CARTA A EL-REI

Miguel Carqueija

 

          Senhor, posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação se achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer!

          Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar, nem afiar, aqui não há de por mais do que aquilo que vi e me pareceu, ainda que de cá se trate de fatos os tão mais desusados do que se tem por haurido e conhecido como real, que sem os testemunhos de que toda a equipagem haverá de dar, Vossa Alteza seguramente me haveria de olhar como louco varrido, pois aquele que de terras lusitanas não se afastou tantas e tão extensas léguas marítimas, de natural fé não há de dar a tamanhas histórias!

          Vossa Majestade perdoará vosso humilde servo por omitir detalhes de viagem e navegação, porque o não saberei fazer — e os pilotos devem ter este cuidado. A partida de Belém foi — como Vossa Alteza sabe — segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14, passamos perto da Grande Canária e domingo, 22 do dito mês, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde. Na noite seguinte à segunda-feira, quando amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para isso poder ser! Fez o Capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais!   

          Seria um sinal do nosso Deus sobre os tão estranhos acontecimentos que iriam se seguir?

          Assim seguimos nosso caminho por esse mar longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buchos.

          Neste mesmo dia, a horas de véspera,houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de Monte Pascoal e a terra, a Terra de Vera Cruz!

          Foi nesse momento, que é quando começam os fatos estranhos que por obrigação de consciência e de estado, narro a El-Rei, que o Capitão Pedro Álvares Cabral, observando as aves daquela nova terra com diligentes olhos, teve sua atenção chamada por fenômeno tão estranho quanto é certo que nós, homens que vivem no mar, nunca tivemos notícia, mesmo que os marujos contem sempre e a bel-prazer suas histórias de sereias e monstros do mar e quantas outras que não lhes faltem ao estro, mas esta era difícil de acreditar se nós mesmos, todos nós após o capitão, não víssemos com nossos pobres e mortais olhos, ou seja, um espantoso objeto prateado, como um pires duplo cujas bordas estivessem lado a lado e separadas apenas por um disco escuro; e tal objeto singrava os ares como se fosse uma nau voadora, com uma tal ligeireza e graciosidade, que para nós não fôra uma coisa deste mundo cá de baixo!

          A princípio reinou o pânico em nosso navio até que o capitão, como homem bravo e varão que era, impôs a ordem, no que ajudou Frei Henrique, exortando a quantos ali estavam que se eram varões cristãos não deveriam ter medo do demo ou de qualquer cousa extraordinária.

          Ao sol posto lançamos âncoras perto da embocadura de um rio. Na manhã seguinte, quando o capitão mandou Nicolau Coelho em direitura à terra firme, para explorar e ver o que de lá podia existir, vimos com surpresa uma vasta nau terrestre se aproximando da praia. Era prateada, cheia de rodas, indescritível. Nicolau com seus companheiros desembarcou e de onde nós estávamos, mudos de espanto como pode se espantar um homem honrado em seu pleno raciocínio de adulto, pudemos ver com os olhos que em nossos rostos hão, o longo dialogo que aí foi travado. Então os nossos homens retornaram à nau capitânea, trazendo três dos estranhos que com eles falaram.

          Quando eles subiram e nós os vimos melhor porque de perto já nos estavam, entendi porque Nicolau e seus homens bravos  estavam como se de cera fossem, pois o caso é que os tais vestiam uma vestimenta preta inteiriça, como um macacão, e de suas cabeças sacudiam umas anteninhas que terminavam numas bolotas negras, e da pouca pele que podíamos ver que não estava coberta por tal esquisito traje, castigue-me o Céu se eu não falar aqui a verdade, mas os homenzinhos eram verdes que nem uma folha de alface, e veja Vossa Majestade que embora viajado e entrado em anos jamais vi em qualquer parte do mundo, homens verdes!

          O Capitão foi de uma coragem de verdadeiro cristão, e perguntou àqueles homens quem eram e se habitavam aquela terra nova. O mais alto do grupo respondeu em língua portuguesa, não tão perfeita quanto a que em Lisboa se fala, mas boa o bastante para se ouvir sem perder o entendimento, que ele e seus companheiros vinham da Estrela Polar e estavam a ajudar os naturais da região, “pois eram gente inculta e sem amparo”.  Disse ainda chamar-se por um nome que nunca ouvi e que nem reproduzir sei.  

