Capitão-mor João Rodrigues de Miranda, o colonizador do Riacho Fundo.
Por Reginaldo Miranda Em: 30/04/2025, às 08H34

Reginaldo Miranda[1]
No final do século XVII, a cidade de Salvador era um importante centro político, social, econômico e religioso. Era a capital da Capitania Geral da Bahia e do Estado do Brasil. Sua população era de aproximadamente trinta e cinco mil almas. Era, pois, ponto de atração para negociantes, agricultores, pecuaristas, profissionais liberais e quem mais quisesse trabalhar e prosperar na vida. Do reino vinham levas de jovens promissores, ávidos por oportunidades para fazer fortuna e ingressar ou se manter nos estamentos da nobreza, diga-se de passagem, baixa nobreza, nobreza de serviços. A primeira porta que se abria ao chegarem à colônia era o casamento com filhas de compatriotas enriquecidos, sempre ciosos de casarem as filhas com jovens oriundos do reino, geralmente filhos de irmãos, primos, outros parentes ou amigos que, a pedido, lhes eram enviados.
Entre esses jovens chegados à cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, cerca de 1685, estava os irmãos Antônio e Domingos de Miranda Ferraz. Ambos nascidos na freguesia de São Pedro de Vila Real, em Trás-os-Montes, onde foram batizados, respectivamente, em 4 de fevereiro de 1663 e 16 de novembro de 1664. Eram filhos de Pedro Rodrigues, o moço ou “O Mondino”, como era conhecido, escrivão da Alfândega das Ruínas de Monte Alegre; e de Maria de Miranda, residentes à Rua de Baixo de Santa Margarida, em Vila Real. Eram netos paternos de Pedro Rodrigues, o velho e Maria Martins, a moça, ambos naturais e moradores em Vila Real. Netos maternos de Clara Guedes e de Jacinto Botelho de Miranda, “homem principal nesta vila, das melhores famílias dela”, “pessoa muito principal e repúblico”, “muito grave”, “neto do alcaide-mor desta vila”[2].
Pois bem, chegando à cidade da Bahia, ambos casaram na melhor sociedade local e ali passaram a exercer suas profissões. Domingos de Miranda Ferraz era médico formado no reino, conforme declaração de um seu conterrâneo, o Bispo da Bahia, D. Luís Álvares de Figueiredo[3]. No reino ficara um irmão mais moço também médico, Dr. João de Miranda Ferraz. No entanto, não conseguimos identificar a profissão do primogênito Antônio de Miranda Ferraz[4], certamente tratando-se de pessoa letrada. Mais tarde, esses dois irmãos estabelecidos na cidade da Bahia, iriam ampliar suas ações fazendo investimentos no criatório de gado bovino e cavalar em fazendas por eles estabelecidas nos vales ribeirinhos do Piauí. Por alguns anos moraram no vale do rio Piauí, onde fincaram a caiçara de seus currais, na qualidade de rendeiros de Domingos Afonso Sertão e Julião Afonso Serra. Certamente, vieram pouco depois de 1697, porque não foram relacionados pelo padre Miguel de Carvalho em sua Descrição do Sertão do Piauí. Provavelmente, em 1698 ou 1699, porque uma década depois já estavam novamente estabelecidos na cidade da Bahia. No entanto, permaneceram no Piauí, administrando as fazendas da família, Cosme de Miranda Ferraz e João Rodrigues de Miranda, respectivamente, filhos de Domingos e Antônio de Miranda Ferraz.
