[Dílson Lages Monteiro]

O  tio-avô  me disse que se tratava de um lugar inóspito. Isolado. Rabisquei em minha imaginação o que ia descrevendo em sua fala,  cheia de uma energia positiva, mesmo em falando das precárias condições para se viver na região. Estar com ele significava oportunidade de aprender novas lições, especialmente,  de vida. E eu ia aprendendo, inclusive sobre as paisagens do chão onde nasci.

Por muitos anos, programei ir até à antiga localidade. Meu pensamento via um recanto seco, totalmente desabitado. Seco e tenebroso. Dele se falava, principalmente, citando um poço abandonado. A bússola seria ele,  o velho poço, mas também as ruínas ou o alicerce da velha casa.

Foram muitos os anos, depois do relato do tio-avô, para que as oportunidades favorecessem  a viagem. O primo Alcidinho, profundo conhecedor dos meandros de sua terra, me encorajou e, ao lado de outro desbravador de veredas, Chicó Lustosa, octogenário e lúcido de vigor e memórias, embarcamos   em um táxi. Percorremos a estrada vicinal mal-conservada, ouvindo o taxista se reclamar da distância e dos caminhos da mata.

O veículo que punha  o pão na mesa do jovem motorista era uma velho fiat, desgastado pelos percursos de buracos e trepidação, percursos  como o que percorríamos com os sentidos vivos, até a extrema entre os municípios de Barras e Miguel Alves. O taxista reclamava insistentemente e mais reclamou quando chegamos à ladeira da antiga localidade.

Muitas pedras soltas. Tivemos que descer e fazer o restante do percurso  a pé  até o ponto final, que não se sabia se de fato representava o início de nossa caminhada. Mas era. Um passante confirmou: estávamos no que sobrou da antiga Fazenda Cágados, a origem da numerosa  família Borges Leal Rebelo.

A felicidade de Chicó Lustosa também reforçou  aonde levavam aqueles caminhos. E pôs-se ele a contar histórias e a nominar a localização da casa de cada morador  e de suas respectivas famílias, assim que entramos em pequena estrada de areia, certamente um caminho para carroças. Ele lembrava com entusiasmo o nome dos antigos moradores que se assentaram  no pé do morro, de onde avistávamos as várzeas, outrora, campos de arroz, agora cobertos de capim, em terras transformadas em  assentamento do INCRA.

Aliás, quase todas as grandes propriedades de antigamente, nos caminhos em que pisávamos, estavam na posse  de alguma associação de moradores assentados, sem que isso se revelasse verdadeiramente em liberdade. Continuavam  os mesmos  desassistidos de sempre.  Muitos deles aviltados pelo trabalho sazonal noutros estados. Muitos deles, somente em casa no curto período do plantio e colheita das roças. Os mesmos desassistidos, agora em pequenas comunidades abandonadas, na ilusória liberdade da posse de uma gleba de chão, o que, ainda assim, já é alguma conquista.

Nos escombros da antiga Fazenda Cágados, meus  olhos se encheram de curiosidade e me vi revivendo cada história que me contaram sobre o lugar. História de vazios, preenchida pelo que conhecia sobre a vida no campo. Um dia meu pai vira, ali, a visita de Haroldo Amorim, descendente dos velhos troncos dos Rebelos, à cata de memórias sobre a história da vida privada de sua família.  Comentara por dias seguidos as impressões de Amorim, destacando o apreço que nutria a quem valorizava o patrimônio histórico.

Ali, eu tateava com os olhos cada pedaço da paisagem. As marcas do que restou do poço, soterrado para a produção de carvão; os alicerces da antiga casa de pau-a-pique, onde me contaram morou aquela a quem se chamava de vovó  Madá. Aquela que ajudara  a criar os filhos da irmã, após a morte prematura no auge da juventude.

O poço e as ruínas da casa velha ficaram nos pedaços de pratos de porcelana que indicavam, amontoados,  um tempo  que passou.  Ficaram em mim como uma marca de nascença.  Quando vejo um  “baixão”, me reporto aos Cágados dos Rebelos, aos “baixões”  de lá, onde o isolamento é a beleza da lembrança.