Capitão José Lopes da Cruz, o velho.
Por Reginaldo Miranda Em: 29/10/2020, às 10H24
Reginaldo Miranda*
Traçar o perfil biográfico dos pioneiros fundadores de fazendas e de famílias que viveram no final da era seiscentista e primeira metade da setecentista, é tarefa desafiadora sobre a qual, entre nós, quase ninguém tem se aventurado. Nesse aspecto temos aberto trincheira nova, tendo publicado um primeiro tomo com oitenta desses perfis. Desta feita, desejamos tecer algumas notas sobre o fazendeiro José Lopes da Cruz, natural da fazenda Buriti, ou melhor, Buriti dos Lopes, em homenagem ao seu genitor Francisco Lopes e sua descendência, português que atravessou os mares para vir assentar a caiçara dos primeiros currais na bacia do Baixo Parnaíba.
Mas quando esse pioneiro colonizador Francisco Lopes, adentrou a bacia parnaibana? Não temos elementos para precisar a data nem as circunstâncias, mas alguns indícios nos fazem crer que viera em maio de 1708, integrando a tropa do capitão-mor João Gomes do Rego, sob os auspícios do coronel Pedro Barbosa Leal. Assim, participara da fundação da vila de Nossa Senhora de Monserrate da Parnaíba, depois se fixando na fazenda Buriti, por ele fundada em terras adjacentes a Pedro Barbosa Leal. Por essa razão, embora explorando a fazenda, mas para evitar litígio não a requereu em sesmaria, sendo apenas posseiro.
Foi nesta fazenda, conforme dissemos, em meio à lida rural que nasceu o filho José Lopes da Cruz, por volta de 1715. Este, mais tarde herdaria a fazenda paterna. Por aqueles dias de seu nascimento a casa de seus genitores vivia em sobressalto pelo receio do ataque dos nativos rebelados e comandados pelo bravo líder Mandu Ladino, mais tarde alvejado com um tiro fatal quando atravessava a nado o rio Parnaíba. Entre os combatentes que integravam as forças legalistas encontravam-se seu pai Francisco Lopes, o capitão-mor da Parnaíba João Gomes do Rego e o mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, que a comandava, entre outros. A infância e adolescência viveu José Lopes da Cruz em meio aos familiares, ouvindo essas histórias de luta e pioneirismo contadas pelos genitores e agregados da fazenda, nas rodadas de “boca da noite”, à luz de lamparinas.
A formação escolar de José Lopes da Cruz, como de quase todos os meninos filhos dos casais pioneiros, consistiu em aprender a ler, escrever e efetuar as quatro operações aritméticas. Mas esse era um luxo somente permitido aos meninos de famílias abastadas, ficando o restante da população no mais completo analfabetismo. Entre estas, mesmo as filhas não tinham a mesma sorte, somente sendo alfabetizadas com raríssimas exceções. É que ao contrário destas, que ficavam enclausuradas na vida doméstica, os varões eram destinados à carreira militar, ao comércio do gado nas feiras da zona litorânea e à incipiente vida pública no senado das câmaras, onde participavam da governança das vilas. Portanto, era necessário que fossem alfabetizados. Geralmente, essa alfabetização era feita pelo próprio genitor, no caso de José Lopes, o pai era um português alfabetizado, como seus contemporâneos de conquista, cuja assinatura se ver nos requerimentos de sesmarias e de patentes militares. No entanto, não é improvável que tenha recebido aulas ministradas pelos párocos de Piracuruca ou de Nossa Senhora de Monserrate da Parnaíba. Mais improvável é que tenha ido estudar por algum tempo em São Luiz do Maranhão, embora não se possa descartar completamente essa hipótese. O certo, porém, é que preparou-se para suceder ao pai na administração dos negócios.
José Lopes da Cruz ingressou na carreira militar e alcançou a patente de capitão de ordenança, prestando serviços no Baixo-Parnaíba.
