Cansado de bater palmas
Por Cunha e Silva Filho Em: 26/10/2021, às 19H29
CANSADO DE BATER PALMAS
Para o poeta Adaílton Medeiros ( in memoriam)
Cunha e Silva Filho
Notliada Praxim nascera no Norte brasileiro no final dos anos trinta do século passado. Sua terra natal era no interior do estado do Pará. As memórias da pequena fazenda em que moravam os pais nunca lhe saíram da cabeça. De uma família numerosa, crescera entre os matos da fazenda e a casa principal. Casa com varanda larga, espaçosa, com soalho de tijolo e teto de telha. Dividida em quatro cômodos também grandes, ainda contava com uma cozinha comprida e um pouco escura, já que o sol , posto que forte, não dava para penetrar com toda a sua força e brilho neste espaço.
O banheiro e a sentina ficavam do lado de fora,numa casinha de dois quartos dividida internamente por uma parede. Depois dessa casinha, havia um muro de cerca de um metro e setenta, com uma entrada por um velho portão de madeira sem trinco nem chave, que apenas ficava encostado.
Notliada, menino franzino, pele clara e fina, cabelos muito lisos, rosto oval, de olhar vivo, penetrante, era o mais velho.
Até então só havia nascido ele e sua irmã, mais nova três anos.Com o tempo, a mãe, a dona Esmeraldo havia de ter mais seis filhos, duas mulheres e quatro homens.
O menino Notliada já frequentava a escola primária e já dava sinais de que era dotado de grande inteligência tanto pra matemática como pra língua portuguesa. Sua professora, dona Eremita, maravilhava-se com a facilidade da criança que, com apenas, oito anos, fazia boas redações e era forte nos cálculos e na tabuada.
Aos doze anos, já estando no segundo ano ginasial, ganhara, graças ao seu talento e às notas altas, através de um convênio entre o seu colégio e o Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, conseguira do diretor uma vaga para estudar interno neste famoso e respeitado colégio carioca.
Já interno no Pedro II, no lugar que funciona hoje a sua sede principal, centro do Rio, Notliada cursou o terceiro ano ginasial até o início do segundo semestre, pois tivera que voltar pra sua terra dado que havia ficado doente, atacado de bronquite.
O diretor do Pedro II achava melhor que a criança voltasse pros pais. Era uma pena, de vez que o menino dera provas de ser bom aluno e responsável. No Pedro II tivera colegas que, mais tarde, já adultos, se tornaram pessoas influentes no meio cultural carioca, sobretudo na área dos estudos literários.
De volta à terra natal, Notliada retomou, no ano seguinte, a terceira série ginasial, sempre dando mostras de ser aluno inteligente e aplicado. Nessa época, sua irmã lhe notara pendores para poesia. Uma vez, examinando uma folha que ele deixava em cima de uma escrivaninha, reparou que havia um texto escrito com uma grafia bela e cuidadosa: era um poema dedicado a Gonçalves Dias, poeta que admirava muito. O poema de título “Os índios “ tinha muito a ver com a poesia de Gonçalves Dias no que dizia respeito a palavras e tamanho das estrofes. “Meu Deus ! Notliada é poeta e escreve bem! Vou ficar calada. Não quero que pense que estive bisbilhotando o que anda fazendo". Matilde, sua irmã, era aluna aplicada também. Magrinha, de olhar sensual, morena, cabelos escuros, tudo indicava que iria ficar baixinha, mas nem tanto.
Dona Esmeraldo, sua mãe, tinha personagem forte, dominadora, a ponto de fazer sombra ao marido. Mulher bonita, morena clara, forte, de altura mediana, era dona de casa que se impunha e estava a par de tudo que acontecia no lar. O marido, Seu Henrique, homem alto, magro, pele clara, de olhos verdes, era uma pessoa pacata, suave, muito apegado aos filhos. Cuidava dos seus negócios da pequena fazenda chamada Mocho, onde tinha algumas cabeças de gado, porcos, galinhas, e plantação de frutas variadas. Seu mundo era a fazenda.
