[Paulo Ghiraldelli Jr]

Uma coisa é o sujeito, outra é a subjetividade. O sujeito é que faz a ação, ou a recebe. A subjetividade é a instância na qual estão os elementos que podem desempenhar o que se espera do sujeito.

Podemos chamar o eu humano de sujeito. Mas podemos notar, ao mesmo tempo, que a subjetividade de nosso tempo, trouxe o eu humano como uma peça a mais, junto com a maquinaria algorítmica e outras coisas mais, para o interior do que estamos chamando de subjetividade maquínica.

O eu humano participa da subjetividade maquínica exatamente quando percebe que não consegue, por ele próprio, ser sujeito. Ele é agenciado por uma maquinaria dentro de circunstâncias específicas. É destituído de sua condição de eu, é esvaziado. O eu é dessubjetivado. Então, há uma ressubjetivação, ou melhor, a criação de uma instância que não tem caráter de eu, mas que guarda tarefas de uma subjetividade que atua maquinalmente.

Um exemplo deixa claro tudo isso. Meu amigo Thiago Ricardo diz que chegou a São Paulo, vindo do Rio, para ir até uma reunião do nosso Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA). Mas o centro havia mudado de endereço. Ele se sentiu de mãos atadas, pois estava acostumado à geografia de S. Paulo segundo seus objetivos dessa viagem e de outras de mesmo tipo: pegar o caminho correto para o CEFA. Tentou aprender rapidamente a nova geografia. Dado o adiantado da hora, resolveu pegar um UBER. E eis que a plataforma do UBER o acoplou a um motorista e um carro, também desconhecedores da geografia, e por meio de um aplicativo de direção eles chegaram ao CEFA. O eu de Thiago foi dessubjetivado. E para ele participar de algo com funções de sujeito, ele teve de fazer parte da uma subjetividade maquínica: UBER como plataforma virtual, carro-motorista, aplicativo de direção. Essas peças juntas, todas, agiram sem muita semântica, sem muita significação, mas com alguma simbologia que as acionou e as coordenou de modo que a tarefa de “levar Thiago ao CEFA” foi executada.

Caso o motorista pudesse se apresentar como motorista, ele teria um eu, uma instância com identidade forjada a partir de um know how. Um saber profissional, com o qual ele poderia, ao voltar para si mesmo (uma volta para casa), chamar a si mesmo, ele, o José motorista, o taxista. Mas quando o algoritmo do UBER o agencia, lhe é apontado o destino do passageiro (há uns tempos, nem isso), mas logo em seguida o destino desaparece da tela do celular e o que é fornecido é um caminho que não é um traçado geográfico, mas sim um conjunto contínuo de comandos para que o caminho se faça. Assim, há a garantia da dessubjetivação. Pode-se estar no UBER como motorista há dez anos e não conseguir aprender nenhum caminho, nem mesmo prestar atenção na cidade. Toda a história da cidade é negada. Toda a geografia desaparece.

O mesmo ocorre com o passageiro. De início, ele já se vê como desconfiando de seu saber geográfico. Então, entra no carro e esquece a paisagem. Está ligado nas redes sociais. Alimenta a máquina (pelo celular do motorista) com o seu caminho, alimenta a máquina com seu gostos (pelo seu celular). Dupla tarefa de “prosumidor”, o produtor-consumidor. É jogado no “local de destino”. O pouco saber que tinha lhe foi tirado. A confiança que tinha lhe foi negada. Geografia e história lhe são arrancados. É sedutor se desonerar do conhecimento! Pronto, “você chegou ao seu destino”! Ora, o único destino cumprido foi o do valor: ampliou-se o valor capitalista da atenção, que o Page Rank sabe vender muito bem para quem quer fazer propaganda direcionada.

Em uma sociedade assim, de eu despossuído, a busca pelo “seja autêntico” cresce. Junto dela, a busca pelo consumo idiossincrático e pelas identidades étnicas, religiosas, de doença, sexuais etc. também cresce. Há de se preencher o eu que foi esvaziado. Como ficar só consigo mesmo? Ficar só consigo mesmo é usufruir de uma companhia desagradável. O inferno não são os outros, mas o eu! O eu forjado sem a dialética do Outro se torna peça vazia, propícia ao agenciamento maquínico, jogada para o interior da subjetividade maquínica. As pessoas sentem isso, tanto é que estão usando verbos no infinitivo no Whatsapp. Ao invés de dizer “eu agradeço” elas dizem “gratidão”. E assim por diante. Isso quando não colocam apenas uma figurinha, que é simplesmente antes simbologia que semântica. O que é uma figurinha de um bracinho? É alguém dizendo “banana prá você”? Ou é alguém dizendo, “vou lhe dar um bíceps para você apertar e ver se tô fortinho”? A inflação da simbologia vem junto com a deflação da semântica. Eis aí o âmago do semiocapitalismo no contexto da instauração da subjetividade maquínica.

Claro que a subjetividade maquínica só existe por conta de que o capitalismo é o capitalismo de plataforma, que está em simbiose ao capitalismo financeiro. Internet sem capitalismo financeiro não existiria, capitalismo financeiro sem internet não se viabilizaria. Esse capitalismo de plataforma centrado na inflação da semiótica com deflação da semântica é o que chamamos de semiocapitalismo.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista