Vista panorâmica de Ponte da Barca. Créditos: Pasquimdavila
Vista panorâmica de Ponte da Barca. Créditos: Pasquimdavila

Reginaldo Miranda*

Dentre os muitos colonizadores lusitanos que vieram amanhar o solo e fundar fazendas no Piauí, está Silvestre da Costa Gomes, também conhecido por Silvestre da Costa Gomes de Abreu, como aparece no registro do padre Miguel de Carvalho, em 1697. Naquele tempo morava ele na fazenda Salinas, situada na barra do riacho da Tranqueira com o rio Canindé. Possuía, então, a patente de alferes e residia na companhia de uma negra e uma índia, que faziam o trabalho doméstico. Ao lado da casa-grande morava o vaqueiro Ignácio Gomes, talvez seu parente, auxiliado por quatro negros[1]

Mais tarde, arrendou a referida fazenda ao conterrâneo Gonçalo de Barros Taveira, que ali chegara cerca de 1697, sendo por ele recebido. Aliás, em 2 de novembro de 1705, então exercendo a patente de capitão, prestou depoimento em favor desse conterrâneo que desejava servir no cargo de Familiar do Santo Ofício. Foi qualificado como natural de Ponte da Barca, morador na cidade da Bahia, cristão velho e com idade de 48 anos, o que reporta seu nascimento ao ano de 1657[2].

No entanto, desde o ano de 1703 também ele havia requerido a habilitação para Familiar do Santo Ofício. Declarou ser natural do lugar da Presa, na freguesia de São Miguel de Boivães, do termo da vila de Ponte da Barca, arcebispado de Braga e assistente na freguesia de Nossa Senhora da Vitória do Piagohi. Disse ser filho legítimo de Sebastião Gomes de Abreu e de Maria Gonçalves. Declarou ser neto paterno de Balthazar Gomes de Abreu, natural da mesma freguesia de Boivães e de sua mulher Catherina Antunes Dantas, natural da freguesia de São Martinho de Crasto, lugar do Cancieiro, tendo vivido sempre no lugar dos Quintais, da dita freguesia de Boivães; e neto materno de Gonçalo Manoel, natural da freguesia de São João de Grovelas, no lugar de Sontelo e de Izabel Gonçalves, natural do lugar Presa, da referida freguesia de Boivães, termo da vila de Ponte da Barca.

De fato, no requerimento de habilitação ao Santo Ofício os candidatos informavam a naturalidade, filiação incluindo os pais e avós, estado civil, profissão e cabedais. Então os comissários iniciavam, às custas do interessado, as diligências para inquirição de testemunhas e coleta de informações na localidade de nascimento do habilitando. Também naquelas onde ele fixara residência, para saber de suas origens e de sua vida e costumes. Investigavam nas freguesias de seus pais e avós, o que transformam esses autos processuais em importante fonte genealógica e da vida social naqueles dias.

No caso presente, as testemunhas ouvidas em 18 de janeiro de 1706, na freguesia de São Miguel de Boivães, assim disseram: João Rodrigues, natural e morador no lugar de Paredes, da freguesia de Boivães, 45 anos de idade, pouco mais ou menos, disse conhecer o habilitando; que este era natural do lugar da Presa, daquela freguesia; e que há mais de 25 anos embarcara para o Brasil, aonde assistia; acrescentou que o habilitando fora daquela freguesia para a casa de um tio abade, e somente depois embarcara para o Brasil; esclareceu que os pais do mesmo residiam no lugar da Presa, da mesma freguesia, onde faleceram há cerca de dez anos, pouco mais ou menos, os quais eram lavradores e viviam de sua fazenda, assim como seus avós; João Francisco, lavrador, com 70 anos de idade, residente na mesma freguesia, disse que conhecera muito bem o habilitando; que este sendo menino esteve em casa de um tio abade, de onde depois embarcara para o Brasil; disse que os pais foram lavradores e viveram de sua fazenda sendo já defuntos desde cerca de dez anos; disse que os avós paternos eram falecidos há cerca de trinta anos, e também foram lavradores e viveram de sua fazenda; foram ouvidas ainda outras testemunhas que enfatizaram as informações acima sem nada acrescentar, senda elas: Antônio Rodrigues, lavrador e residente no lugar dos Moinhos, da mesma freguesia, 65 anos de idade, pouco mais ou menos; Giraldo Rodrigues, lavrador, morador no lugar dos Moinhos, 50 anos de idade; Pedro de Barros, lavrador, morador no lugar dos Quintais, 45 anos de idade; e, por fim, Manoel Rodrigues, do lugar da Vigalouca, com 55 anos de idade.