Ali se sentia pleno de vida. Seu Henrique gostava de conversar com os três empregados da fazenda, agregados que lhe eram muito amigos, pessoas simples com quem podia contar nos momentos de maior adversidade. João, Enoch e José, os agregados, moravam na fazenda em casinhas simples e asseadas. Casinhas de tijolo, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, este do lado de fora, assim como a latrina.
Matilde e Notliada, terminado o ginásio ( pois com ano perdido no Pedro II havia ficado na mesma série que a irmã), foram para o curso de contabilidade. Na cidade natal, não havia os curso científico e clássico.
Notliada Praxim deu um virada na sua vida. Queria voltar ao Rio de Janeiro, fazer curso superior e trabalhar ao mesmo tempo. Eram os anos cinquenta. Getúlio Varagas já tinha se suicidado.
Ao chegar ao Rio não podia nem mesmo alugar um apartamento, nem uma quarto. Contentou-se com alugar uma vaga em Botafogo.Viera da sua terra de ônibus, num percurso que durou quatro dias. Longa viagem, cansativa. O que compensava era a juventude que tinha e disposição de enfrentar o batente na grande cidade.
Como era exímio datilógrafo, bom de cálculos e tinha uma excelente redação, logo arranjou um trabalho num escritório de produtos farmacêuticos na Avenida Beira-Mar. Decidiu-se a tentar o vestibular na Faculdade Nacional de Filosofia, optando pelo curso de filosofia pura, como se dizia naquela tempo.
O Brasil estava em plena ditadura, tempos difíceis. Em quatro anos, terminara o bacharelado. Não quis fazer licenciatura, porquanto não tinha ideia alguma de dar aulas. Preferiu continuar trabalhando no setor de contabilidade. Tinha mudado para uma grande escritório de contabilidade também no centro, na Av. Rio Branco, à altura da Cinelândia.. Tornara-se chefe de seção. Percebia bom salário que lhe permitiu alugar um kitchenette no Catete.
A antiga paixão pela literatura, sobretudo da poesia, se mantinha acesa. Frequentava a Biblioteca Nacional, o Real Gabinete de Leitura e outras bibliotecas importantes que havia no centro. Ao mesmo tempo, acercava-se de jovens escritores, fazia co meles amizade, mostrava-lhes seus poemas recentes.
No tempo do curso de filosofia, já tinha conseguido enturmar-se com os professores, entre os quais distinguia-se Carneiro Leão. Notliada conseguia, pois, conciliar o trabalho de contabilidade sem descurar os estudos de poesia, as leituras de ensaios, de história. Era leitor assíduo do JB, que ficava na Av. Rio Branco.
Com os contatos do tempo de faculdade, os amigos intelectuais que ia adquirindo, aos poucos foi penetrando no mundo dos círculos literários cariocas. Participava de encontros com jovens escritores da geração do Concretismo. Foi nesse tempo que conhecera Ferreira Gullar, o crítico Fausto Cunha, o crítico e ficcionista Assis Brasil, Mário Faustino, Vamireh Chacon (este de São Paulo).
O que lhe interessava mesmo era a possibilidade de fazer-se conhecido e estimado como poeta e, nesta condição, seus poemas há muito tinham deixado para trás as conquistas do Modernismo e muito menos dos movimentos anteriores da poesia.
Vivia o clima contemporâneo das vanguardas brasileiras nos anos cinquenta, sessenta. Entretanto, não deixava de ler muito e semprae Drummond, para ele o grande poeta brasileiro, como seriam também Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, entre outros.
Não se juntou aos concretistas. Preferiu o projeto poético que lançava a Poesia Práxis. A despeito de não deixar de sofrer algumas influências concretistas, sobretudo em relação ao espaço gráfico, Notliada começou a escrever os seus poemas práxis, envolvendo-se de corpo e alma aos seus princípios estéticos e à sua plataforma revolucionária.
Sua vida persistia no ritmo frenético de continuar suas pesquisas poéticas e seus contatos crescentes com o mundo literário carioca. Só uns quinze anos depois, sai publicado seu primeiro livro de poesia, uma reunião de mais de dez anos de poesia revolucionária: Geografia poética paraense (1970). Como o volume reunia poemas desde os anos cinquenta, havia variabilidade de formas de poesia, inclusive havia sonetos modernos, alguns repassados de certa nostalgia da terra, dos seus tempos de infância na fazenda. Não demorou muito saiu outro livro de poesia com um titulo estranho: Galáxias dantescas (1970).
