Hugo Lenes Meneses – Doutor em Literatura pela UNICAMP
Francílio B. Tridade Moraes – Mestre em Letras pela UPFI
INTRODUÇÃO


Massaud Moisés, na sua obra A Literatura Portuguesa ( 1985. Pág. 18), afirma que “a poesia é o melhor que oferecer a Literatura Portuguesa (...) graças a alguns poetas vocacionados (...), como Camões, Bocage, Antero, Fernando Pessoa, entre outros”.

Dentre esses poetas, os maiores, sem sombra de dúvida, são Camões e Fernando Pessoa, que deram origem aos dois  grandes ciclos poéticos lusitanos, merecedores dos epítetos camoniano e pessoano.

Neste trabalho, objetivamos fazer uma análise comparativa entre algumas passagens de Os Lusíadas , de Camões, e o poema Mensagem, de Fernando Pessoa.

 nálise comparativa entre Os Lusíadas e mensagem

 

Os Lusíadas, de Camões, e Mensagem, de Fernando Pessoa, constituem duas das maiores realizações épicas da Literatura Universal: o poema camoniano é a mais alta epopéia renascentista, enquanto o poema pessoano é uma grande epopéia dos tempos modernos.

Embora se encontre cronologicamente distanciada de  Os Lusíadas,  a  Mensagem , é tão épica quanto o poema de Camões: “identifica-os não a forma externa, o emprego do decassílabo, a presença do maravilhoso, etc., mas a comum intenção de abranger a multiplicidade dinâmica do real físico e  espiritual numa só  obra, numa só unidade.” ( MOISÉS, 1982. pág. 187).

Mesmo apresentando a mesma essência épica,  Os Lusíadas e a  Mensagem divergem na maneira de tratar o mesmo tema, qual seja, a História de Portugal: a epopéia camoniana, por produto da época áurea portuguesa, isto é, o período das Grandes Navegações, colocava Portugal na vanguarda da Europa, na quase totalidade de seus feitos históricos. Por outro lado, por Ter sido elaborada num contexto histórico-cultural-contemporâneo, quando Portugal        encontra-se numa posição desfavorável em relação às  outras nações européias, a  Mensagem  apresenta-se como uma epopéia crítica, questionadora da matéria narrada, o que pode ser visto a partir dos seus primeiros versos, que, através de uma alegria, mostra um Portugal decadente e passadista. “Fita, com olhar sphyngico e fatal, / O Occidente, futuro do passado. /  O rosto com que  fita é Portugal.” (PESSOA. S.d. pág. 71)

A Mensagem, apesar da sua criticidade, também é, como a  epopéia de Camões, um poema de exaltação  patriótica, embora não seja o hino de ufania em que se constituem  Os Lusíadas. Esse patriotismo do poema Mensagem, além de ser visivelmente crítico, é, místico e mítico. A Mensagem é um texto místico porque nele os destinos da Pátria dependem, acima de tudo, das leis divinas, da vontade de Deus, da sobrenaturalidade: ´DEUS QUERE,  o homem sonha, a obra nasce.”( PESSOA. Op. Cit. Pág. 78). Tal clima de misticismo que envolve todo o poema pessoano manifesta-se logo a partir do próprio título da obra – Mensagem – reveladora do papel de oráculo que o poeta assume, no intuito de transmitir a seus irmãos ( a quem ele reverencia no final do poema com a saudação “Valete , Frates.”) uma mensagem (uma profecia?), resgatando uma antiga   denominação de poeta, qual seja, a de “vale”, aquele que faz vaticínios, profecias, sendo significativo observarmos a etimologia do vocábulo mensagem: do baixo latim “missus” (enviado), o que evidencia a missão do poeta de ser o porta voz do povo português, visceralmente místico.

Outrossim, a  Mensagem é um texto mítico dada a sua própria natureza de epopéia, já que, para esta, o mito é uma condição “Sine qua non”. Mas, não seria exagero afirmamos que o poema pessoano é ainda mais mítico que o poema camoniano, já que este foi escrito logo após as Grandes Navegações portuguesas (matéria temática das epopéias em questão), enquanto que a Mensagem  foi escrita quatro séculos depois delas, quando o fato histórico já se encontra bastante distanciado na dimensão temporal para tornar-se mito (condição básica da epopéia). Por isso, no texto de Pessoa, mais do que no Camões, a dimensão mítica, pela ação do tempo sobre os fatos, sobrepõe-se à dimensão histórica: vultos históricos como o Conde D. Henrique, D. Tareja, D. João Primeiro, D. Philippa de Lencastre, D. Duarte, D. Fernando, D. Pedro regente, D. Sebastião, Num Alves Pereira, O Infante D. Henrique, Bartolomeu Dias, Colombo, Fernão de Magalhães, Vasco da Gama, Bandarra e Antônio Vieira, hoje, mais do que nunca, são figuras consagradas como mitos. O próprio Fernando Pessoa, na Mensagem, afirma que “O MYTHO é o nada que é tudo.” (PESSOA. op. cit. Pág. 72) 

Tanto Camões como Fernando Pessoa, em suas epopéias, no desejo de colocar as façanhas marítimas lusitanas na mesma altura, ou até acima,  das lendárias navegações gregas, remetem, numa “mise-en-abyme “ à figura de Ulisses, herói da epopéia  Odisséia, do poeta  grego Homero, Camões, no canto I de Os Lusíadas ordena: “Cessem  do sábio grego e do troiano / As navegações grandes que fizeram; “(CAMÕES. 1974.pág. 21). Fernando Pessoa, na Mensagem, subintitulada a primeira parte do poema “OS CASTELLOS” de “ULYSSES”.