Segundo as diligências extrajudicias, o habilitando Silvestre da Costa Gomes, foi batizado em 4 de janeiro de 1658, na igreja matriz de São Miguel de Boivães, pelo abade Patrício Ferreira; recebeu por padrinhos Antônio Gonçalves da Veiga e Domingas Gonçalves, esta sendo mulher de João Fernandes, conforme consta à fl. 21 do livro de assentos de batizados. Seus pais Sebastião Gomes e Catherina Antunes, casaram-se em 20 de fevereiro de 1636, conforme registro lavrado no livro de casamentos de São Miguel de Boivães, à fl. 46. Em 7 de junho de 1620, na mesma freguesia, casaram-se os avós maternos do habilitando Gonçalo Manoel, da freguesia de São João de Grovelas e Izabel Gonçalves, da dita freguesia de Boivães, esta filha de Daniel Francisco e de sua mulher Inês Gonçalves (Livro de Casamentos, fl. 42).

Dando continuidade às diligência, em 19 de janeiro de 1706, foram ouvidas testemunhas na freguesia de São Martinho de Crasto, termo da Barca, para saber da limpeza de sangue de Catherina Antunes Dantas, avó paterna do habilitando: o padre José Soares, natural e morador na referida freguesia, com 55 anos de idade, disse que esta falecida avó era natural do lugar do Consueiro, daquela freguesia; a qual casou na freguesia de Boivães, passando a ali morar, no lugar dos Quintais, onde eram lavradores e viviam de suas fazendas; que eram de limpo sague e de bom procedimento e costumes. Foram ouvidas mais sete testemunhas e que nada acrescentaram. Essas diligências feitas no reino encerraram-se em 21 de janeiro de 1706, tendo delas participado o comissário Manoel de Barros Taveira e o padre Gaspar de Barros, o primeiro sendo irmão do colonizador Gonçalo de Barros Taveira.

Na cidade da Bahia, as testemunhas foram ouvidas em 9 de novembro de 1705, a saber:

Capitão Domingos Afonso Sertão, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, natural do termo de Torres Vedras, arcebispado de Lisboa, solteiro e morador na cidade da Bahia, com 65 para 66 anos de idade, disse: que conheceu o habilitando, sendo este natural das partes de Portugal; e foi morador quase dez anos, pouco mais ou menos, no sertão do Piaguhi, freguesia de N. Sra. da Vitória, do Bispado de Pernambuco; e desde quatro ou cinco anos era morador na cidade da Bahia; o  que sabia ele testemunha por conhecer e tratar ao dito capitão Silvestre da Costa Gomes, desde quinze anos, assim no sertão onde o habilitando assistiu em terras dele testemunha, como também na cidade, porque para ela veio; acrescentou que o habilitando era de bom procedimento, vida e costumes e tinha capacidade para poder ser encarregado de negócios de importância e segredo; e que vivia limpa e abastadamente porque tinha cabedais; que sabia ler e escrever e  lhe parecia ter a idade de quarenta anos; que era solteiro e nunca fora casado, não conhecendo dele filhos naturais;

Manoel de Araújo Costa, natural da vila de Ponte da Barca, arcebispado de Braga, viúvo, morador na cidade da Bahia, onde vivia de seu negócio, cristão velho, de idade de 40 anos, pouco mais ou menos, disse: que conhecia o habilitando, morador na cidade da Bahia há quatro anos, e antes tinha sido morador no sertão do Piaguhi, freguesia de N. Sra. da Vitória,  por cerca de doze anos; que era natural da vila da Barca; que sabia por conhecer o habilitando no sertão do Piaguhi, desde doze para treze anos, onde ele testemunha também fora morador e também na cidade da Bahia; e também por conhecer alguns parentes do habilitando, moradores na vila da Barca e seu temo, donde ele testemunha também era natural;

Capitão Gabriel Lopes, natural da província de Trás-os-Montes, arcebispado de Braga, solteiro, morador na cidade da Bahia, onde vivia de seu negócio, de 50 anos de idade, pouco mais ou menos, disse: que conhecia o habilitando, ouvindo dizer que ele era natural de Entre Douro e Minho, e fora morador no sertão do Piagohi, freguesia de N. Sra. da Vitória, alguns vinte anos e de presente morador na cidade da Bahia, haverá cinco anos; o que sabia ele testemunha por também ter sido morador no mesmo sertão do Piagohi e conhecer o habilitando desde vinte e cinco anos a esta parte;

