Carros? Por que tantos carros?
Por Cunha e Silva Filho Em: 19/07/2011, às 11H28
Cunha e Silva Filho
O leitor, se abrir qualquer jornal de médio ou grande porte, deve já ter percebido a quantidade gigantesca de anúncios, os denominados “Classificados,” de vendas, trocas, aluguéis de veículos, especialmente de automóveis, de todos os tamanhos, tipos, anos e gostos. Todo mundo quer ter o seu.
É um absurdo que, em detrimento de outras matérias a serem incluídas em seções mais proveitosas ao desenvolvimento cultural das pessoas, o conjunto de uma edição de jornal ocupe, diria aproximadamente, uns dois terços só com esse tipo de anúncio. Um outro leitor poderia justificar o fato pelo lado financeiro, no que está certo mas não é justo. Da mesma maneira, não quero nem por sombra negar o valor que os veículos motorizados têm para a vida das pessoas.
Recordo de um texto ficcional de um autor norte-americano lido há anos no qual o narrador descreve aspectos da vida do povo americano, tão presa à posse e à alegria de um carro. Espécie de “sonho americano”, possuir seu próprio carro era uma das conquistas mais caros de um jovem americano. Aprender a dirigir, uma façanha a ser conquistada a todo preço.
Nos EUA é praticamente impossível que um casal não saiba dirigir. Muito da vida particular do povo ianque depende de ter seu carrinho na garagem, notadamente se o casal trabalha fora e distante. Talvez no Brasil de hoje essa realidade já seja aproximada. A posse de um carro seria tão indispensável quanto a de uma casa própria. Não se podem isolar os hábitos dos americanos sem a presença de um automóvel, sobretudo daqueles imensos carros como costumam ser esses veículos nos EUA.
Uma vez, conversando com um velho advogado, ele me fez a seguinte afirmação: “_ Você sabe, um advogado sem carro próprio é mal interpretado pelo cliente. Já imaginou um advogado indo ao Fórum sempre de ônibus? Que cliente iria respeitá-lo?
Já escutei vezes sem conta pessoas comuns ou mesmo de classe média fazendo esta observação alienada: “- Já viu o “carrão “ dele? Ou seja, na valorização do carro e do ser humano, este é , de certa forma, preterido pelo primeiro.
Outra vez, um frentista imbecil, sem que nem pra quê, exclamou de repente, parecendo desejar ser ouvido por todos: “- Não respeito quem não é dono de carro. Pra mim, um zé-ninguém.” Veja o leitor a mentalidade tacanha do vulgo em se tratando de um dos veículos mais divinizados da Terra: o automóvel.
Em recente acidente de trânsito envolvendo automóveis de luxo, morreu tragicamente em segundos, num cruzamento da capital paulista, uma jovem e bela advogada pertencente a uma família abastada da Bahia. O sobrevivente do outro carro, que vinha em altíssima velocidade, se chocou com o dela. No hospital, recobrada a consciência, a primeira frase que lhe veio à cabeça oca de burguês afortunado foi: “- Acabaram com o meu carro!” É essa a medida de valor que algumas pessoas hoje têm entre si? O responsável pela tragédia é pessoa de posses, fanático por carros de alto luxo – os Porsches da vida.
Sim, deveria haver uma lei nacional que punisse exemplarmente os crimes de trânsito, dolosos ou culposos. Lei que saísse do papel e começasse a fazer parte das punições sem recurso a brechas na legislação. Lei pra valer. Lei que refletisse a seriedade de um povo e de seus governantes. Lei aplicada a pessoas que dirigem como se fossem loucos furiosos.
As punições deveriam se estender desde a perda definitiva do uso da carteira de motorista até ao recolhimento aos cárceres dos infratores - assassinos comprovados. Assassinos do trânsito são tão maléficos quanto os marginais de toda espécie. Não merecem misericórdia.
No Brasil, não parece existir punição para quem mata no trânsito das cidades, nas estradas Os automóveis, meio de locomoção tão útil a uma família, passou a ser arma de guerra nessa guerra de viventes em que se transformou o mundo.
Objeto de ostentação na vida real, no cinema, na televisão, na ficção, verdadeiro fetiche, reproduzido em escala mundial, muitas vezes servindo de inspiração a piadas de mau gosto pequeno burguês, o automóvel traduz à perfeição o alto conceito em que a sociedade, em toda a extensão da pirâmide, o coloca.
Quantas vezes, vejo alguém estacionando o carro que, depois de cuidadosamente fechado, põe-se a olhá-lo tridimensionalmente. .Deixa-o estacionado. Volta em instantes e o examina detidamente. Parte por parte, ângulo a ângulo: o retrovisor, os pneus, os vidros, o para-brisa, a mala, o capuz, o brilho da pintura. Verifica novamente se a porta está mesmo fechada. Olha-o, olha-o como se estivesse deliciando-se com o ente mais amado do mundo. Objeto antropomorfizado,
Um outro tópico digno de reflexão dos homens de bem concerne à fabricação desmedida de automóveis ou assemelhados. Exagero na quantidade de veículos saindo das fábricas para se movimentarem em megalópoles sem planejamento urbano adequado e engenharia de trânsito competente e atualizada, que pudessem dar conta do caos urbano medido ao cubo pelos engarrafamentos e deterioração do meio ambiente, trazendo mais e mais poluição às cidades e sendo mais um fator determinante do efeito estufa. O automóvel, que foi inventado pra encurtar as distâncias, substituindo cabriolés do século 19, tornou-se um objeto gerador de tragédias da vida contemporânea.
É preciso que a indústria automobilista sofra uma moratória, dê um tempo pra se respirar, a fim de que as cidades possam voltar a ser lugares de convivo e fraternidade.Enfim, à história das tragédias de veículos se soma às de discussões raivosas entre motoristas que, por um erro por vezes não tão grave de uma das partes, se transformam em mais um tipo de tragédia, levando amiúde à morte de uma das partes.
Por aí se vê até que dimensão vão a estupidez e o primitivismo do homem de hoje.