Os dois livros lhe asseguram algum renome no meio da crítica especializada. Notliada, contudo, era tímido. Não gostava de pedir favor a ninguém. Vestia-se sempre impecável. Frequentava seminários, congressos, lançamentos de livros de amigos escritores, noites de premiações de livros na Academia Brasileira de Letras, no Pen Club e em outros espaços literários. É bem verdade que pertencia a algumas entidades literárias. Era conhecedor profundo do que havia de informações sobre escritores cariocas ou mesmo do país inteiro. Cronista da vida literária por excelência.Essa informações sobre Notliada foram conseguidas porque, a partir dos anos setenta, fiz amizade com ele, a princípio formalmente, no tempo em que ele fazia o Mestrado em Teoria literária na Faculdade de Letras da UFRJ.
Sempre que o via - eu era estudante da graduação -, estava cercado de jovens senhoras (algumas bonitas) que cursavam o Mestrado, quando a pós-graduação fora implantada na administração do diretor, o crítico e historiador literário Afrânio Coutinho, primeiro diretor daquela faculdade, cujo curso de letras fora desdobrado, por iniciativa dele e de outros professores, da antiga Faculdade Nacional de Filosofia. Afrânio foi o crítico literário inovador dos estudos superiores de literatura no Rio de Janeiro. Foi, inclusive, o seu orientador de Mestrado.
Concluído o Mestrado, Notliada teve oportunidade de lecionar literatura no curso de Letras Vassouras, RJ., mas, por razões ligadas à sua própria personalidade tímida, ele somente ali permaneceu durante um ano e pouco. Voltou a um trabalho vinculado ao antigo emprego: setor de contabilidade de uma grande empresa internacional, onde se fez respeitado e admirado pelos colegas graças à sua competência e seriedade na função de diretor de um departamento de exportação.
Resolve abandonar a poesia e dá a lume um romance, A revolta dos agregados (1974). A obra teve certa repercussão. Três anos depois, resolve voltar à poesia e publica, por conta própria, outro livro : Ponta de lança (1977). Em 1980, lança outro volume, Retratos de mulheres. Em 1988, edita outro livro de poemas: A imagem e o espelho. Em 1992, sai a lume Visões do mundo.Em 2002, edita Flâmula azul, seu derradeiro livro de poesia.
Notliada seguramente foi bem recebido pela crítica, mas não como o merecia. Apesar de certo isolamento dos tempos, ainda lia muito, sobretudo poesia. Não esqueceu Drummond. Admirava Grande Sertão: vereda, desde o seu lançamento como obra inaugurando uma fase inédita de originalidade da linguagem e de poesia na ficção, além da visão mítica do universo.
Me lembro que Notliada deu uma exemplar a seu pai que, tendo lido o romance de Rosa, confessou simplesmente como um homem do interior: “Mas isso é mesmo o mundo do serão, os personagens, a linguagem, tudo.”
Respeitado como escritor no seu estado natal, Notliada teve suas obras citadas em duas histórias da literatura brasileira, uma até estrangeira.
Meu amigo paraense, entretanto, se sentia meio esquecido. Teve até vontade de se tornar padre já maduro. A idéia, porém, não vingou. Logo esqueceu. Os anos passam, a vida literária ainda o fazia vibrar quando conversávamos, geralmente ao telefone por longo tempo. Notliada nunca teve boa saúde. Passou mal. Foi hospitalizado, mas sua doença lhe era fatal. Não aguentou. Entregou os pontos pra vida. Na minha memória, ficará a figura inesquecível daquele poeta, que me lembrava Gonçalves Dias, embora este fosse mulato.
Aquele amigo era, na verdade, um cronista enciclopédico em potencial da vida literária e cultural de nosso país. Bateu palmas pra muita gente. Se cansara, contudo, de bater palmas. Era melhor manter alguns poucos e fiéis amigos e esquecer as injustiças e a vaidade dos homens e mulheres...