Por volta de 1735, convolou núpcias com dona Florência de Monserrate Castello Branco – irmã do tenente-coronel João do Rego Castello Branco, de cujo consórcio deixara nove filhos. Era a nubente filha do capitão-mor João Gomes do Rego, fundador da vila da Parnaíba e de sua esposa Maria de Monserrate Castelo Branco, esta filha de Dom Francisco de Castelo Branco e de dona Maria Eugênia de Mesquita, ambos naturais de Lisboa e falecidos em São Luiz do Maranhão.
Parece que o capitão José Lopes era filho único porque foi somente quem herdou a fazenda de seu nascimento, Buriti dos Lopes, que soube administrar com zelo e competência. Com o tempo ampliou seu patrimônio, multiplicando o rebanho e adquirindo outras fazendas, a saber: Espírito Santo de Baixo, comprada a Lourenço Ferreira Gomes e este a Manuel de Abreu de Mello; Pirangi, com data confirmada em 8 de maio de 1728; São Vicente, nas margens dos rios Longá e Parnaíba, com data confirmada pela segunda vez em 20 de junho de 1750, atendendo a requerimento seu, tendo-lhe sido concedida pela primeira vez em 1728 e não fora registrada por descuido do beneficiário.
Sobre a fazenda Buriti dos Lopes, assim designada desde antes de 16 de novembro de 1762, quando o desembargador Francisco Marcelino de Gouveia elaborou minuciosa relação de todos os possuidores de terra do Piauí, constam as seguintes notas: “Os ditos herdeiros e filhos do mesmo José Lopes da Cruz, que são nove, possuem a fazenda chamada o Buriti dos Lopes, que tem meia légua de comprimento e légua e meia de largura, a qual lhes tocou por falecimento do dito seu pai[1], tendo sido antes de seu avô[2], que a tinha povoado. Desta fazenda, em que todos os ditos herdeiros conservam gados, cada um com sua divisa, sendo este o modo porque costumam haver muitos possuidores em uma só fazenda, há data confirmada a requerimento da dita Dona Florência”.
Conforme se vê, o capitão José Lopes da Cruz tornou-se grande fazendeiro e latifundiário, possuindo além dessas fazendas no Piauí, também algumas no Maranhão. Entre essas, recebeu em sesmaria[3] em ambas as margens do riacho dos Estrepes, desde suas cabeceiras, afluente do rio Balsas, pelo governador João de Abreu de Castelo Branco, data de sesmaria com três léguas de comprido e uma de largura. Pede confirmação a el rei em 20 de maio de 1747, sendo-lhe o pleito deferido[4].
Mas um fato que o distingui entre seus contemporâneos e bem demonstra a sua inteligência, dinamismo, espirito cristão e visão de futuro foi a receptividade que teve às ideias de frei Gabriel Malagrida e o apoio à iniciativa e disposição de financiar a fundação e implantação de um seminário em sua fazenda Buriti dos Lopes, no ano de 1747. Na verdade, a iniciativa contou com predisposição de diversos colaboradores, mas foi ele quem apresentou maior disposição, “dando uma sua capela com o patrimônio que tiver”. Na provisão de licença, ponderou D. fr. Manuel da Cruz, que “a utilidade e proveito espiritual, que não tão-somente redundarão àquelas freguesias, e suas vizinhanças, mas também será de glória a todo o bispado”. O Seminário do Rio Parnaíba, a ser fundado na fazenda Buriti dos Lopes, seria regido por frei Malagrida e demais religiosos da Companhia de Jesus. Infelizmente, com a mudança do bispo para Mariana, em Minas Gerais, e posterior falta de apoio ao padre, inclusive com perseguição aos jesuítas, essa grande iniciativa educacional não foi implementada. No entanto, é interessante pensar-se quais teriam sido as consequência do funcionamento de tal escola no Piauí, em meados da era setecentista? Certamente, por via de consequência, teríamos tido a formação de mais professores, de mais religiosos, enfim, de uma elite mais letrada e mais doutores coimbrões. De toda sorte, valeu a intenção e o gesto benevolente do capitão José Lopes da Cruz, que, assim, insere seu nome entre os beneméritos do Piauí.