João Rodrigues de Miranda[5] nasceu na cidade de São Salvador de Todos os Santos, cerca de 1687, filho do português Antônio de Miranda Ferraz e de sua esposa, a baiana Catharina de Vasconcelos, que supomos descender da família Cavalcanti de Albuquerque, com ramificações na Bahia[6] e Pernambuco[7]. Viveu sua infância na cidade da Bahia, onde desasnou a mente, frequentando as escolas ali existentes. Na adolescência, acompanhou o genitor ao sertão do Piauí, contribuindo com seu esforço na fundação de fazendas, em cuja lida permaneceu pelo restante de sua vida. De moto próprio, fundou a fazenda Buriti[8], no vale do Riacho Fundo, afluente do rio Piauí, com três léguas de comprido e largura incerta, “por serem matos bravos”[9] por ele povoados, onde constrói casas, currais e capela consagrada à Virgem Maria. Desde então prosperou no criatório de gado bovino e cavalar, cujas boiadas e cavalarias vendia no Recôncavo da Bahia, para onde as levava em jornadas anuais, por longa marcha, com a ajuda de experientes vaqueiros. Era uma cena que se repetia anualmente, um guia à frente, montado em seu corcel, direcionando o rebanho com seu aboio tristonho e a vaqueirama atrás tocando a boiada e atalhando os caminhos. Toda atenção era pouca, para evitar os espantos. Nesse caso, era prejuízo na certa, pois dificilmente eram juntados os animais em sua totalidade. Criadores desonestos, ao longo do caminho, de propósito deixavam éguas nas proximidades para desmantelar o ajuntamento da cavalaria e gadaria, provocando o estouro da boiada. Outra dificuldade era a escassez de aguadas e pastagens ao longo do caminho, assim diminuindo o peso dos animais, que chegavam emagrecidos ao fim da jornada, morrendo alguns. Para minorar esses prejuízos os fazendeiros do Piauí mandavam cavar açudes manuais e fazer currais de pedra para descanso das boiadas, em meio aos campos agrestes, ao longo do caminho[10]. Nessa lida viveu João Rodrigues de Miranda, a sua juventude e maturidade, laborando no criatório e comércio do gado. Com os lucros auferidos nessa atividade, ampliou o seu rebanho, fundando novos currais nos arredores de Buriti, a exemplo das fazendas Trindade e Guaribas, que cedeu aos filhos Antônio Pereira de Miranda e Francisco Félix de Miranda, respectivamente; ou Santa Maria, nas cabeceiras do riacho de igual nome, que, muitos anos depois vendeu a Vidal Afonso Sertão, o moço, neto paterno do sesmeiro Domingos Afonso Sertão. Na verdade, João Rodrigues de Miranda foi o desbravador e grande colonizador do Riacho Fundo e de seus formadores, os riachos do Brejo e de Santa Maria, onde combate indígenas e funda diversas fazendas, assim alargando os domínios da colonização lusitana na bacia do rio Piauí.
Como marco inicial da fazenda, sabe-se que desde princípio do século XVIII, Buriti é morada de João Rodrigues de Miranda. No segundo livro de registro eclesiástico da antiga freguesia da Mocha, a única então existente no Piauí, consta ter sido ele padrinho, em 23 de novembro de 1711, no estado de solteiro, de um inocente que fora ali batizado durante desobriga do padre Antônio Rodrigues da Silva. Em 23 de maio de 1721, portanto, dez anos depois, na mesma fazenda Buriti, ele recebe o vigário Thomé de Carvalho e Silva, que, em desobriga ali batizara a inocente Maximiana, filha que ele tivera com sua escrava Clemência. Envergava, então, a patente de capitão-mor daquelas ribeiras, que alcançara em virtude de sua luta e apoio no combate aos indígenas insurgentes que agitavam os sertões no Levante Geral de 1712, ou Revolta de Mandu Ladino. Nessa mesma luta, também se destacara seu cunhado Domingos de Abreu Valadares[11], também ele capitão-mor e casado com sua irmã Francisca de Miranda, colonizadores do Riacho do Fidalgo, afluente do rio Piauí. Nessa altura, toda a sua família morava no vale do rio Piauí, porque em 25 de maio de 1721, na mesma fazenda Buriti, sua genitora Catharina de Vasconcelos foi madrinha da neta Maria, filha desse último casal. Esse batizado com diferença de dois dias, mostra que o padre vigário demorara naquela fazenda, onde recebia os moradores do extenso vale ribeirinho para ministrar-lhes os preceitos cristãos. Era, pois, aquela fazenda ponto de apoio para os missionários católicos e para militares em diligências pelas cabeceiras do rio Piauí.
O capitão-mor João Rodrigues de Miranda foi casado com Josepha de Souza, cuja família não conseguimos apurar, porém, não sendo segredo que era oriunda de fazendeiros colonizadores daquele vale ribeirinho. Além da mencionada filha Maximiana, deixou de seu consórcio, diversos filhos, dos quais dois governaram a capitania de São José do Piauí, na qualidade de integrantes de Junta Trina de Governo. Ao que conseguimos apurar, deixou os seguintes filhos: 1. Antônio Pereira de Miranda, fundador da fazenda Trindade, antigo retiro da Buriti, casado com Mariana da Silva; 2. Francisco Félix de Miranda, fundador da fazenda Guaribas, antigo retiro da Buriti, berço inicial da cidade de Canto do Buriti, depois mudou-se para o termo de Jerumenha, nos dois municípios exercendo diversos cargos públicos, sendo casado com Eugênia Maria; 3. Cap. Ignácio Rodrigues de Miranda, do terço de cavalaria ordenança, comandante militar do rio Piauí, vereador de Oeiras, ouvidor-geral (interino) e membro de uma junta de governo, fora casado com Leandra Maria de Jesus, da família Pereira da Silva[12]; 4. Luiz Pereira de Miranda, vereador de Oeiras, casado com Úrsula Maria de Jesus; 5. José Pereira da Silva Miranda (em alguns registros aparece apenas José Pereira da Silva), vereador do senado das câmaras de Oeiras e Jerumenha, para este último termo se mudando posteriormente, onde ocupou diversos cargos públicos, inclusive juiz de ausentes; naquela qualidade, assumiu como membro da Junta Trina de Governo, por ser o vereador de maior idade; fora casado com Izabel Maria da Conceição; 6. Julião Pereira de Miranda, residente na fazenda Buriti, casado com a sobrinha Inocência de Abreu; 7. Maria de Miranda, residente na fazenda São João, fora casada com Antônio Pereira de Abreu; 8. Manoel Barbosa de Miranda, residente na fazenda Piripiri, casado com Helena de Brito, parecendo não ter deixado descendência; 9. José Fernandes de Miranda, residente na fazenda Alagoa, fora casado com uma filha de Francisco Xavier de Azevedo; 10. e, por fim, João Rodrigues de Miranda, residente na fazenda Buriti. É, pois, vasta a sua descendência, parcialmente recomposta nas obras Memória dos ancestrais, de nossa autoria (Teresina: APL, 2017) e Dados genealógicos da família Rocha, de Sebastião Martins de Araújo Costa, em três edições.