André Pinto Correa, capitão-mor que fora no distrito de São Francisco do Rio Grande, natural de Ponte de Lima, solteiro, morador na cidade da Bahia, com 69 anos de idade, disse: que conhecia o habilitando, e ouvira dizer que ele era natural da Barca; fora morador no sertão do Piagohi e há cerca de quatro para cinco anos era morador na cidade da Bahia; o que sabia ele testemunha por conhecê-lo há vinte anos, não só no sertão do Piagohi, como na cidade da Bahia.

Segundo o comissário Antônio Peres Gião, que os ouviu na Bahia, “as testemunhas, que juraram nesta Inquisição, são todas cristãs velhas, e de opinião; e as que mais conhecimento têm do habilitando, pois todas foram moradoras no sertão do Piagohi; e em tudo o que juraram disseram verdade; e o habilitando haverá quatro anos está já morador nesta cidade da Bahia, onde tenho conhecimento dele, por ser terceiro de São Francisco, e o ver na dita ordem muitas vezes o sair aos exercícios espirituais, e assim me parece muito digno do que pretende. V. Sa., mandará o que for servido. Bahia, 16 de setembro de 1705”.

Por fim, a carta concessiva da Inquisição saiu em 16 de janeiro de 1707, sendo o capitão Silvestre da Costa Gomes, assim, habilitado para o cargo de Familiar do Santo Ofício[3].

Conforme se disse, essas diligências eram todas custeadas pelo habilitando, às vezes representando alto custo, mas compensavam pelas regalias de honra e privilégio que lhes eram concedidas naquela sociedade estamental. A família do habilitando era submetida até a terceira geração, à investigações genealógicas, a fim de provar a pureza de sangue, num critério racista que excluía cristãos-novos, negros, mulatos e indígenas. Entre essas raças ditas infectas, eram mais benevolentes com esses últimos. Eis a razão pela qual um colonizador do Novo Mundo tinha interesse em servir ao Santo Ofício, assim, provando sua pureza racial, para auferir as isenções e privilégios somente concedidos à minoria dos eleitos. O caminho ficava mais fácil para a obtenção de patentes militares, isenções de impostos, privilégios de foro, obtenção de outros títulos, inclusive a aquisição de sesmarias. Era, pois, a oportunidade para comprovar a limpeza de sangue e, assim, se colocar entre uma casta privilegiada, tanto no reino quanto na colônia.

Resumindo essas informações, o capitão Silvestre da Costa Gomes nasceu na vila de Ponte da Barca, no ano de 1657, sendo batizado no ano seguinte. Depois de ali viver a infância ao lado dos pais, foi morar em companhia de um tio abade, onde aprimorou seus estudos e fortaleceu sua vivência cristã. Já em idade adulta, cerca de 1689, mudou para o sertão do Piauí, fundando a referida fazenda Salinas, no riacho da Tranqueira, onde se lançou na vida vaqueira, como a totalidade daqueles colonizadores, fazendo crescer seu rebanho bovino e cavalar, que pastavam nas campinas ribeirinhas e no sertão agreste. Por doze anos ininterruptos foi esta a sua labuta, recompensada pelo aumento do rebanho que multiplicava vertiginosamente, sendo a garrotada vendida nas feiras de Pernambuco e da Bahia.

Assim, tendo construído um patrimônio considerável, no ano de 1701, entregou a administração das fazendas a terceiros e foi morar na cidade da Bahia, vindo ao Piauí, em espaços de tempo mais dilatados. Foi um dos fazendeiros que, em 1697, contribuiu com o padre Miguel de Carvalho para a fundação da primeira freguesia do Piauí, às margens do riacho da Mocha, na bacia do rio Canindé. É, portanto, um nome que merece figurar nessa galeria de figuras que contribuíram para a fundação das bases econômicas do Piauí.

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*REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]

 

 

 

 

 

 


[1] CARVALHO, Pe. Miguel. Descrição do sertão do Piauí (comentários e notas do Pe. Cláudio Melo). Teresina: IHGP, 1993.

[2] PT/TT/TSO-CG/A/008-001/10174. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Gonçalo, mç. 6, doc. 102.

[3] PT/TT/TSO-CG/A/008-001/24238. Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Silvestre mç. 1, doc. 9.