Faleceu o capitão José Lopes da Cruz, o velho, em sua fazenda Buriti dos Lopes, onde, certamente foi sepultado, em data que não conseguimos precisar, mas sabemos ter sido à volta do ano de 1755. Depois de seu óbito, a viúva Florência de Monserrate Castello Branco convolaria segundas núpcias com João Fernandes Rodrigues de Queiroz, não tendo gerado filhos desse segundo matrimônio. Em sucessão ao pai, tornou-se benemérito do lugar um seu filho homônimo, José Lopes da Cruz, o moço, que mandou construir na fazenda Buriti uma capela sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios, hoje igreja-matriz da cidade de Buriti dos Lopes. Este filho foi também importante fazendeiro e influente político na vila de São João da Parnaíba, onde exerceu por diversas vezes o cargo de vereador do senado da câmara[5], tendo sido promovido do posto de alferes para o de capitão da 7ª Companhia do Terço de Infantaria Auxiliar do Piauí, em 25 de abril de 1794; faleceu em 1846; foi casado com sua prima Francisca Maria Lopes de Jesus, de quem houve onze filhos[6], inclusive um homônimo do pai e do avô e Luiz Demétrio Castello Branco, casado com a sobrinha Ângela de Monserrate, filha do terceiro José Lopes da Cruz, todos eles se destacando como beneméritos na fundação de Buriti dos Lopes.
A memória histórica de Buriti dos Lopes guarda o nome de Ângelo Antônio Lopes (1749 – 1839) como sucessor do pioneiro Francisco Lopes. Todavia, não é o que confirma a documentação história ora revelada. Este fazendeiro, que fora assassinado pelos Balaios em 1839, aos 90 anos de idade deve ser um dos nove filhos de José Lopes da Cruz, o velho. Portanto, neto do primeiro povoador do lugar. Na segunda metade do século XIX, Buriti dos Lopes já era um povoado promissor, sendo criado o distrito e a paróquia pela Resolução nº 533, de 13 de junho de 1864, esta última sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios. Foi elevado à categoria de vila e município pela resolução estadual n.º 15, de 2 de agosto de 1890, desmembrado de Parnaíba, com instalação oficial em 1º de dezembro do mesmo ano. É hoje uma próspera cidade do Piauí, filha do trabalho e idealismo da família Lopes e de outras que, mais tarde, se agregaram ao lugar. Com essas notas fazemos justiça a esses pioneiros, lembrando em especial o nome e os feitos mais notáveis do capitão José Lopes da Cruz, o velho, uma das figuras estelares daquela família e do norte do Piauí como um todo.
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*REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. E-mail: [email protected]
[1] José Lopes da Cruz, o velho.
[2] Francisco Lopes, natural do reino e pioneiro da família Lopes no Piauí.
[3] No requerimento diz ele que não tinha terras e nesta desejava criar gado vacum e cavalar. Porém, terra ele tinha muita, somente naquele tempo ainda não tendo sido confirmadas por el rei. Esclarece também que essas terras por ele requeridas, inclusive o riacho, foram descobertos pelo capitão-mor Antônio Gomes Leite. Esse fato indica que ele integrou por algum tempo as tropas deste militar, certamente, em companhia do cunhado João do Rego Castelo Branco. Era o tempo de combate aos índios guegués.
[4] AHU. ACL. CU 009. Cx. 29. D. 3033.
[5] Encontramos registro relativo ao ano de 1779.
[6] Foi também filha deste casal, dona Maria Eugênia Castelo Branco, que fora casada com Francisco Gil Castelo Branco, filho do capitão Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco e Ana Rosa Pereira Tereza do Lago, agraciados com sesmarias no Piauí.