provarmos algo que está fora de qualquer uma daquelas significações.
7. Fazermos perguntas, em desordem lógica, quanto à nossa argumentação, de molde a buscarmos concessões do adversário em nosso favor. É uma ‘inversão moral” do método socrático.
8. Tratarmos com insolência o adversário, fazendo-o ter fúria. Desconstruirmos o adversário na sua autoridade. Isso pode ser feito por meio de dizermos coisas injustas; de preferência o que saibamos de segredo sobre ele.
9. Fazermos perguntas em ordem diferente da que alguém usaria, organizadamente, para chegar à conclusão que se quer. Isso leva o adversário a não se preparar para a conclusão que faremos.
10. Se o adversário responde contra o que queremos com nossas perguntas, devemos fazer perguntas que levem a outra possibilidade de argumentação. Isso leva a que o adversário se confunda por não saber o que queremos demonstrar.
11. Se o adversário concordar com várias premissas e raciocínios que levem a conclusão que desejamos, devemos simplesmente fazer parecer que houve acolhimento da conclusão que queremos, sem que se peça que o adversário reconheça isso conscientemente.
12. Darmos nomes positivos para os conceitos que defendemos e nomes negativos para os conceitos esposados pelo adversário.
13. Apresentarmos duas teses secundárias no curso do debate, uma oposta a outra, de molde a que a tese que queremos que prevaleça seja necessariamente aceita pelo adversário em contraste com aquela que lançamos para o contraste.
14. Depois que o adversário concordar com algumas premissas que lançarmos, antecipamos vitória, como se tudo já estivesse resolvido, ainda que muita lacuna exista na nossa argumentação.
15. Se tivermos dificuldade para provar um argumento paradoxal, devemos colocar uma proposição que seja correta, mas que não seja evidente. Isso pode fazer o adversário abrir-se para aceitar a possibilidade de o paradoxal ser verdadeiro.
16. Diante de uma afirmação do adversário, devemos confundi-lo com a questão de ele ter acatado, com a sua afirmação, várias premissas que nós levantamos antes.
17. Surpreendermos o adversário com uma novidade sutil na prova que até então ele colocou com sucesso. A sutileza que pode desconstruir a prova poderá ser a possibilidade de uma interpretação alternativa dos fatos.
18. Caso o adversário argumente com muita consistência e ritmo e, assim, nos possa vencer por inteiro, cabe-nos interrompê-lo imediatamente, com o uso de qualquer ardil para mudar de assunto ou provocar algum desvio na rota inconveniente.
19. S e o adversário solicita que apresentemos uma objeção a um ponto concreto da tese dele, devemos atacar um aspecto geral e duvidoso da sua tese ou mostrarmos que o mundo é feito de poucas certezas.
20. Se o nosso adversário já aceitou várias de nossas premissas, não devemos perguntar se ele conclui conosco em nosso favor. Devemos, nós mesmos, concluir em favor do que queremos provar, mesmo que ainda haja lacunas em nossa argumentação.
21. Se o adversário apresentar argumento sofístico, ou seja, mentiroso, ainda que aparentemente correto, devemos apresentar um sofisma nosso que mostre a inconsistência do sofisma do adversário. É arriscado contrarrazoar um sofisma com uma lógica correta.
22. Recusarmos admitir como correto um argumento semelhante àquele que possa levar favoravelmente à argumentação principal do adversário. A semelhança poderia ser tomada como igualdade e nos prejudicar.
23. Provocarmos o adversário a exagerar suas afirmações. O exagero o levará a sair dos limites do raciocínio em que tem razão. Devemos contrarrazoar frente ao exagero e levarmos junto, de roldão, o que era correto.
24. Devemos manter nossa argumentação dentro dos seus limites de validade. Nunca exagerarmos ou buscarmos aplicabilidade da nossa tese fora do que nos basta para vencer a discussão.
25. Criarmos consequências distorcidas que possam parecer decorrentes das conclusões do adversário. Tais desacertos mostrarão que a argumentação do adversário é ruim ou absurda.
26. Darmos um exemplo, um só, que mostre não ser verdadeira a proposição geral feita pelo adversário. A exceção única leva a que se ponha em dúvida o que é totalmente correto fora a exceção.
27. Mostrarmos que um argumento que o adversário usa em favor dele, em boa fé, é um argumento que opera contra ele, se o interpretarmos de outro modo possível.
