Cadê a boa literatura brasileira?
Em: 19/10/2009, às 10H45
A grande literatura brasileira tão cultuada já não existe mais. Basta reparar no conteúdo das obras literárias lançadas recentemente ou mesmo as destacadas por prêmios como Portugal Telecom, Jabuti, Passo Fundo, Machado de Assis e tantos outros. E é suficiente dar uma olhada na lista dos livros mais vendidos de ÉPOCA desta semana para se dar conta de que não há mais brasileiro “de prestígio” no rol dos mais vendidos. Entre os best-sellers, dominam a ficção-espetáculo, preparada para virar superprodução de Hollywood, ou então a autoajuda e os títulos pseudo-úteis. Consultar a lista é desembarcar na repetição das fórmulas e na ausência de ideias. É chick lit e vamp lit pra cá, espiritualismo e fantasia pra lá.
As editoras também não se esforçam. Não apostam em bons autores, preferindo investir naqueles escritores que deem retorno, se não em vendas, ao menos em supostas garantias de espaços nos meios de comunicação. São vaidosos encilhados, prontos para atender seus editores espertalhões. Ora, isso não é arte, e sim o mais reles tráfico de influência. Conheço autor que vive apenas do escambo de elogios, resenhas positivas e edições bonitas. Os salões literários estão repletos deles. Aliás, hoje os salões deram lugar às tendas, aos grandes circos em que os escritores cobram entrada para ler suas baboseiras com expressão de iluminados. As festas literárias são prova da situação. E o público se deixa enganar pelo show lit. Os autores escrevem para desfilar como celebridades. E usam de todos os recursos tecnológicos que têm à mão, de twitter a blog, passando por redes sociais de leitores. Leitor, cuidado com o escritor que se aproxima de você. Pode ser um spam...
É cansativo pensar no assunto, mas não há maneira de explicar por que a literatura nacional deixou de ter importância e hoje perde até para as de Angola e Moçambique, sem falar nos autores portugueses, hoje a maior fonte de inovação lusófona. Nós, brasileiros, perdemos a mão para elaborar boas narrativas – e o pé da História. Estamos atrás de tudo o que se produz no mundo. Parece que não há mais tema a abordar, parece que tudo ficou muito mesquinho para o ego gigantesco dos narradores.
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Voltemos aos mandarins premiados em concursos literários. Não vou citar nomes para não dar cartaz nem direito de resposta ao ínclito ficcionista. São trabalhos em geral medianos, desprovidos de uma visão de mundo além da corriqueira e estilos que imitam os antigos. Hoje a literatura brasileira se resume a genéricos de mestres do passado. Há as contrafações de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e por aí vai. Alguém já disse que os grandes autores não plagiam, mas roubam mesmo. Isso quer dizer que quem é bom sabe ocultar aquilo que o crítico Harold Bloom chama de “ansiedade da influência” (sei lá por que expressão traduzida no Brasil por “angústia da influência”). O leitor atual se sente até constrangido quando depara com paráfrases ou mesmo passagens inteiras de obras remotas. Os novos gênios subestimam a nossa inteligência... acham que só eles sabem de onde vêm suas citações. E essas confrarias de ilusionistas verbais ganha centenas de milhares de reais com os prêmios. Quando não ganham, já não logram ocultar a fúria – como recentemente vi acontecer com um notório autor, que esperava ganhar uma boa grana com seu prestígio de colunista de jornal, mas foi derrotado e se retirou do recinto batendo porta.
No Brasil das vaidades das belas-letras, pratica-se hoje uma literaturazinnha que se autodenomina “urbana”, um arremedo de corrente de consciência alimentado pela onda onanista dos blogs e da rodinha de amigos dos facebooks da vida. Porque ninguém mais lê blogs além do próprio autor. É o processo egocêntrico de lamber a cria ad nauseam. Já escrevi isto, mas repito, até que alguém ouça: trata-se da literatura auto-sustentável que dispensa o leitor, o crítico e até a posteridade... porque esses blogueiros produzem até mesmo seus próprios obituários elogiosos. Se não precisam de nós, para que perder tempo com eles? A pergunta é pertinente. E eu respondo que ainda deposito esperança na reaparição de boa literatura neste país.
Por isso, tento me manter informado quando os nomes consagrados lançam seus livros, e trato de ler suas obras mais recentes. Nesta semana, chegam coincidentemente às livrarias dois títulos de medalhões que, de certo modo, polarizam as tendências da narrativa nacional: volume de contos Violetas e pavões (Record,128 páginas), do paranaense Dalton Trevisan, e o romance O albatroz azul (Nova Fronteira, 238 páginas), do baiano João Ubaldo Ribeiro. Dalton ficou famoso nacionalmente como o artífice da elipse, do microconto, da história urbana reduzida a um ponto. Ubaldo, o símbolo do escritor brasileiro semi-rural, praiano, espichado e lento nas suas frases e considerações. Dalton inspira aqueles que exaltam o erotismo e a violência da grande cidade. Ubaldo, os jovens narradores de um tal “Brasil profundo”. Infelizmente, apesar do passado glorioso e da pletora de apóstolos, nem um nem outro diz a que vem agora. Na realidade, ambos expõem uma tremenda crise de inventividade.
