[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Seria completamente tolo quem dissesse que a tortura não funciona para arrancar informações. Funciona nos filmes e funciona fora deles. Aliás, deveríamos saber que funciona mais na realidade que nos filmes.  O psicanalista Contardo Calligaris sabe disso. Mas ele sabe mais que isso. Ele conhece bem a natureza humana e pregou uma peça em alguns com o seu artigo a respeito da tortura (Para que serve a tortura? Folha, 21/02)

Calligaris é um humanista. Quem leu o seu texto e dali tirou a conclusão de que ele defende a tortura ou que o texto, em algum momento, a justifica, deveria ler mais vezes. Aliás, fiquei pasmo ao ver que jornalistas veteranos acreditaram que ele estava defendendo a tortura. O que Calligaris fez foi um exercício muito válido de filosofia. Admitindo que a tortura funciona (e isso pode ser tomado em hipótese), Calligaris mostra a necessidade, para aqueles que são contra a tortura, de encontrar justificativas morais para proibi-la. Falando no meu jargão de filósofo, a ideia de Calligaris é a seguinte: uma ética utilitarista (1) – que, no caso, diz que para salvar muitos vale prejudicar uma pessoa – não poderia ser utilizada por quem é contra a tortura, e deveríamos, então, encontrar uma outra ética.

Ora, é claro que a primeira ideia de quem não pode endossar uma ética utilitarista, em nossos tempos, é se deslocar rapidamente para uma ética kantiana. Desse modo, quem não defende a tortura poderia dizer: é falta moral não considerar o homem um fim em si mesmo, portanto, a tortura é o supra sumo da degradação humana. No entanto, para que essa alternativa não salve de modo fácil aquele que é contra a tortura, Calligaris volta à carga e termina seu artigo com um exemplo célebre: uma criança é sequestrada e vai morrer por falta de ar, enquanto que você pegou o sequestrador. O que você faria, torturaria ou não o sequestrador a fim de obter o paradeiro da criança?

Calligaris não fala mais nada. Imagino que foi para o sofá olhar sua arapuca. Não demorou muito para caírem ali dois passarinhos, ou melhor, um marxista e um coelho. Safatle veio com tudo para a arapuca, e ficou preso pelo não entendimento. (Questão de método, Folha de São Paulo) Marcelo Coelho também caiu, mas não por falta de inteligência e, sim, por mais inteligência que o necessário. (O mundo de Jack Bauer, Folha de S. Paulo)

Safatle não cita Calligaris. Parece que isso já se tornou um estilo próprio dele. Deveria citar, no caso, porque acabou sendo ofensivo ao dizer que quem coloca a pergunta que Calligaris colocou tem intenções similares às daquela pessoa que coloca a pergunta sobre se negros são tão inteligentes quanto brancos. Essa agressão gratuita de Safatle a Calligaris deve ser deixada de lado. Sabe-se lá por qual razão ele fez isso. Agora, o que deve ser evocado é que ele diz que a pergunta de Calligaris não é válida, pois é pergunta “de laboratório”, e que “do ponto de vista da filosofia moral”, tal exercício seria “pueril”.  Não, não é pueril. Pueril mesmo é Safatle não compreender a pergunta e, pior ainda, não saber que a filosofia moral seria toda pueril caso ele estivesse certo. Isso porque a filosofia moral coloca, sim, questões desse tipo, com tal dramaticidade aparentemente descontextualizada. Não são poucos os filósofos que colocam as coisas nesses termos e a enfrentam. Qual a razão pela qual a filosofia moral coloca uma tal questão? A razão é simples: sendo ou não uma questão “de laboratório”, ela é válida para que possamos ver qual ética dá cobertura para os que se veem em situações dramáticas. Isso porque é em situações dramáticas que dilemas éticos aparecem. Sem situações críticas, a ética devolve o homem ao tédio. Ela se põe como ética quando o homem está na parede, premido diante da necessidade e urgência de decisões.

Safatle ridiculariza a questão porque ele não possui qualquer resposta para uma ética que questione o indivíduo humano. Como herdeiro da conversa marxista, ele se retira para o jargão da esquerda em que os homens não tomam decisões. Desse modo, ele faz um zigue zague no texto para entrar pela questão do Estado torturador, e assim se perde, sem conseguir entender o que é que Calligaris estava objetivando com sua pergunta.

