Circularidades narrativas
Em: 17/05/2011, às 16H41
Miguel Sanches Neto
O que mais impressiona em Dalton Trevisan é sua capacidade de desentranhar novos textos da própria obra, em uma constante intertextualidade interna. Quando seus contos que já eram curtos começaram a encolher ainda mais – a partir principalmente de Ah, É? (1994) –, ele se especializou em reaproveitar episódios, trechos ou mesmo frases de outras histórias. Assim deslocado, o fragmento ganhava uma autonomia ao mesmo tempo em que remetia o leitor a um outro período de sua literatura.
É verdade que, desde que seu estilo se estabilizou, o autor vem usando expressões-chave que ressurgem em seus livros para representar personagens historicamente paralisados. O progresso altera o exterior da sua cidade mítica, trazendo novos hábitos, sem que isso modifique as tragédias, as alegrias e os desejos dessa população ficcional. Há uma repetição de destino que determina o eterno retorno de situações e de linguagens.
A sua é uma obra que se desdobra pelo fragmento e também pela justaposição de trechos – tal como pode ser visto na novela Nem Te Conto, João, montada a partir da seleção de textos de diversos livros de Trevisan. Em outros momentos, como em O Vampiro de Curitiba (1965) e em Meu Querido Assassino (1983), alguns contos funcionavam como série. É em Meu Querido Assassino que está a base de Nem Te Conto, João, que herdou inclusive o título de um dos relatos da coletânea. Como um todo, a sua obra tem esta dupla energia: textos maiores se estilhaçam; e estilhaços textuais se reagrupam. É esse segundo movimento que faz do conjunto de seus livros um romance em progresso sobre a província.
Em nenhum momento anterior, no entanto, o autor se valeu tão deliberadamente deste método de justaposição para obter um livro. Nem Te Conto, João funciona como narrativa independente e também como antologia. É claro que, ao optar por este processo, o autor não pretende apresentar nenhuma história nova, mas alongar um tipo de conto muito recorrente em sua obra: o da mocinha que se diz ingênua enquanto se deixa seduzir.
Quase toda dialogada, a novela se reduz a um enredo circular. Maria fala de sua vida de moça pobre, da família que ficou em uma cidade pequena da região, das pensões onde mora em Curitiba, do trabalho e do estudo à noite, do rodízio de namorados que não a tiram desta condição precária; enfim, ela conta exaustivamente histórias, em seu papel de moça pura, de namorada fiel, enquanto se entrega por dinheiro a um homem mais velho. Esse descompasso entre o que ela diz e as suas atitudes produz um efeito de humor.
Por sua vez, João reclama que ela é fria, pedindo beijos sempre negados. Raramente ele dá atenção à ladainha de Maria, apenas nas passagens mais picantes, continuando surdo em sua exploração sexual. Tudo acontece no horário de expediente, no seu escritório de advocacia, com a presença de clientes na sala de espera, o que torna o encontro mais excitante: “quanto mais gente na sala, mais gostoso” (p.13).
Há, portanto, um falso diálogo entre eles (“agora não fale”, João repete), pois cada um só pensa em si. Maria quer o dinheiro do pequenino João e o usa como confessor. João, um senhor fraquinho e feio, recusado desde a adolescência pelas mulheres, quer aproveitar aqueles instantes de poder. Os dois se frustram nesta relação profissional. Nos últimos encontros, Maria já é estudante universitária, mas não conseguiu se casar e ainda procura o advogado para receber o dinheiro que a sustenta. A situação é idêntica à do início. Tempo e identidade são estáticos nesta obra que gira em torno de si mesma.
Serviço
Nem Te Conto, João, de Dalton Trevisan. L&PM Pocket, 144 páginas, R$ 14