Dalton Trevisan, de 84 anos, fez escola na década de 60, com suas novelas e contos com sabor sado masoquista. Nelsinho, o Vampiro de Curitiba, é o seu melhor personagem. Seu tema favorito era a guerra conjugal. Mas, quando os casais se desfizeram com a liberdade sexual, ele passou a cultivar uma espécie de estética do estupro e da elipse. Aos poucos, o que era estilo conciso se tornou uma nauseabunda repetição de situações estereotipadas – que muitos chamam de estilo. Sua concisão antiga degradou numa espécie de língua de índio, monossilábica e fetichista. Aquilo que era erotismo resulta agora em quase baixa pornografia. O reductio ad absurdum de Dalton gerou não a esperada reticência, mas o palavrão mais chulo. É uma pena ver como o célebre Salinger curitibano se converteu em uma caricatura da estética que sempre pregou, povoando seus contos de perversões sexuais hoje banalizadas e entediantes. Violetas e pavões é uma coleção de contos licenciosos, pulp fiction para alimentar os baixos instintos do público. Dalton Trevisan devia virar blogueiro. Talvez ali pudesse cortar as palavras até chegar a um resultado melhor. Não sei. Fiquei constrangido quando terminei o livro. A única lição (não sei por que temos de tirar lições de literatura, mas vá lá), a única lição é que o leitor precisa evitar Curitiba como cidade para viver. Exagero? Sei lá. Nunca morei lá para saber. Os curitibanos que me esclareçam. Dalton Trevisan é a imagem de um intelectual que se degradou e decaiu morando em uma cidade provinciana. É um Marquês de Sade domesticado e onanista. Bem que ele podia voltar a assustar como em O vampiro de Curitiba, agora que os dentuços voltaram à moda.
Quem sabe Ubaldo me trouxesse a luz? Afinal, ele pode ser considerado o herdeiro de Jorge Amado: adora uma paisagem sensual e pitoresca da Bahia, tipos cômicos com nomes improváveis e a narrativa barroca, uma sucuri metafórica cuja cauda produz sinuosidades e, no fim, acaba mordendo a si própria – e aniquilando o leitor na confusão de suas entranhas. Eu gosto desse tipo de maneirismo. Adoro a novela Sargento Getúlio (1971), de Ubaldo (que ele próprio traduziu para o inglês – e me presenteou anos atrás). Gosto quando o narrador se perde nas próprias cismas, criando um universo paralelo. É assim Campos de Carvalho, o grande surrealista dos anos 50 e 60, pouco valorizado, Autran Dourado, com sua mineirice flaubertiana tão subestimada, e um autor ainda mais esquecido: o pernambucano Hermilo Borba Filho, autor de grandes painéis fantásticos de um Brasil sufocado pela ditadura - onde só o hermetismo servia como arma de resistência. Esperei todos esses anos para ler mais um Ubaldo. E dei com os burros na ilha.
O albatroz azul é ambientando na ilha de Itaparica, onde Ubaldo nasceu, em 1941. Depois de um longo bloqueio (seu último romance, Diário do farol, é de 2002, isso depois de outros cinco anos de crise criativa, que anteciparam outros oito anos de pavor ficcional...), ele voltou à ilha para escrever o livro. Amigos seus, como António Lobo Antunes, chamam-no de “preguiçoso”. Na realidade, é o mais angustiado dos autores brasileiros. Isso porque ele ambiciona voos estratosféricos, e a queda na realidade é um tombo muito grande. Com sua viagem sentimental a Itaparica, a expectativa era de que produzisse um romance surpreendente, como O sorriso do lagarto (1989), inquietante história de crime escrita e passada também na Ilha. Que nada: O albatroz azul voa tão baixo que dá tristeza. Conta como um ancião, Tertuliano Jaburu (que nome infeliz...) envelhece dentro da própria velhice, e quando lhe nasce um neto talvez a vida ganhe um sentido, mas não suficiente para redimi-lo da própria mediocridade. É um romance sobre a resignação de envelhecer. Gostaria de encontrar um Ubaldo mais alegre, sem essa amargura que o livro faz transparecer...
Pelo jeito, se nem os velhos mestres são capazes de apresentar algo estimulante, meu depósito de esperança na literatura brasileira vai continuar a fundo perdido.
Publicado originalmente na Revista Época, em 29.09.2009