Chico Buarque: "Que Tal Um Samba?"
Por Bráulio Tavares Em: 20/06/2022, às 20H32
[Bráulio Tavares]
al Um Samba?”.
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=1yW77WeLYYc
A canção, pelo menos aos meus ouvidos, foge ao padrão costumeiro da canção popular que toca no rádio, o formato A-B-refrão-C, ou parecido. Não me soa como uma canção com “primeira parte e segunda parte”. É antes uma canção circular, uma canção carrossel, que desde o início propõe uma sequência de acordes em loop, e em cima deles a melodia e as letras se instalam, e começam a tecer pequenas variantes.
A música gira, gira, gira em torno de si mesma, e a cada volta do carrossel exibe um cavalinho novo, uma comparação esperta, uma rima bem lembrada antes de soar o gongo, ou uma síncope que dá molejo a uma estrutura baseada principalmente em cadências de 4 e de 8 sílabas.
Falei “circular”, mas seria mais preciso dizer que a estrutura é espiralada. De vez em quando esse círculo girante se eleva e se alarga, admite uma modulação para tom menor, que logo se conclui e retorna à base anterior. É como quando um carro vai numa pista de asfalto, pega à direita num trevo, traça uma volta completa e retorna à reta.
Ou como aquele avião de Santos Dumont, que avançava pela terra, aí alçava um voo confiante mas breve, flutuava, e descia para rodar na terra novamente.
Essa variante musical vem sucessivamente com os versos:
“uma samba pra alegrar o dia...”
“fazer um gol de bicicleta...”
“que tal uma beleza pura...”
Mas pelo meu ouvido não chega a constituir uma “segunda parte” propriamente dita. São decolagens melódicas de voo curto. (E em tudo isto não vai nenhum juízo de valor: esse tipo de canção é pra ser assim mesmo.)
Isso, pra mim, coloca “Que Tal Um Samba?” na mesma categoria de canções tão diferentes entre si quanto o “Samba da Bênção” (Baden/Vinícius) ou “Águas de Março” (Tom Jobim). São canções riocorrentes, em loop. Cada qual tem seu desenho próprio no interior de uma estrutura que é fechada (pela repetição quase hipnótica) e aberta – porque essa base constante oferece aos instrumentistas um território inesgotável para improvisações descontraídas; e aqui vale tirar a cartola para o bandolim de Hamilton de Holanda e suas filigranas milimétricas.
Quanto ao tema... O que dizer de uma canção de um autor como Chico, num momento como o atual? É uma canção convidando a sacudir a poeira e dar volta por cima.
Poeticamente, o que mais me atraiu foi essa célula fundamental da canção, esse quase intraduzivel “Que tal?...”, tão coloquial, tão brasileiramente intimo e igualitário. Equivale a um convite com uma cotovelada leve nas costelas do amigo, ou uma puxadinha carinhosa no braço da namorada. É um “ – Bora lá?...”, é um “ – Tás a fim?...”, uma sugestão sem compromisso mas focada, um indicador tocando o cardápio, um palpite feliz.
Acho que não serei o único a quem esta canção lançada ontem lembrou um pequeno clássico do primeiro LP de Chico, aquele que eu comprei na Olacanti aos dezesseis anos, talvez por dezesseis cruzeiros.
“Tem Mais Samba” era uma das músicas que não tocavam no rádio, ao contrário das minhas preferidas (“Olê, Olá” e “Pedro Pedreiro”). Ela é o que eu chamo de canção-manifesto, canções que se dirigem ao ouvinte para explicar-lhe a essência e o espírito de um gênero musical. Exemplos óbvios são os clássicos de Luiz Gonzaga “Baião” (com Humberto Teixeira) e “Imbalança” (com Zé Dantas), ou o “Rock and Roll Music” de Chuck Berry.
Nessa canção o jovem Chico, muito circunspecto, como todo jovem talentoso buscando demarcar seu território, e com a segurança dos recém-convertidos, afirma:
Tem mais samba no encontro que na espera;
tem mais samba a maldade que a ferida;
tem mais samba no porto que na vela;
tem mais samba o perdão que a despedida...
Eu, que naquele tempo era ainda mais jovem do que ele, ficava matutando sobre estas inequações e pensava que de acordo com o soprar do vento cada formulação dessas podia muito bem ser invertida, sem perda filosófica alguma.
E agora o Chico septuagenário emerge com outro samba-manifesto. Menos sentencioso, menos taxativo... Agora é o Chico risonho da capa do disco, curtido, calejado, descontraído, que mesmo em tempos sombrios se limita a nos piscar o olho e a dizer: “Que tal?...”
**************