O capitão-mor João Rodrigues de Miranda faleceu no primeiro trimestre de 1763, em sua fazenda Buriti, com cerca de 76 anos de idade, depois de enfrentar problemas de saúde, inclusive nos últimos anos padecendo de paralisia. Deixou, porém, seu nome integrado à história do Piauí, como capitão-mor de Oeiras, combatente no Levante Geral de Mandu Ladino, implantador de fazendas, colonizador de extensa área territorial e progenitor de numerosa descendência que honra o seu nome até os dias de hoje. "Agora pois seja-lhe a terra leve, e nas sombras o voto consagrado", como cantou o poeta Cláudio Manoel da Costa.
[1] Advogado e escritor. Membro titular da Academia Piauiense de Letras, de que foi presidente em dois biênios consecutivos. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, de que é atual vice-presidente e coordenar editorial. Mestrando em Direito Constitucional pela UNIFOR. Contato: [email protected].
[2] (PT/TT/TSO-CG/A/008-001/12825. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, João, mç. 66, doc. 1237).
[3] “O outro seu irmão aqui é o médico da minha casa especialmente de meu irmão que quase sempre lhe está nas mãos; eu o estimo muito, ...” (PT/TT/TSO-CG/A/008-001/12825. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, João, mç. 66, doc. 123).
[4] Seu óbito foi anunciado a um irmão por carta do Bispo da Bahia, datada de 18.8.1727: “O irmão que V. M.cê me recomendou persuadisse a ir para a nossa pátria, foi para a comum dos viventes que foi Deus servido levá-lo para ir daquele seu achaque que o impossibilitava para a viagem de mar; Tenha-lhe Deus a sua alma no céu, e console a V. M.cê neste golpe em que é tão natural o sentimento” (PT/TT/TSO-CG/A/008-001/12825. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, João, mç. 66, doc. 123).
[5] O Rodrigues advém do avô e do bisavô pelo costado paterno, ambos Pedro Rodrigues. O Miranda, do genitor e da avó materna, remontando ao bisavô Jacinto de Miranda Botelho.
[6] Encontramos duas Catharina de Vasconcelos, que podem ser parentas da genitora de João Rodrigues de Miranda, pois era comum nomes se repetirem na mesma família. O casal Francisco de Vasconcelos de Albuquerque e Antônia Loba, moradores na freguesia de Posse, na Bahia, falecidos antes de 1672, eram proprietários de terras e engenho em Goiana, Pernambuco. Em 10.2.1672, seu filho Baltazar de Vasconcelos de Albuquerque, em seu nome e como tutor de seus irmãos, Antônio, Catharina, Úrsula e Ana, moradores naquela freguesia, pediram autorização régia para venderem essas últimas terras (AHU. ACL. CU 005. Cx. 21. D. 2456).
[7] Manuel Cavalcanti de Albuquerque, alcaide-mor da capitania de Itamaracá; filho de Jerônimo Cavalcanti e Albuquerque (ou Jerônimo Cavalcanti de Lacerda), alferes do regimento da 2ª companhia de cavalaria auxiliar de Olinda; senhores do Engenho Boa Vista, no termo de Goiana; neto de Phelippe Cavalcanti de Albuquerque, em 1683, pede licença real para vender ao referido filho o Engenho Boa Vista; faleceu antes de 1725, deixando viúva D. Catharina de Vasconcelos, moradora no lugar Goiana, capitania de Itamaracá (1725). Phelipe Cavalcanti de Albuquerque era genro de Antônio Ribeiro de Lacerda, com relevantes serviços prestados na guerra contra os holandeses, em Pernambuco (AHU. ACL. CU 015. Cx. 8. D. 792).
[8] Hoje cidade de Brejo do Piauí.
[9] AHU – Piauí. Cx. 7. D. 26 e 27; AHU. Cx. 8. D. 513.
[10] AHU – Piauí. Cx. 1. D. 15.
[11] AHU – Piauí. Cx. 9. D. 22.
[12] Filha do casal de colonizadores portugueses, Antônio Pereira da Silva e Maria da Purificação.