Os Lusíadas e a Mensagem incorporam o mito com vistas “a colocá-lo como  um instrumento a serviço da redenção nacional, transformando-se numa religião do patriotismo.” ( SANTOS. 1980. Pág. 21). Se não  vejamos: Camões dedica Os Lusíadas ao maior mito lusitano, D. Sebastião, o qual o poeta chama de : “Maravilha fatal da nossa idade, / (Dada ao mundo por Deus, que todo o mande / Para do mundo ao Deus dar parte grande); “(CAMÕES. op. cit. Pág. 22).Assim, Camões vê D. Sebastião como dádiva divina, um enviado de Deus para elevar o império de Portugal e, por isso, exorta-o , em “Os Lusíadas, a tornar-se o terror dos mouros da África, alimentando os sonhos de conquista desse monarca.

Nas esteira de Camões, Fernando Pessoa se confesse “Um nacionalista mítico e um sebastianista racional” (PIRES. 1969. Pág. 37).

Deste modo, uma  diferença entre a crença pessoana e a camoniana  é que Fernando Pessoa se diz um sebastianista crítico, o que está evidenciado na postura assumida pelo poeta na sua Mensagem. A terceira parte dessa obra, intitula “O ENCOBERTO”, um dos epíteto de D. Sebastião, versa sobre a crença messiânica sebastianística: Fernando Pessoa toma o partido de D. Sebastião, como símbolo da esperança de um  novo Portugal, potente, conquistador de riquezas materiais e / ou espirituais: “E outra vez conquistemos  a Distância - / Do mar ou outra , mas que seja nossa! “(PESSOA. op. cit. pág. 83).

Outra diferença entre a crença sebastianística  de Camões e a de Fernando Pessoa é que , em Os Lusíadas,  a figura messiânica de D. Sebastião está estreitamente associada a fé cristã: Camões, metaforicamente, denomina D. Sebastião de “(...) tenro e novo ramo florescente / De uma árvore, de Cristo mais amada /  Que nenhuma nascida no Ocidente, ... “ ( CAMÕES. op. cit. pág. 22), enquanto que, na Mensagem, a imagem de D. Sebastião, por ele significar, para o povo português, “o Desejado, o enviado, o esperado, o símbolo da figura messiânica por excelência”( SANTOS. op. cit. pág. 18), o “Emanuel”( o que está por vir), associa-se a imagem do messias judeu,  o qual, a exemplo de D. Sebastião, que ainda hoje representa a  figura do salvador da pátria lusitana, é esperado como o libertador, o salvador das nação judaica, o da terceira parte da Mensagem ( O ENCOBERTO): “Quando virás a ser o Christo / De a quem morreu o falso Deus, / E a dispertar do mal que existo / A nova Terra e os Novos Céus ? “( PESSOA. Op. cit. pág. 87)

Dissemos, a certa altura, noutras palavras, que Os Lusíadas constituem uma apologia das façanhas dos portugueses. Contudo, por terem sido escritos por um poeta lúcido como Camões, apontam, a exemplo da Mensagem, em algumas passagens, e o “Epílogo”, para a situação de decadência que se seguiu ao apogeu do Estado português. 

O significado do episódio do “Velho de Restelo” é a advertência que se faz aos portugueses sobre a Fama e a Fortuna. Segundo alguns críticos, a voz do “Velho de Restelo” seria a do próprio Camões, que gostaria que as navegações portuguesas se restringissem ao norte da África. O velho critica os motivos das navegações: a “glória de mandar”, a “cobiça”, o “fraudulento gosto”. Esses ímpetos dos que só desejam  a “Fama” e “Glória” e que ludibriam a ingenuidade do povo são enganosas : eles causam “desamparos”, “adultérios” e a desagregação das riquezas e dos impérios. A fala do “Velho do Restelo” contraria   a tese fundamental de Os Lusíadas , ou seja, a de que no mar o homem ultrapassa as suas fraquezas.

O “Epílogo” de  Os Lusíadas é o momento de maior questionamento, por parte de Camões , em relação à matéria narrativa : ele lamenta a decadência em que se encontrava a sua pátria, a indiferença com as letras “e confessa que cantava um povo tristemente embriagado com as glórias conquistadas no ultramar, tudo transformada numa desalentada confissão de vencido e visionário ”(MOISÉS. 1985. pág. 72).

