Caminhos de Leônidas Mello
Em: 28/02/2020, às 09H15
Foi lançado no dia 23/01/20, às 19:30 horas, o livro de memórias “Trechos do Meu Caminho”, de Leônidas de Castro Mello, em bela solenidade, em que o auditório da Academia Piauiense de Letras ficou lotado, tendo havido necessidade de cadeiras suplementares. A apresentação da obra, integrante da Coleção Centenário, editada pela APL, foi feita pela senhora Socorro de Castro Melo Tajra, filha do autor, pelo acadêmico e professor Dílson Lages Monteiro e por mim, com o texto abaixo. O evento foi presidido por Nelson Nery Costa e teve a presença dos prefeitos de Teresina, Firmino Filho, e de Barras, Carlos Monte. Barras, terra natal do autor, se fez representar por cintilante “comitiva”, composta, entre outros, por Antenor Rego Filho e sua esposa Nise, Manoel Monte Filho, Francisco de Paula Silva, Alcides do Rego Lages Filho e Chico Acoram. Tive a honra de ter um exemplar autografado por dona Socorro, que ocupará lugar de destaque em minha biblioteca.
Elmar Carvalho
A primeira edição de Trechos de meu caminho, de Leônidas de Castro Mello, data de 1976. Vi esse livro na casa de uns parentes barrenses de meu pai. Já não recordo se o tomei emprestado, ou se apenas lhe li algumas páginas. Morando numa pensão, perto da velha Casa Saló e da sede do Sambão, numa área intermédia entre o mercado velho e o Liceu, certo dia criei coragem, e me dirigi à COMEPI – Companhia Editora do Piauí, e lá, com certa timidez, pedi que me fosse fornecido um exemplar.
Quem me atendeu foi falar com o presidente da editora, que quis conversar comigo. Eu lhe expliquei, sem dúvida, por que tinha interesse em ter o livro e como dele tomara conhecimento. Devo ter dito que minha família, por parte de meu pai, era de Barras, terra natal do autor. O diretor que me atendeu deve ter sido Deoclécio Dantas; gostaria que tenha sido ele, cuja digna trajetória política e jornalística acompanhei, à distância.
Algumas décadas mais tarde nos tornamos colegas na Academia Piauiense de Letras, quando travamos amizade e passamos a nutrir recíproca admiração. O certo é que de lá saí com um exemplar, que li e reli com prazer. Recomendei a meu pai que também o lesse. Em virtude de viagens e mudanças residenciais, ou talvez por causa das devoradoras traças e goteiras, o perdi, mas nunca esqueci vários de seus trechos verdadeiramente antológicos. Vivia eu nessa época uma fase um tanto difícil de minha vida, pois em junho de 1975, aos 19 anos de idade, fora morar em Parnaíba, e em setembro desse mesmo ano viera assumir emprego nos Correios, em Teresina. Era inexperiente em emprego e nunca deixara a casa de meus pais.
Conquanto tenha dito Leônidas que escrevera suas memórias “sem qualquer pretensão a mérito literário”, até porque jamais se dedicara a estudos filológicos, devo dizer que as li com muito interesse e atenção, e até com muito gosto, mesmo sendo eu na época um leitor compulsivo de ficção e poesia. Alinho o seu livro entre as obras memorialísticas que mais admirei, entre as quais cito Memórias e memórias inacabadas, de Humberto de Campos, Confesso que vivi, de Pablo Neruda, Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis Borges, Ensaio de autobiografia, de Boris Pasternak, e entre as várias escritas por Pedro Nava.
Apesar da restrição feita pelo próprio autor, como assinalei acima, considero ter o livro boas qualidades literárias, mormente no âmbito memorialístico e autobiográfico, além da importância que possui para a história recente de nosso estado, pelo seu teor confessional e por ser o depoimento de uma testemunha presencial e privilegiada, conforme demonstro a seguir.
Advirto, de logo, que não irei, aqui, tratar das notáveis e inúmeras obras físicas que o professor, médico e político Leônidas de Castro Mello realizou em sua paradigmática e profícua administração, mormente no campo da medicina e da educação, nem tampouco das melhorias que ele implementou na prestação de serviços públicos.
Não bastassem as qualidades da redação, tais como concisão, objetividade, clareza, correção gramatical, há que se elogiar o seu estilo fluente, colorido, vívido, que dá ao livro certo sabor de romance, inclusive pelo fato de o autor ter intercalado às narrativas e descrições vários diálogos, em que tentou reconstituir, da maneira mais fiel possível, como ele fez questão de frisar, o discurso direto de vários personagens que lhe cruzaram o caminho.
