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[Carlos Castelo]

Não sei se é porque nasci num dos estados mais quentes da América do Sul. Ou se é porque essa época do ano faz as mulheres parecerem umas desengonçadas amazonas, com aquelas botas de cano alto. Ou ainda se é porque sofro de uma claustrofobia light e todos aqueles cobertores, edredons e futons por cima de mim acabam provocando uma angústia danada. O fato é que o frio, para mim, não é um estado climático, mas um estado depressivo.

Fiz quase dez anos de psicanálise e, claro, nesse tempo todo o assunto friagem tinha que ser contemplado. A analista, uma argentina reicheana que fumava feito uma chaminé, declarou que minha relação com as coisas gélidas era “refratária” por uma certa forma de protesto inconsciente.

“Quien nació en Piauí sólo puede permanecer muy cabreado cuando en el hielo…” – afirmava ela, enquanto fumava um Marlboro atrás do outro.

Quando eu ia responder, como boa discípula de Reich, ela anunciava que a sessão estava encerrada, que eu pensasse sobre o assunto até o próximo encontro. Aquilo me deixava tão enraivecido que me dava até um frio na espinha.

Talvez por isso nunca perdi o trauma com o inverno. Quando vi uma nevasca pela primeira vez em Nova Iorque fiquei tão paralisado que, crianças de uma escola do Brooklyn, acharam que eu era um boneco de neve e tentaram enfiar uma cenoura na minha boca.

Contudo, nesses dias tiritantes em São Paulo, a primeira coisa que me vem à memória é o Chico Marceneiro.

Ele foi um dos muitos hóspedes de nosso apartamento na Lapa de Baixo. Isso quando eu era uma criança recém-chegada do Piauí.

Ninguém falava disso nessa época, mas a nossa casa era uma espécie de consulado piauiense.

Éramos os conterrâneos que tinham vindo para o Sul Maravilha e se dado bem. Isto na cabeça dos de lá, porque a coisa aqui não estava nenhuma moleza. Para se ter uma ideia da crise, meu pai, que era mestre em Direito por universidade federal, só arrumou, de cara, um emprego de frentista de posto.

Um dia chegou o Chico Marceneiro lá no apê. Já me chamou atenção o nome dele ser aquele e ele ser eletricista. A segunda coisa foi a sua sensibilidade ao frio. É verdade que todos os nossos hóspedes nortistas sofriam com a friaca paulistana. Mas o eletricista Chico Marceneiro ganhava de todos.

Quando a temperatura chegava aos dez graus, ele não conseguia fazer mais nada: só ficar enfiado na cama com as blusas cheias de jornal amassado.

Quando se levantava para usar o único banheiro da peça, olhava pela janela da sala e, vendo a cerração, dizia:

” Mas rapaz, está tudo “embalsamado”. Eu lá vou sair pra trabalhar num gelo danado desse? Eu não!”

E assim Chico Marceneiro passou a estação inteira tremendo debaixo dos cobertores Parahyba. Quando entrou a primavera cansou de ficar enregelado e voltou a Floriano no ônibus clandestino de dona Nanu.

Nunca mais o vi. Só nos dias embalsamados como os de agora me lembro dele.