Perguntaram-me se “não se pode colocar pronome átono depois da vírgula”. O que posso afirmar é que a vírgula, por constituir uma pausa, predispõe à ênclise, mas não a obriga. É possível escrever como o escritor Luandino Vieira: “A sua prima Júlia, do Colungo, lhe mandou um cacho de bananas”, ou preferir a ênclise depois de um termo virgulado, como por exemplo um advérbio, que de outro modo atrairia o pronome:


Agora, reconheço-a.

Aqui, como sempre, trabalha-se muito.

Finalmente, dispôs-se a me ouvir.

Por fim, peço-te perdão.


No entanto, se depois da vírgula houver um verbo numa das formas chamadas de futuro, que não toleram posposição de pronome oblíquo, deve-se deixar o pronome na frente do verbo:


Desconhecia as normas de uso e, por isso, as utilizaria sem distinção.  [em vez de  *utilizaria-as ou do complicado utilizá-las-ia].


Já na frase “Não demorou a definir um tipo de arte que, embora tenha ganho feições diferentes nos últimos anos, se manteve/ manteve-se fiel a uma visão transfiguradora do real”, tanto se pode usar a próclise porque o relativo que, embora distante, atrai o pronome, como se pode preferir a ênclise em razão da pausa marcada pela vírgula.


A propósito, gostaria de chamar a atenção das pessoas que gostam de usar a ênclise, sobretudo com as locuções verbais, em que teoricamente o pronome oblíquo pode ocupar quatro posições: tomem cuidado quando antes da locução aparece um que, quem, quando ou outro termo que atraia o pronome. Aí a ênclise passa a ser erro, pois o que prepondera é a palavra atrativa. Escreva, então:


- em vez de A briga *que foi-se* armando: briga que se foi armando/ que foi se armando /que foi armando-se

- em vez de Espero *que deixes-me* ser eu mesmo: que me deixes ser eu mesmo

- em vez de Não sei *quando vou-te* encontrar: quando vou te encontrar/ quando vou encontrar-te/ quando te vou encontrar

- em vez de Já disse *que pretendo-lhe* pagar logo: que pretendo lhe pagar/ que pretendo pagar-lhe/ que lhe pretendo pagar...


Para finalizar, relembremos um relato de Sebastião Nery, publicado na Folha de S. Paulo em 18.2.81 e posteriormente transcrito por Celso Luft no jornal Correio do Povo:


          O deputado Teixeira Coelho, do Maranhão, fiel ao purismo linguístico de São Luís, a Atenas brasileira (que depois do Sarney virou a apenas brasileira), ficou indignado:
               – Deputado Flores da Cunha, V. Exa. não pode estar nesta Casa, onde se deve primar pela pureza da língua, a cometer esses deslizes de pronome fora do lugar, começando os períodos.
               – Isso é coisa de importância menor, deputado. O principal é a ideia.
               – Desculpe, Exa., mas não é. Lá em São Luís não admitimos isso em estudante de ginásio.
          Flores da Cunha deu uma baforada, olhou lá de cima com total desprezo:
               – Senhor deputado, lá no Rio Grande a gramática é livre, como livre são os pampas e o minuano, como é livre o gaúcho.
               – Mas não está dispensado de respeitar a língua.
               – Ora, deputado, quem é V. Exa. para corrigir minha linguagem?
               – Sou um deputado, como V. Exa.
               – Mas sem autoridade nenhuma para falar de pronomes. V. Exa. é o próprio pronome mal colocado. V. Exa. é um pronome errado.
               – Não entendi, deputado.
               – Olhe sua carteira de identidade. V. Exa. é "Teixeira" Coelho. Em nome do purismo da língua deveria chamar-se "Xeira-te" Coelho.
          O Teixeira calou.