Brigara com um velho amigo. Contrariando norma bíblica - que até tentava respeitar, a que mandava não julgar para não sermos julgados -, julgara que ele andava rezando demais. Mesmo sendo, ou melhor, por ser um religioso quase carola, entendia, e lhe fizera ver essa sua opinião, que não precisava invocar tanto o nome de Deus, rogar e implorar com tamanha insistência aos santos em que confiava, por qualquer servicinho divino; ainda que houvesse agradecimento quando do atendimento ou não dos pedidos formulados.

                Dias antes da última e feroz discussão, um filho dele adoecera e lá fora ele fazer novena, implorando às potestades divinas pela cura do garoto; enquanto o levava aos melhores médicos da praça. Após tomar os medicamentos prescritos, o jovem sarou.  O pai, a quem perguntasse sobre o que fizera o adolescente restabelecer-se tão rapidamente, dizia que o sucesso se dera graças à onisciência do Todo-Poderoso, que a estendera aos médicos e a seus santos protetores.

                Verdade é que perdia a paciência depois de ouvi-lo enfatizar o nome de Deus, segundo seu julgamento, em vão. Às vezes, ironizava: se você acredita tanto que Deus e os santos sempre vêm em seu auxílio, por que não deixa os médicos cuidarem daqueles que, de fato, acreditam e precisam deles?

                Era sua opinião, não do amigo, que, como ninguém sabe o que Deus tem reservado para nós, não há nenhum mal em discutir com ele, brigar mesmo, quando algo que nos sobrevém parece injusto ou inadequado. Entendia que o mal maior em cumular o Todo-poderoso de pleitos, preces e rogos - esquecendo-se ou não querendo admitir que possa existir alternativa para a repartição da fé e da confiança -, está no fato de que, por conta de essa entrega absoluta às decisões divinas, não raro, fechamo-nos para o que Ele possa estar querendo dizer ou nos comunicar com o silêncio ou com exemplos. Quando nossas expectativas são contrariadas, e como não há mais a quem recorrer, não é incomum revoltarmo-nos com Deus.

O amigo não se zangava diante de suas diatribes. Tudo o que os médicos, os estudiosos, os cientistas descobrem ou criam, o que qualquer um de nós faz ou deixa de fazer, somente acontece porque o Senhor quer e permite, falava sempre, e ele revidava, irascível: quer dizer que Deus não confia em ninguém, tanto que jamais nos deixa decidirmos sozinhos? Ou será que você é daqueles hipócritas que não aceitam que o homem pode provar seu amor, a fé em seu Deus, sem ter que, explícita, pública e, permanentemente, ficar lhe demonstrando dedicação reverencial de quase capacho?

                O cara era duro na queda, percebia-se por suas réplicas. Não coloque em minha boca palavras ou expressões em que sequer pensei, começava. Deus confia tanto em nós e, mais que isso, perdoa-nos tão piedosamente, que releva ou não leva em conta atos idiotas oriundos de sujeitos que se julgam esclarecidos; desconsidera ações demagógicas promovidas por muitos de nós quando, sem ponderarmos palavras ou ações, não raro, para parecermos fortes, independentes e decididos, passamos a dizer asnices e tolices que atentam contra as decisões divinas ou outros ensinamentos e sabedorias, basicamente, por não termos como os refutar racionalmente; bobagens e tolices, essas, que costumam não resistir à menor das provações.

                E continuava: não é incomum Deus ser requerido, veementemente, pelos que, em público, se dizem céticos ou críticos de assuntos sobrenaturais ou de mais difícil explicação, diante de uma dor de cabeça mais intensa que as já sofridas, um mal-estar inexplicável. Nesses casos, provavelmente, o excesso, até involuntário, de valorização das coisas materiais, a negação descabida ou egoística de que existe algo em que se apoiar, além daquilo em que podemos tocar, ver ou provar, é que leva a certas formas de desespero existencial. Os que creem e, portanto, buscam compreensão para o que sua parca inteligência racional prefere ou não pode assimilar, invariavelmente, saem-se melhor em momentos de pressão extrema ou de exacerbada depressão. E concluía: para mim, Deus, o Criador, o Todo-poderoso é esse apoio. Dizer mais o quê?

                Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal ([email protected])