Foto: André Gonçalves
Foto: André Gonçalves

[Carlos Castelo]

Lendo sobre a posse de Climério Ferreira na Academia de Letras do Piauí me vieram lembranças musicais. Voltei direto aos anos 1980, em São Paulo. Eu saía de um show do grupo Língua de Trapo, no teatro Lira Paulistana. Seria redundante dizer que fazia frio. Como comentou certa vez o poeta Castro Alves: “São Paulo não é Brasil... é um trapo de polo, pregado a goma arábica na fralda da América”.

Íamos soltando baforadas congeladas pela praça Benedito Calixto, quando Lizoel Costa, o guitarrista do grupo, avisou que haveria tertúlia em casa de conhecidos seus. Comida, bebida e música garantidas, numa noite glacial. Era ir ou ir.

Na juventude fui um semiboêmio. Explico ao leitor. Gostava de ficar pelos botequins, em especial após os espetáculos. E, como faço aqui, jogar conversa ao vento.

Ou então molhar as palavras, como afirmam alguns.

Não apreciava muito, por outro lado, ir a festas. Talvez pela timidez, a tal da vergonha de existir. Nos bares havia um maior controle sobre com quem conversar. Já numa festança era impossível administrar os bate papos, beiraria a falta de boas maneiras.

Mas, como contava, era uma noite gélida de São Paulo. De fato, nada mais tentador do que beber vinho e esquentar o bandulho com algo bem cálido.

Não me recordo o bairro do sarau, só sei que era bem distante da zona oeste paulistana. Adentramos no sobradinho, lotado de gente, bem depois das 11 horas. Foram logo nos abastecendo com bebidas e tira-gostos fumegantes. Ao fundo, reverberava o som de um violão e uma voz que, pelo sotaque, me soou familiar. O rapaz cabeludo (quase todos éramos) brindava o público justamente com uma canção do disco São Piauí, de Clodo, Climério & Clésio: Cebola Cortada (Petrúcio Melo e Clodo).

Teu amor é cebola cortada, meu bem
Que logo me faz chorar
Teu amor é espinho de mandacaru
Que gosta de me arranhar

Lizoel e eu nos aboletamos no mesão onde o músico estava. Logo o reconheci: era o Jorge Mello, parceiro piauiense de Belchior em tantas canções. Ao final de sua interpretação fizemos um brinde. Ele nos cedeu o violão e oferecemos a todos uma do repertório do Língua de Trapo.

Devolvemos o instrumento, ele caprichou dessa vez numa obra de sua autoria. Foi dedicada ao clima daquela noite: São Paulo Zero Grau.

O violão ia passando de suas mãos às de Lizoel. Das mãos de Lizoel para as dele. Ficamos assim até que, quando olhei no relógio, já passava das quatro da madrugada. Apesar da alta noite, e da friagem, ninguém arredou pé da tertúlia. Ao final nos abraçamos – ainda era tempo de abraços – e cada um seguiu sua senda. Desde então nunca mais vi Jorge Mello. Hoje, ele apareceu aqui nas minhas lembranças. Recordar é ler.