28. Se o adversário inesperadamente irritar-se frente a um argumento nosso, devemos insistir porque teremos tocado em um ponto em que o adversário é fraco.
29. Se o adversário tiver razão e o auditório for de pessoas ignorantes do assunto discutido, devemos fazer uma objeção totalmente inválida, mas que pareça razoável para os ouvintes ignorantes; melhor ainda se pudermos ridicularizar a afirmação do outro.
30. Quando percebermos que vamos perder a discussão, devemos falar de algo totalmente diferente, mas fazendo parecer que o que falamos tem alguma pertinência.
31. Trazermos a opinião de autoridade no assunto que, de algum modo, possa invalidar a argumentação do adversário. Não importa que a opinião tenha sido dada em contexto diferente ou que a autoridade não tenha razão.
32. Quando não tivermos argumentos frente ao adversário, devemos mostrar, com ironia, nossa incapacidade para entendê-lo. Se o auditório nos for simpático ou for ignorante, essa técnica mostrará que o argumento do adversário é despropositado e incompreensível.
33. Rotularmos o argumento do adversário como decorrente de uma posição política ou filosófica detestável, como “machista”, “maniqueísta”, “racista”.
34. Dizermos que o argumento do adversário só pode estar “certo na teoria”, mas que, na prática, ele é falho. Com isso, abrimos a discussão de que a falta de comprovação na prática põe a teoria sob questionamento.
35. Se o adversário se esquiva, não dando resposta direta ao que lhe perguntamos, devemos insistir nessa questão. De algum modo, teremos descoberto algum ponto de fragilidade no adversário.
36. Identificarmos as crenças e interesses profundos do adversário que estariam sendo contrariados pelo que adversário agora defende. Em seguida, fazermos com que ele perceba essa contradição e, assim, desista das proposições específicas que tem.
37. Aturdimos ou desconcertarmos o adversário com argumentação e respostas desconexas, mas que pareçam ser pertinentes. Isso faz o adversário dedicar-se a procurar sentido no que lhe é dito. Se os ouvintes forem ignorantes, o nosso sucesso estará garantido.
38. No caso de o adversário ter razão plena, mas apresentar fundamentação sofrível, devemos atacar a qualidade da prova. Se o argumento de suporte for ruim ou mal escolhido, devemos atacar o argumento e por esse meio destruirmos a conclusão correta.
39. Quando o adversário é superior no uso de técnicas e não nos dará razão em hipótese nenhuma, devemos ser ofensivos, insultuosos e grosseiros. Isso o fará responder às ofensas, e a questão da discussão será esquecida.
40. Em reverso a anterior, se o adversário nos ofender por estar em desespero, devemos nos manter quietos e sérios, até que o estratagema do adversário seja percebido pelo auditório.
Esse é um resumo muito sintético dos estratagemas de Arthur Schopenhauer. Desdobrei dois deles e, assim, seu número chegou a quarenta.
O sucesso dos estratagemas está no reconhecimento, pelo auditório, de quem seja o vencedor. O vencedor será aquele que tiver usado melhor o repertório de truques de Schopenhauer, com maior habilidade, melhor “timing”, mais qualidade na expressão corporal e gestual, mais habilidade no ritmo, nas metáforas, nas pausas e nas ênfases, maior domínio da emoção fingida que convença.
Do momento em que haja um auditório, ele será o juiz que indicará o vencedor do debate e o perdedor. O auditório vai votar em favor ou contra, aplaudir, vaiar, levar aos ombros, jogar flores ou ovos. Ou, ainda, por vezes, omitir-se, como, por exemplo, abandonar por inteiro o plenário, sem definir o vencedor, fazeno com que só se tenha vencidos.
Se não houver auditório? Se apenas houver os dois ou três debatedores?
Creio que, quando não existir um auditório, o vencedor será aquele que puder, na situação real, alcançar os efeitos práticos que tiver desejado. Seja imobilizar a ação do seu antagonista pela sua dúvida ou pela desistência de insistir nas suas razões. Seja por, fantasiosamente, o “vencedor” assumir-se vencedor e agir, de imediato e despudoramente, como se da sua vitória não houvesse dúvida.
Cabe por fim consignar que Arthur Schopenhauer é um notabilíssimo filósofo. Os estratagemas que levantou mostram sua acuidade na observação e a sua visão de que o ser humano em nada se assemelha aos anjos.
*Gilberto de Abreu Sodré Carvalho é advogado e romancista.