Embora o livro seja um depoimento memorialístico, e que por essa razão pudesse ser muito subjetivo e pessoal, podemos lhe aferir a objetividade e mesmo a imparcialidade, porque algumas afirmativas são corroboradas por transcrições jornalísticas e de livros, e porque, do meu conhecimento, o seu livro nunca foi refutado e também porque o seu autor sempre teve uma reputação de homem veraz e honesto, tanto na vida pública quanto na particular, não obstante todos estejamos sujeitos a eventuais equívocos, ainda que circunstanciais ou diminutos.
A obra, enriquecida pelos textos preambulares de Dílson Lages Monteiro, Maria do Socorro de Castro Melo Tajra e Dirceu Arcoverde (1ª edição), tem um prólogo, em que Leônidas faz uma espécie de resumo de sua trajetória de homem público, e das principais razões que o levaram a escrever suas memórias, a que se seguem os trechos de seu caminho, de caráter pessoal, titulados: Meus pais, Infância, Um parêntese necessário, Adolescência e Juventude. A partir de Maturidade – vida profissional (ligeira referência) – Vida Pública – Política, as demais partes pouco se referem a sua vida privada, tais como vida de casado, paternidade, amizades pessoais, lazer, vida social etc. Ou seja, quase tudo que é relatado, após Juventude, diz respeito a sua vivência e embates políticos.
Muito me comoveu a parte Infância, em que ele narrou a sua profunda e pura amizade ao menino Zuza, que foi companheiro de brincadeira, estudos e escola. Nesse trecho, o leitor pode ter uma ideia de como eram os costumes, a infância, as brincadeiras, o lazer e o estudo numa cidade interiorana do porte de Barras. Esse capítulo é movimentado, cheio de diálogos, e nele são descritas as lutas de seu pai, o comerciante Regino Lopes de Mello, a sua postura de aluno exemplar, ante uma escola simples, de alfabetização, dirigida por um professor rígido, o Mestre Freitas, que não se escusava a fazer uso do “instrumento didático” palmatória, contudo eficiente nos limites de seu grau elementar de magistério.
São comoventes, como disse, certos episódios da amizade entre os meninos Zuza e Leônidas, especialmente os que se referem à doença e morte inesperada e precoce de Zuza. O trecho Infância, por certos detalhes, por certos pormenores dignos da boa romancística, me fez lembrar, sem que eu esteja exagerando, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fico com a impressão de que Leônidas deve ter lido alguns bons romances ou ao menos algumas das melhores obras memorialísticas e autobiográficas.
Fiquei com a certeza, da leitura dessa e de outras partes do livro, de que poderia ter escrito um bom romance, se a isso tivesse se dedicado no outono de sua vida. Essa convicção me vem do seu estilo límpido, da sua habilidade na urdidura de diálogos e entrechos, bem como em várias descrições da paisagem, revestidas de beleza e emoção, em que não lhes falta o condimento de verdadeira prosa poética. Também não lhes falta uma dose bem medida de pitoresco ou pinturesco, como neste trecho:
“(...) eu me distraía também vendo as mulheres que iam apanhar água e voltavam com as latas na cabeça, equilibradas sobre rodilhas de pano. Voltavam sempre aos grupos, com os braços inteiramente livres, as latas em perfeito equilíbrio. Passavam conversando alto, às vezes gesticulando. Eu procurava distinguir a melhor equilibrista e escutava as conversas. Além das mulheres, havia a turma de moleque que passava tocando jumentos muito mansos com cargas de ancoretas. Todos iam buscar o líquido precioso para o abastecimento da casa no dia seguinte. Alguns assobiavam músicas que eu conhecia. Isso tudo me distraía.”
Em 8 de março de 1912, quando tinha em torno de 15 anos, após insípida e incipiente experiência como balconista do comércio de seu pai, Leônidas foi prosseguir os seus estudos em Teresina. Relata as peripécias da viagem, em lombo de animais, em época de forte invernada, em que o Marataoã estava bravio e transbordara de seu leito, em alguns pontos se alargando por mais de dois quilômetros. Assim, já não acredito serem hiperbólicos os versos do poeta barrense Pedro Alves Furtado, quando comparou o Marataoã a um imenso mar oceano. É que o vate se referia ao rio na época das rigorosas chuvaradas. Seu pai, aconselhado a adiar a viagem, teria perguntado em resposta: “Eu já enfrentei as águas do Amazonas, como não enfrentarei as do Marataoã?”
Descreve, com perícia, beleza e emoção, as dificuldades dessas perigosas travessias, a beleza deslumbrante desses alagadiços e lagoas, dos tabuleiros e colinas, em que as matas e as carnaubeiras se refletiam no espelho das águas. Cita as fazendas e as casas em que pernoitou nessa longa e cansativa viagem. Mais de duas décadas e meia depois meu pai faria essa mesma viagem, quando foi ser aluno interno do Diocesano, numa época restritiva em que mui poucos piauienses conseguiam cursar o antigo ginásio.