O caso de Marcelo Coelho é diferente. Ele entende Calligaris, mas ele rejeita a hipótese de que a tortura funciona e, ao fazer assim, remete a uma outra dimensão. Claro, é uma saída inteligente. Marcelo Coelho mostra que a situação que Calligaris aponta pertence à ficção, aos filmes, e que se assim é o caso o melhor seria trocar de canal. Afinal, uma situação dramática como a posta por Calligaris não nos levaria a nada, ela jamais se colocaria para nós, em nossas vidas, e assim não nos ajudaria a nos posicionar realmente contra ou a favor da tortura de um modo interessante.

No meu entendimento, o excesso de inteligência de Marcelo Coelho o atrapalhou. Ele foi bem esperto ao dizer que “trocaria de canal”, mas, enfim, ele perdeu a chance de enfrentar a questão de Calligaris que, antes de tudo, vem do campo da psicanálise e da filosofia. Em suma: Calligaris estava convidando o leitor a investigar a natureza humana, digamos assim, mas Marcelo Coelho não quis aceitar o debate proposto.

Bem, vamos deixar Marcelo e Safatle de lado. Por que não aceitar a investigação de Calligaris? O que há para temer nela? Aceito-a, claro, principalmente porque ela é autenticamente filosófica.

Concordo plenamente com a premissa de Calligaris, ao menos no que se refere ao modo como ele a colocou no artigo: a tortura funciona e, se não funciona de todo, ao menos dá grande impressão para todos nós que funciona. Por isso mesmo, independentemente de sermos a favor – como somos – de todo ato contra a tortura, o que está em jogo não é a eticidade e a legalidade da tortura. O que está em jogo, para sermos respeitosos a Calligaris, é o que nós fazemos se somos pessoas com algum parentesco com a criança que está há minutos de morrer asfixiada. O que eu faria? Não sou Marcelo Coelho e Safatle. Não tenho razão para não enfrentar o que sou. Não tenho nenhuma dúvida que se fosse o Pitoko que estivesse preso, eu não mudaria uma vírgula de minha decisão de achar a tortura imoral e impossível de ser legalizada, e ao mesmo tempo eu pularia na garganta do sequestrador na minha frente. Eu o torturaria não só para obter informação do paradeiro do Pitoko, mas também para obter prazer. Aliás, depois de salvar o Pitoko, eu voltaria a ele, e o torturaria mais um pouco. Finalmente, caso eu tivesse garantias de que sairia ileso, eu o mataria vagarosamente, infringindo o máximo de dor possível a ele.

Estaria eu deixando de lado o filósofo, nesse caso, e agindo como um indivíduo voltado para seu próprio umbigo? Não! Eu faria tudo isso sabendo perfeitamente que, naquele momento, o filósofo que poderia ajudar a construir regras contra a tortura, estava quebrando tais regras.  Qual o problema? Não é assim? Afinal, pago meus impostos e então colaboro para que o parlamento faça um monte de regras que eu, mesmo concordando com elas, as quebro e as subverto no meu cotidiano. Não é assim mesmo nossa vida? Nesse caso, mais ainda. É meudireito ser um fora-da-lei. Não é meu direito, em hipótese alguma, eu não pagar o funcionamento do parlamento, se eu sou um democrata. Mas, mantendo-me cidadão e, no caso, filósofo, posso ao menos uma vez ser um fora-da-lei. Nesse caso, meu amor pelo Pitoko me faria torturador e não só isso, também um vingador cruel.

Temos de ter uma ética contra a censura, exatamente porque temos uma moral que a permite, uma vez que todos nós podemos achar razões boas para torturamos – e assim fazemos.

© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

(1) A ética utilitarista, de Bentham e Mill é a base comum da ética moderna, principalmente no mundo-anglo saxão. Em nosso mundo, apelaríamos mais para uma ética kantiana, mas apenas verbalmente. O utilitarismo está ligado a um hedonismo e, enfim, a uma nova busca de eudaimonia que faz sentido para nós todos.