Esse mesmo triste questionamento sobre a aventura marítima é uma constante nos  versos da Mensagem: “Compra-se  a glória com desgraças .” (PESSOA. op. cit. pág. 71), “O mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar ! “ ( PESSOA. op. cit. pág. 82), “Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer - / Brilho sem luz e sem arder, / Como o que o fogo-fatuo encerra. / (...) Tudo é incerto e  derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro ... “( PESSOA. op. cit. pág. 89).

Outro ponto em que Os Lusíadas e a Mensagem se  identificam é representada pela presença  do episódio do “Gigante Adamastor” na  primeira epopéia e do poema “ O Mostrengo” na Segunda.

O episódio do “Gigante Adamastor” simboliza o perigo que o mar  representava para os navegadores. No lano histórico ele se identifica com o Cabo das Tormentas, a passagem do Ocidente para o Oriente, cuja descoberta desencadeou a mudança do monopólio da rota mediterrânea para rota atlântica. Fernando Pessoa retoma o episódio do “Gigante Adamastor” para a criação do seu poema “O Mostrengo”. Mas, se, em Os Lusíadas, o mostro é representado por  uma dinvidade transformada em pedra, na Mensagem,  essa dinvidade é aérea e tem seus “tetos negros do fim do mundo”. Diante do “Gigante Adamastor”, os navegadores portugueses sentem pavor (temem o perigo). Já diante do “Mostrengo”, mesmo tremendo , os portugueses, representados pelo “o homem do leme”, um homem qualquer, anônimo, mas cheio de espírito épico, e identificado como D. João II, encara de frente o mostrengo, símbolo dos obstáculos à  conquista dos mares.      

A identidade entre a epopéia camoniana e a pessoana também pode ser vista no episódio “A Ilha dos Amores” , de Os Lusíadas, e no poema “As Ilhas Afortunadas”, da Mensagem. Tanto  “A Ilha dos Amores” como “As Ilhas Afortunadas” são ilhas encantadas, míticas: a primeira se assemelha a um ”éden pagão”, um jardim de delícias, um paraíso terrestre onde não há pecado, onde tudo é permitido, reservado aos bem-sucedidos e   aventurados argonautas portugueses, e o mito sempre se remota a um espaço-tempo anterior à idéia de pecado. Noutras palavras, a “Ilhas dos Amores” localiza-se numa dimensão do passado mítico de Portugal. A Segunda se afigura uma utopia: etimologicamente, do grego “ou” (não), e “topos” (lugar), o não lugar, ou lugar que não existe, e Fernando Pessoa denomina as “Ilhas Afortunadas” assim: “São ilhas afortunadas, / São terras sem Ter logar,/ Onde o Rei mora esperando. / Mas, se vamos dispertando, /  Cala a voz, e há só mar . “( PESSOA. op. cit. pág. 85). Destarte, Pessoa coloca as “Ilhas Afortunadas” como sendo um espaço mítico, já que é a morada do maior mito lusitano, o “Encoberto” D. Sebastião , que desapareceu na batalha de Alcácer Quibir. “O resto do seu destino perdeu-se na incerteza e na lenda” (PIRES. 1969.pág.  56), e incerta, lendária é a localização das “Ilhas Afortunadas”, bem como a sua referência temporal, que também é mítica.” Neste  jogo do espaço com o tempo, o futuro  (as “Ilhas Afortunadas”, espaço-tempo do novo Portugal) é posto do passado “ (SANTOS. op. cit. pág. 22), constituindo em futuro do pretérito , um tempo virtual, um tempo potencial. 

 
CONCLUSÃO 
 


Nosso objetivo foi comparar algumas passagens de Os Lusíadas, de Camões, com o poema Mensagem, de Fernando Pessoa.

No desenvolvimento deste trabalho fizemos essa comparação, a qual nos permitiu concluir, que a epopéia pessoana faz uma releitura da matéria narrativa de Os Lusíadas,   retrabalhando criticamente alguns de seus episódios, como o Velho de Restelo, O Gigante Adamastor e A Ilha dos Amores, infundindo uma nova estrutura  e linguagem a epopéia camoniana.

 BIBLIOGRAFIA

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CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo, Cutrix, 1985, 21. Ed. 387
         p. Larousse Cultural – Dicionário da língua portuguesa. São Pau
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MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo, Cutrix, 1985,
       21. ed. 987p.

PESSOA, Fernando . Mensagem. (texto mimiografado) s.d. p. 71-89.

RODRIGUES, A . Medina et ali. Antologia da Literatura Brasileira.
         São Paulo, 1979, 1. Ed. 277p.  

SANTOS, Raimunda das Dôres.  Uma Leitura de Frei Luís de Sousa.
        (dissertação de mestrado) Rio de Janeiro, UFRJ, 1980, 80p.

TUFANO, Douglas.  Estudo de Literatura Portuguesa. São Paulo, Mo
        derna , 1981 , 1 .ed. 306p.