Já me alongando em demasia, devo pisar no freio. Contudo, ainda algo desejo acrescentar. Como disse, senti falta de que o autor pouco tenha falado de sua experiência de marido e de pai, sem entrar, claro, em intimidades que só lhe dizem respeito.
Tendo ele tido a coragem e a sinceridade de falar de suas rivalidades e mesmo inimizades políticas; de abordar o rumoroso e controvertido episódio da aposentadoria compulsória dos desembargadores José de Arimathéa Tito, Esmaragdo Freitas e Simplício de Sousa Mendes e de relatar as suas dificuldades administrativas e políticas, e até mesmo as suas aperturas financeiras e decepções, era de se esperar que ele fosse esclarecer os episódios da queima de palhoças e casebres no período de seu governo.
Contudo, nada falou sobre esses “fogos”, que seus detratores lhe atribuíam, de forma direta ou indireta. Soube, já não me recordo se através de leitura ou de conversa, que ele chegou a anunciar a um seu parente que iria revelar a verdade. Mas depois voltou atrás, alegando que não queria magoar ou denegrir a memória de ninguém.
Também ouvi dizer que um dia, de forma inesperada, muitos anos após esses incêndios, o major Evilásio Vilanova, figura por muitos considerada um tanto sombria e sinistra, a quem esses crimes eram imputados, quando ele comandou a Polícia Militar do Piauí e a chefia de Polícia (Segurança Pública), o procurou em sua residência, e lhe pediu para conversarem em particular, sem o testemunho de ninguém.
Nada se soube dessa conversa, já que Leônidas lhe manteve o mais absoluto sigilo. Maria Genovefa de Aguiar Morais Correia, no seu livro memorialístico Genu Moraes – a Mulher e o Tempo, também estranhou o silêncio de Leônidas sobre esse assunto, que ainda hoje causa controvérsias e especulações, conforme se pode ler na página 363:
“Em seu livro Trechos do meu caminho, publicado em 1976, no governo Dirceu Mendes Arcoverde, pela Comepi – Companhia Editora do Piauí, extinta no governo Wellington Dias, o Dr. Leônidas de Castro Mello fala sobre praticamente tudo que aconteceu no período, primeiro como governador constitucional, eleito pela Assembleia Legislativa do Estado, depois como interventor federal, indicado pelo presidente Getúlio Vargas. Mas não toca no assunto dos incêndios.
O Deoclécio Dantas, que era presidente da Comepi na época da publicação do livro, me disse que originalmente Trechos do meu caminho tinha um capítulo falando sobre os incêndios.
O livro estava sendo preparado quando, um dia, o Dr. Leônidas de Castro Mello entra em sua sala de trabalho, e pede para revê-lo. Ali, na sua frente, ele tirou o capítulo relativo ao assunto. Sobre seu ato, explicou que estava fazendo aquilo porque um dos acusados de ser mandante dos incêndios acabara de falecer e ele não queria atingir a memória do morto. Ora, quem faleceu na época, que poderia ser citado na obra, foi o Dr. José Cândido Ferraz. Ele foi a Cleveland, nos Estados Unidos, para se tratar, e lá faleceu em 23 de junho de 1975.”
Em suas memórias, Leônidas narra dois fatos curiosos, que, pela sua estranheza, podemos entender como pertencentes ao reino do sobrenatural. Talvez ambos possam ter contribuído para que ele tenha se tornado espírita. Um foi a profecia, feita pelo estudante Clodoaldo Martins Ferreira, ainda em sua adolescência, de que ele governaria o Piauí. O mais curioso é que o “profeta” nunca teve esse dom premonitório, nem antes e nem depois desse augúrio referente a Leônidas. E o outro, acontecido mais ou menos na mesma época, foi a visão do espírito de sua irmã, falecida precocemente. Acredito que os dois fenômenos possam ter aumentado a sua fé em Deus e na espiritualidade.
Sempre acreditei que Leônidas de Castro Mello foi um homem honrado, e o próprio Simplício Mendes, seu desafeto, veio a admitir isso anos mais tarde. Por isso, nunca acreditei que ele pudesse ser o responsável pelos incêndios dos casebres. Foi um homem honesto em sua vida pessoal e na condição de governante do Piauí, tanto que logo ao deixar o governo, sem o seu subsídio, passou a enfrentar dificuldade financeira, depois superada. E foi um homem bom, até porque a sua religiosidade a isso o induzia, assim como a sua índole.
Leônidas tinha muito o que contar, e contou. Tinha muito o que dizer, e disse. E, principalmente, soube contar. Assim, as suas memórias são quase o romance de sua vida, e podem ser lidas com prazer e emoção, porque vertidas em bela fatura literária.