(André Breton, by David Levine)
(André Breton, by David Levine)

 


Deve existir algum limite, alguma regra, para os mundos descritos pela literatura fantástica? Ou ela pode ser justamente aquele espaço de liberdade total, aquele espaço do “vale tudo”, onde a imaginação do escritor não tem que ficar presa a conceitos como realismo, verossimilhança, positivismo, coerência e assim por diante? 

Por um lado existem autores, principalmente jovens, que querem botar pra quebrar, chutar o pau da barraca, virar a mesa. 

Os Dadaístas e os Surrealistas eram um pouco assim nos anos 1910-20, cem anos atrás. Inimigos ferozes da autoridade (do Estado, da Igreja, das Academias, etc.) eles defendiam a libertação total do espírito humano, uma explosão da vontade irracional para estilhaçar um mundo racionalmente asfixiante. 

André Breton definia, no primeiro Manifesto do Surrealismo (1924): 
 

Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral.

(Manifestos do Surrealismo, Rio, Nau Editora, trad. Sérgio Pachá).


Breton queria, de maneira simpaticamente utópica, produzir uma linguagem pura, não-reprimida, brotada do inconsciente como a lava que brota de um vulcão. 

O surrealismo é uma espécie de “buraco negro” da literatura fantástica. O fantástico convencional, em qualquer de suas variantes, surge em contraste com o realismo, mas o surrealismo, por seu excesso de concentração no irracional, implode a realidade, o naturalismo e tudo o mais. Toda a literatura fantástica que temos hoje pareceria, aos surrealistas de 1924, excessivamente domesticada, pouco delirante. 

Essa literatura – que não precisa obedecer aos dogmas surrealistas – lida com regras, precisa de regras, sente-se na obrigação de traçar limites para si mesma. Uma fantasia solta no espaço, onde literalmente toda e qualquer coisa pode acontecer, perde a graça. Não existe tensão. É preciso haver algum limite, alguma restrição, algo que forneça resistência, apoio, um chão psicológico onde se possa pisar. 
 




Gabriel Garcia Márquez talvez estivesse pensando nisto quando narrou como um conto infantil seu foi desdenhado por seu amigo Plinio Apuleyo Mendoza, cuja opinião ele respeitava muito, por ser uma mera “fantasia”. E Márquez fez sua distinção entre imaginação e fantasia: 
 

O argumento me pareceu demolidor, precisamente porque sempre acreditei que tampouco às crianças agrada a fantasia. O que lhes agrada, certamente, é a imaginação. A diferença é fundamental, pois entre a imaginação e a fantasia há a mesma diferença que há entre um ser humano e um boneco de ventríloquo.

 

(Garcia Márquez habla de Garcia Márquez, org. Alfonso Rentería Mantilla, Renteria, Bogotá, 1979, pág. 54, trad. BT)


G. K. Chesterton produziu um dos seus melhores ensaios no capítulo “The Ethics of Elfland” (em Orthodoxy, 1908), onde ele discute justamente o rigor com que as crianças absorvem as leis que regem os contos de fadas.
 

Qualquer pessoa pode entender isto se ler os contos de fadas dos Irmãos Grimm, ou as ótimas coletâneas de Mr. Andrew Lang. Por uma questão de prazer e pedantismo darei a isto o nome de “a Doutrina da Alegria Condicional”. Touchstone atribuía uma enorme virtude à expressão ”se”: e de acordo com a ética dos elfos toda a virtude repousa em um “se”. O tom dos enunciados das fadas é sempre: “Você poderá viver num palácio de ouro e safira, se jamais pronunciar a palavra vaca”; ou “Você poderá ser feliz para sempre com a filha do rei, se nunca mostrar a ela uma cebola”. A visão maravilhosa depende de um veto.

 

(...) Nos contos de fadas uma incompreensível felicidade repousa sempre numa incompreensível condição. Uma caixa é aberta, e todos os males do mundo saem voando. Alguém esquece uma palavra, e cidades inteiras são arrasadas. Uma lanterna é acesa, e o amor foge para sempre. Alguém colhe uma flor, e pessoas perdem a vida. Alguém come uma maçã, e toda a esperança em Deus desaparece.

 

(Orthodoxy, Fontana Books, 1961, pág. 54-55, trad. BT)

 

 


(G. K. Chesterton, by David Levine)

 
 
Essas regras parecem incompreensíveis ou absurdas, mas nos contos populares, dos Irmãos Grimm a Luís da Câmara Cascudo, elas correspondem ao modo como as crianças veem as restrições e as proibições que recebem no mundo dos adultos. Pode brincar na sala, mas não abra estas gavetas. Podem brincar na rua, mas tem que voltar antes que escureça. Não beba dessa garrafa. Não entre nesse quarto. Se fizer xixi na cama, não ganha presentes. Se pegar no pinto de noite, sua mão cai. Tudo é inexplicável, e não admite questionamento. 

E pode-se ver um paralelo também com a vida dos servos submetidos ao capricho de nobres e de senhores feudais, que parecem sempre dispor de um dinheiro infinito, quantidades infinitas de comida, e no entanto estão sempre fazendo exigências absurdas, divertindo-se com punições cruéis, ou usando os plebeus como se fossem bonecos. 

Desde a Idade Média até o corrente mês a gente ouve histórias sobre banquetes suntuosos, toneladas de comidas extravagantes e caríssimas sendo servidas para convivas já estufados, por criados tão famintos que cozinhariam uma espiga de milho sem caroços, para matar a fome. A princesinha adoece, e a babá faz uma promessa e se suicida, feliz em dar a vida por ela. 

A literatura de fantasia lida com a polaridade “mundo real / mundo fantástico” como uma polarização comparável às de crianças vs. adultos, e de servos vs. nobres. As regras podem parecem incompreensíveis ou absurdas, mas devem ser seguidas. Por que? Porque o mundo real é assim, é inexplicavelmente assim. As coisas são, e pronto. Depois, inventa-se uma explicação para o ser das coisas. 

O mesmo vale para partes consideráveis da população atual. Nossa sociedade é fundada num conjunto contraditório de leis grandiloquentes e absurdas, mal explicadas, mal aplicadas. É baseada em contratos sociais que beneficiam apenas um dos contratantes, e em valores morais proclamados com eloquência e ignorados com desfaçatez. A Constituição, o Código Civil, o Código Penal, a Babel das jurisprudências... A pessoa comum (principalmente a pessoa pobre) se submete a isto sem entender e sem ter como questionar. Tudo que é prometido com cem palavras obscuras pode ser cancelado com cento e uma. 

Se a atenção do autor consegue recuar um pouco e observar a meia distância os paradoxos deste mundo, suas contradições absurdas, suas fatalidades que ninguém deseja e que todos incrementam, pode entender um pouco da lógica do fantástico, ou dos mecanismos do absurdo. 

Não foi Franz Kafka quem inventou os processos inexplicáveis e a justiça inatingível. 



(Franz Kafka, by David Levine)