          De tudo o que se falou o Capitão Cabral acabou tomando sua decisão e me enviou com outros companheiros, como Afonso Lopes, nosso piloto, e Nicolau Coelho, para a praia, em companhia de um dos homens de antenas, enquanto os outros dois se reuniam a portas fechadas com o capitão, Frei Henrique e Gaspar de Lemos, porque este último deveria regressar primeiro a Lisboa e convinha ao capitão que das boas e más novas que houvesse por relatar a El-Rei, alguém fosse logo na frente para levá-las!

          Ao chegar na praia caminhamos um pouco e já além das primeira árvores encontramos os primeiros homens que naquela terra eram habitantes naturais, e sua aparência era em geral tão diferente do europeu que passo a detalhar pela impressão que a mim causou: mancebos e de bons corpos, traziam arcos com setas. A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam quase nus, mas nosso guia afirmou que antes andavam totalmente nus; os homens verdes é que os tinham ensinado a proteger suas vergonhas por serem partes mais sensíveis, porque acerca disso eles são de grande inocência. Os cabelos deles são corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E também apareceram mulheres, bonitas de corpo e novas, e amáveis, e como os homens quase sem cobrir as vergonhas.

          De tudo o que nós vimos e nos maravilhou como nada na vida a esse ponto nos fizera, estou catalogando para Vossa Majestade porque um livro não fôra o bastante para reproduzir! Mas devo aqui resumir esta carta para que Vossa Majestade não se canse ao lê-la muito pesada e extensa, porque hei aqui de dar testemunha em favor de meu capitão que, aconselhado por Frei Henrique e com os poderes que carrega como representante do Reino, assinou um tratado depois de reconhecer o poderio daqueles homens verdes que voam no céu até as estrelas e cujas armas até árvores grandes podem reduzir a pó. Esses homens são pacíficos mas protegem os selvagens da região. E para permitir que aqui nos instalássemos e fincássemos a bandeira de Portugal, disseram e o fizeram com muita decisão, que teríamos a comprometer nossa palavra e nossa honra, em que:

          I – Não tomaríamos as terras dos naturais;

          II – Só nos estabeleceríamos onde nos fosse permitido, pois havia espaço para todos;

          III – Não destruiríamos as florestas, os rios e os animais, que eram de fauna estranha e não conhecida em Portugal;

          IV – Não maltrataríamos os povos da floresta;

          V – Poderíamos comerciar com eles e instruí-los, mas não poderíamos forçá-los a aceitar costumes, língua, religião e ciência (eles poderiam aceitar tudo, até nosso modo de vestir, mas espontaneamente).     

          O capitão a mim não disse, mas em seu rosto parecia escrito estar o seu temor de que, se assinar não fizesse, aqueles discos voadores que agora nos sobrevoavam e patrulhavam o mar, capazes seriam de por a pique as embarcações, condenando-nos a passar o resto de nossas vidas em Vera Cruz. E por causa disso acho que o capitão fez bem em assinar, até mesmo porque, sendo amigo desses estranhos, poderemos conseguir para Portugal novas armas e novos recursos, coisas secretas que nos darão mais poder que as outras potências em Europa! E isso vale mais que dominar selvagens da floresta.

          Assinado o tratado, Frei Henrique fez celebrar missa para os naturais que de nossas coisas tinham curiosidade tão grande como se crianças por crescer ainda fossem, e nós pudemos conhecê-los melhor e à terra que, da ponta que mais contra o sul vimos, até a outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão me pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e árvores — terra que nos parecia muito extensa.

          E das outras coisas que vi e julguei ver faço extenso relatório mas este encerro aqui porque Gaspar de Lemos já há de se despachar antes da hora pela urgência de comunicar as coisas espantosas que devem ser conhecidas.

          E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servido, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que d’Ela receberei em muita mercê.

          Beijo as mãos de Vossa Alteza.

          Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

 

 

                                      Pero Vaz de Caminha